O novo presidente egípcio extrapolou no seu decreto e não explicou bem a razão, mas agiu assim para proteger a Assembleia Constituinte
NOAH FELDMAN, BLOOMBERG NEWS - O Estado de
S.Paulo
A democracia no Egito acabou antes de começar? É o que pensam os céticos no
exterior e os que protestam no Egito depois de o presidente Mohamed Morsi
decretar unilateralmente que suas decisões não estão sujeitas a uma reavaliação
pela Corte Constitucional do país.
Os temores são exagerados. Não é uma cena de filme em que o líder islâmico eleito democraticamente se revela um ditador religioso. Morsi extrapolou no seu decreto e não explicou bem a razão. Mas agiu assim para preservar a democracia eleitoral. E ele deu um primeiro passo para consertar o estrago, concordando em circunscrever o alcance do decreto a "questões soberanas", como proteger a assembleia encarregada de redigir a nova Constituição para o Egito.
A preocupação manifestada pelos egípcios e secularistas estrangeiros é compreensível. Democracia significa mais do que apenas eleições. Aqueles que são eleitos pelo povo têm de se ater às normas constitucionais e não assumir que sua eleição é um mandato para governar sem restrições. Quando Morsi declarou que não ficaria vinculado às decisões da Corte Constitucional porque "Deus e o povo" o escolheram, ele se expressou, de modo inquietante, como o aiatolá Ruhollah Khomeini ou um ditador fascista.
Mas, apesar das aparências, o decreto assinado por ele não representa o cenário do "um homem, um voto, uma vez" que muitos acham inevitável quando um partido radical islâmico chega ao poder por vias democráticas.
Precisamos analisar todo o contexto da tumultuada e ainda vigente revolução do Egito, e o papel bastante questionável que a Corte assumiu dentro desse mesmo contexto.
Sob o governo de Hosni Mubarak, a Corte Constitucional tentou ativamente coagir o governo. De início talvez tenha sido para salvaguardar o bem-estar público, mas a tendência rapidamente se transformou em partidarismo antidemocrático ou subordinação ao Exército. O ponto culminante dos trabalhos do tribunal foi quando dissolveu o legislativo eleito em junho.
Numa entrevista, um dos juízes admitiu que a corte ficou ao lado do regime militar o tempo todo e preparou suas decisões contra o legislativo desde o momento em que as eleições foram realizadas.
Há uma boa razão para achar que a Corte dissolveria a Assembleia Constituinte eleita, como dissolveu o Parlamento - seria um passo a mais para declarar a eleição presidencial inválida e criar um "golpe de Estado" constitucional contra Morsi.
Não se engane. Uma ação como esta por parte dos tribunais buscaria garantir o poder continuado dos líderes militares que não aceitaram o resultado das eleições. A luta entre islamistas eleitos e o Exército não foi encerrada.
E, claramente, o decreto de Morsi faz parte desta disputa. Ao dar-se conta de que a Corte Constitucional é um instrumento dos militares, ele tentou anular sua influência preventivamente.
Mas os meios que adotou foram ingênuos e provocaram uma péssima reação. Nada na Constituição provisória ou nos princípios constitucionais gerais permite ao presidente ignorar o julgamento de um Tribunal Constitucional.
O que Morsi deveria ter feito era recorrer à própria Assembleia Constituinte. Como não há uma Constituição permanente em vigor é a Assembleia que representa o desejo do povo e não o presidente. Num período pós-revolucionário repleto de incertezas a soberania subsiste somente num órgão coletivo eleito para redigir as novas normas fundamentais para o país.
Se a Assembleia Constituinte declarasse que não pode ser dissolvida pela Corte Constitucional este seria um argumento constitucional convincente e uma defesa política digna de crédito. Muitos especialistas no assunto dirão que uma Assembleia Constituinte pode fazer tudo o que deseja desde que não viole direitos humanos fundamentais. Certamente, a Assembleia teria o poder para abolir a Corte numa Constituição final e ratificada. Portanto, ela tem capacidade para se defender contra uma Corte monopolizadora.
Morsi teria sido mais prudente se assinasse um decreto limitado estabelecendo que a Assembleia continuaria vigente e em funcionamento mesmo que os tribunais tentassem dissolve-la. Mas, em vez disso, ao se colocar acima da lei, debilitou o real ideal democrático ao qual deveria ter recorrido.
Tendo agora concordado em limitar o escopo do decreto, Morsi deveria também esclarecer que não está reivindicando uma autoridade inerente à presidência, mas simplesmente afirmando o princípio de que a Corte não pode dissolver uma Assembleia Constituinte.
Isso indicaria aos defensores da democracia no Egito e no exterior que o presidente quer defender o processo democrático, não subvertê-lo.
Neste momento, Morsi debilitou substancialmente sua legitimidade dentro do país, provocando pela primeira vez protestos violentos contra ele. No plano internacional a situação ainda é pior: por conta do seu apoio público ao Hamas, foi visto como um ditador em potencial. A democracia ainda não morreu no Egito. Mas ele precisa fazer mais para mostrar que ainda acredita no sistema que o colocou na presidência.TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É PROFESSOR DE DIREITO NA UNIVERSIDADE HARVARD E AUTOR DO LIVRO "SCORPIONS: THE BATTLES AND TRIUMPHS OF FDR GREAT SUPREME COURT JUSTICES" E COLUNISTA DA ‘BLOOMBERG VIEW’
Os temores são exagerados. Não é uma cena de filme em que o líder islâmico eleito democraticamente se revela um ditador religioso. Morsi extrapolou no seu decreto e não explicou bem a razão. Mas agiu assim para preservar a democracia eleitoral. E ele deu um primeiro passo para consertar o estrago, concordando em circunscrever o alcance do decreto a "questões soberanas", como proteger a assembleia encarregada de redigir a nova Constituição para o Egito.
A preocupação manifestada pelos egípcios e secularistas estrangeiros é compreensível. Democracia significa mais do que apenas eleições. Aqueles que são eleitos pelo povo têm de se ater às normas constitucionais e não assumir que sua eleição é um mandato para governar sem restrições. Quando Morsi declarou que não ficaria vinculado às decisões da Corte Constitucional porque "Deus e o povo" o escolheram, ele se expressou, de modo inquietante, como o aiatolá Ruhollah Khomeini ou um ditador fascista.
Mas, apesar das aparências, o decreto assinado por ele não representa o cenário do "um homem, um voto, uma vez" que muitos acham inevitável quando um partido radical islâmico chega ao poder por vias democráticas.
Precisamos analisar todo o contexto da tumultuada e ainda vigente revolução do Egito, e o papel bastante questionável que a Corte assumiu dentro desse mesmo contexto.
Sob o governo de Hosni Mubarak, a Corte Constitucional tentou ativamente coagir o governo. De início talvez tenha sido para salvaguardar o bem-estar público, mas a tendência rapidamente se transformou em partidarismo antidemocrático ou subordinação ao Exército. O ponto culminante dos trabalhos do tribunal foi quando dissolveu o legislativo eleito em junho.
Numa entrevista, um dos juízes admitiu que a corte ficou ao lado do regime militar o tempo todo e preparou suas decisões contra o legislativo desde o momento em que as eleições foram realizadas.
Há uma boa razão para achar que a Corte dissolveria a Assembleia Constituinte eleita, como dissolveu o Parlamento - seria um passo a mais para declarar a eleição presidencial inválida e criar um "golpe de Estado" constitucional contra Morsi.
Não se engane. Uma ação como esta por parte dos tribunais buscaria garantir o poder continuado dos líderes militares que não aceitaram o resultado das eleições. A luta entre islamistas eleitos e o Exército não foi encerrada.
E, claramente, o decreto de Morsi faz parte desta disputa. Ao dar-se conta de que a Corte Constitucional é um instrumento dos militares, ele tentou anular sua influência preventivamente.
Mas os meios que adotou foram ingênuos e provocaram uma péssima reação. Nada na Constituição provisória ou nos princípios constitucionais gerais permite ao presidente ignorar o julgamento de um Tribunal Constitucional.
O que Morsi deveria ter feito era recorrer à própria Assembleia Constituinte. Como não há uma Constituição permanente em vigor é a Assembleia que representa o desejo do povo e não o presidente. Num período pós-revolucionário repleto de incertezas a soberania subsiste somente num órgão coletivo eleito para redigir as novas normas fundamentais para o país.
Se a Assembleia Constituinte declarasse que não pode ser dissolvida pela Corte Constitucional este seria um argumento constitucional convincente e uma defesa política digna de crédito. Muitos especialistas no assunto dirão que uma Assembleia Constituinte pode fazer tudo o que deseja desde que não viole direitos humanos fundamentais. Certamente, a Assembleia teria o poder para abolir a Corte numa Constituição final e ratificada. Portanto, ela tem capacidade para se defender contra uma Corte monopolizadora.
Morsi teria sido mais prudente se assinasse um decreto limitado estabelecendo que a Assembleia continuaria vigente e em funcionamento mesmo que os tribunais tentassem dissolve-la. Mas, em vez disso, ao se colocar acima da lei, debilitou o real ideal democrático ao qual deveria ter recorrido.
Tendo agora concordado em limitar o escopo do decreto, Morsi deveria também esclarecer que não está reivindicando uma autoridade inerente à presidência, mas simplesmente afirmando o princípio de que a Corte não pode dissolver uma Assembleia Constituinte.
Isso indicaria aos defensores da democracia no Egito e no exterior que o presidente quer defender o processo democrático, não subvertê-lo.
Neste momento, Morsi debilitou substancialmente sua legitimidade dentro do país, provocando pela primeira vez protestos violentos contra ele. No plano internacional a situação ainda é pior: por conta do seu apoio público ao Hamas, foi visto como um ditador em potencial. A democracia ainda não morreu no Egito. Mas ele precisa fazer mais para mostrar que ainda acredita no sistema que o colocou na presidência.TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
É PROFESSOR DE DIREITO NA UNIVERSIDADE HARVARD E AUTOR DO LIVRO "SCORPIONS: THE BATTLES AND TRIUMPHS OF FDR GREAT SUPREME COURT JUSTICES" E COLUNISTA DA ‘BLOOMBERG VIEW’
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