Daniel Steinvorth e Volkhard Windfuhr - Der Spiegel
Abd al Galil al Sharnubi diz que só consegue rir diante do pensamento de que existam pessoas no Ocidente que ainda vejam a Irmandade Muçulmana como “islamitas moderados”. Sharnubi é um jornalista e muçulmano –e foi membro da Irmandade por 23 anos. Ele é familiarizado com o movimento desde que tinha 14 anos e diz que a Irmandade poderia ser o beijo da morte para a democracia no Egito.
No ano passado, Sharnubi, 38 anos, deixou a organização islamita. De lá para cá, ele diz que sua vida se tornou um pesadelo. “Eles tentaram voltar minha família contra mim”, diz Sharnubi. Ele está sentado em um café no Cairo, mantendo um olhar atento para a porta da frente: “Eles foram até minha cidade natal e espalharam rumores a meu respeito, dizendo que me tornei ateísta e que bebo álcool. Eles disseram à minha esposa que procuro prostitutas”.
Como ex-editor-chefe do “Ikhwan Online”, o site da Irmandade, Sharnubi foi a público logo após sua renúncia. Em programas de televisão, ele alertou os egípcios que o movimento é antidemocrático e autoritário, e que importantes membros da Irmandade são tão corruptos quanto os políticos do velho regime.
Muitos acusaram Sharnubi de espalhar pânico, dizendo que os islamitas deviam ter uma chance. Mas o ex-membro da Irmandade diz que os eventos da semana passada mostram que ele esteve certo o tempo todo. O “golpe” do presidente, diz Sharnubi, fornece apenas uma ideia vaga da obsessão da Irmandade pelo poder.
A volta do espírito revolucionário
Na última quinta-feira (22), o presidente egípcio Mohammed Morsi deu inesperadamente a si mesmo amplos poderes, a ponto de, na prática, não haver mais separação dos Poderes no país mais populoso do mundo árabe.
Morsi decretou que, daqui em diante, o presidente terá a palavra final “sobre todas as emendas constitucionais, decisões e leis”. Segundo seu plano, nenhum órgão do Estado poderá lhe dizer o que fazer e nem mesmo o tribunal constitucional do país terá poder para enfrentá-lo.
O “novo faraó”, como Morsi já é chamado no Egito, no futuro só responderá supostamente a Deus e ao comitê executivo da Irmandade Muçulmana, do qual o presidente provavelmente nunca se desligou, diferente do que ele alega.
Se Morsi não revogar seu decreto, ele provavelmente enfrentará um novo levante no Egito para desafiar o poder do presidente. De fato, após demitir seu procurador-geral, Abdel Maguid Mahmoud, que era membro do antigo regime, Morsi não tem mais nenhum oponente – exceto o povo egípcio.
Apesar dos apoiadores da Irmandade Muçulmana terem se reunido na última sexta-feira (23) em frente do palácio presidencial em apoio a Morsi, seus oponentes realizaram uma manifestação na Praça Tahrir do Cairo. “Nós não queremos uma nova ditadura”, eles gritavam. “O povo pretende derrubar o líder religioso.”
De repente, ele está de volta: o espírito revolucionário do qual muitos aqui sentiam falta há meses. Exceto que desta vez a fúria dos manifestantes não é direcionada contra Hosni Mubarak, mas sim contra seu primeiro presidente eleito democraticamente. “As pessoas estão finalmente acordando”, diz Dina Abd al Soud com lágrimas nos olhos. Um grupo de homens jovens passa ao lado usando os tradicionais lenços de cabeça palestinos e carregando megafones. Al Soud canta com eles: “Abaixo o regime! Nós não partiremos, você sim!”
A mulher de 37 anos é gerente de um hotel próximo. Ela diz que os negócios ficaram mais difíceis desde a crise econômica. E ela nota que está recebendo cada vez mais olhares críticos por não usar lenço de cabeça, preferindo deixar seu cabelo solto. Mas nesta noite, ela diz que sua esperança está retornando. “Morsi cometeu um erro estúpido. Ele perdeu sua credibilidade. Agora as pessoas resistirão.”
O momento decisivo do Egito
Os escritórios regionais do partido político da Irmandade Muçulmana foram incendiados em pelo menos três cidades na sexta-feira. Em Alexandria, os membros da Irmandade ergueram seus tapetes de oração para se protegerem enquanto eram apedrejados.
Quase dois anos depois do início da revolução, o país chegou a um momento decisivo. Será que os membros da Irmandade Muçulmana –que não foram os responsáveis pelo início da rebelião popular contra Mubarak, mas despontaram como os que mais ganharam com a revolução– conseguirão consolidar seu poder a longo prazo? Será que Morsi se transformará em outro governante absoluto no palácio presidencial? Isso representaria o fim da nascente democracia do Egito. Ou será que Morsi cederá diante dos protestos contra ele, que têm sido mais veementes do que o esperado? Na semana passada, o presidente só recebeu feedback positivo de seus parceiros ocidentais.
De fato, Morsi elegeu inteligentemente o momento para sua manobra política doméstica, escolhendo um dia em que o mundo ainda cantava louvores ao “novo Egito”. O presidente egípcio usou sua influência para ajudar a persuadir Israel e o Hamas a concordarem com um cessar-fogo. Como recebedor de bilhões em ajuda militar e econômica americana, ele não tinha alternativa.
“O novo governo do Egito está assumindo a responsabilidade e liderança que há muito transformaram esse país na pedra angular da paz e estabilidade regional”, exclamou a secretária de Estado americana, Hillary Clinton. Palavras de reconhecimento para os islamitas foram ouvidas até mesmo em Israel.
Morsi, que é frequentemente considerado letárgico e rijo pelos observadores estrangeiros, aproveitou o momento para demitir seu procurador-geral e tirar o poder do tribunal constitucional. Isso fortalece a posição do presidente e reforça a Irmandade Muçulmana, que por semanas é alvo das manifestações dos jovens revolucionários que lideraram a rebelião de 2011.
Os manifestantes fizeram pichações anti-Irmandade nas paredes dos prédios ao redor da Praça Tahrir e estão ameaçando uma “segunda revolução”. Surpreendentemente, o estouro da crise em Gaza não provocou manifestações em massa no Egito contra Israel, mas sim protestos contra a Irmandade Muçulmana.
Pesadelo para os egípcios seculares
Há duas semanas, quase 50 crianças morreram em um acidente de trânsito horrível na província de Assiut –um acidente que ressaltou o estado deplorável da infraestrutura do país. Além das estradas, pontes, escolas e hospitais públicos abandonados, a rede ferroviária está completamente decrépita.
Há enormes problemas sociais e econômicos no país, mas Morsi, que já comanda o governo há cinco meses, preferiu se concentrar na remoção de seus oponentes. Ele afastou os principais generais do país, ordenou o fechamento de emissoras de TV críticas e fez com que jornalistas obstinados fossem punidos. Além disso, ele nomeou membros da Irmandade para cargos ministeriais chave e não fez nenhuma tentativa de ser o “presidente de todos os egípcios”.
A única coisa notável sobre as realizações de Morsi no cargo foi a velocidade com que cimentou seu poder. O Egito atualmente não tem nem Parlamento e nem Constituição, e os decretos presidenciais constituem a palavra final sobre todos os assuntos políticos. Um conselho nomeado pelo último Parlamento está trabalhando em uma nova Constituição, mas ele é controlado quase que totalmente pelos islamitas.
Todos os esquerdistas, liberais, nasseristas, mulheres e cristãos renunciaram do conselho, em protesto contra a influência dominante da Irmandade Muçulmana e dos salafistas.
Em um esboço da Constituição, os islamitas propuseram mudar os direitos e obrigações das mulheres para atender as “regras da lei Sharia”. Para a ativista egípcia de direitos da mulher, Karima al Hefnawy, isso equivaleria a obrigar todas as mulheres a usarem o hijab, como acontece na Arábia Saudita e no Irã. Mas, segundo Hefnawy, as mulheres já sofrem discriminação no Egito: “Muitos islamitas não fazem segredo de que desejam que as mulheres sejam legalmente subservientes aos homens”.
Para aplicarem apropriadamente o código de conduta Sharia, os islamitas sugeriram que ele deveria ser interpretado pelos juristas islâmicos, conhecidos como ulamas. Isso concederia aos ulamas o mesmo status dos juízes constitucionais –um pesadelo para os egípcios seculares.
Os participantes falam de debates no conselho constitucional nos quais os membros discutem os méritos de reduzir a idade legal de casamento para as meninas de 18 para 14 anos –ou até mesmo para 9 anos. O tribunal constitucional recentemente destituído de poderes era a única autoridade capaz de dissolver o conselho. Mas mesmo essa esperança foi frustrada.
Não apenas lunáticos isolados
Consequentemente, até mesmo os islamitas mais radicais se tornaram parte do cenário político diário no Egito.
Isso inclui pregadores como Wajdi Ghunaim, que considera os egípcios seculares como sendo infiéis que devem ser punidos com a morte.
Também há salafistas ultraconservadores como Murgan Salem al-Gohary, que se gaba de que estava presente quando o Taleban dinamitou os famosos Budas de Bamiyan, no Afeganistão em 2001. Em um recente programa de TV, Gohary pediu para que todos os “símbolos de blasfêmia” também fossem destruídos no Egito, como a Grande Pirâmide de Gizé, a Esfinge e todas as “imagens idólatras” dos tempos dos faraós.
Seria errado considerar que estes são apenas lunáticos isolados. Na época em que Mubarak estava no poder, ele teria mandado esses extremistas para a cadeia, mas agora eles aparecem em emissoras de TV com um grau sem precedente de confiança. E isso fala muito sobre o atual clima político no Egito. Sharnubi, o ex-membro da Irmandade Muçulmana, diz que ela provavelmente está tolerando até mesmo os salafistas mais radicais por precisar do apoio deles.
Ele não acredita mais em uma solução pacífica para o conflito e prevê que em breve haverá confrontos violentos entre os vários campos. E ele espera que haverá novos atentados contra sua vida.
Sharnubi mal sobreviveu a um atentado desses em 2 de novembro. Dois homens mascarados forçaram seu carro a sair da estrada e dispararam contra ele com pistolas automáticas até que ajuda chegasse. Não foi realizada nenhuma investigação, mas ele diz que sabe quem esteve por trás do ataque.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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