terça-feira, 31 de março de 2015

"Batalhão" é treinado para identificar e recuperar obras de arte na Síria
Patricia R. Blanco - El País
Mohammed Badra/Reuters
Moradores procuram por pertences em meio aos escombros em Damasco 
Moradores procuram por pertences em meio aos escombros em Damasco
Um batalhão atípico de guerreiros vigia todos os recantos da Síria. Alguns estão posicionados em uma elevação da qual contemplam seu alvo. Outros observam com sigilo da janela de sua casa. E há quem se aventure a examinar o rastro deixado pelos combates. Acabam de ser treinados em uma base oculta na Turquia, à qual chegaram cruzando de forma ilegal a fronteira e onde aprenderam a manejar as armas com as quais travarão a outra luta que sangra o país: o roubo, o espólio e a destruição do patrimônio cultural sírio.
Hakim -- nome fictício para proteger sua identidade -- entra em uma pequena loja de Damasco, capital do país, que vende de xícaras de chá e doces a pequenos objetos decorativos. Quando o gerente do bazar vai aos fundos da loja para buscar as xícaras que lhe pediu, Hakim tira rapidamente o telefone celular que levava no bolso e fotografa uma pequena estátua que, segundo intui, é "algo mais" que uma simples peça ornamental. Depois de inventar "qualquer desculpa" para não comprar as xícaras, quando estiver em um lugar seguro enviará as imagens para um especialista comprovar seu valor. Enquanto isso, Anás, que também não revela seu nome verdadeiro, fotografa em Damasco os monumentos intactos e vigia se sofrem algum dano.
"São arqueólogos e especialistas em arte, mas também arquitetos, advogados, estudantes e pessoas de qualquer disciplina que querem proteger a cultura de seu país", esclarece Isber Sabrine, fundador da Heritage for Peace, organização com base em Girona (Espanha) para a qual trabalham esses soldados, sob o lema de que "o patrimônio cultural é um terreno comum para o diálogo e uma ferramenta para construir a paz". E Sabrine acredita que funciona, porque os recrutas procedem tanto das forças leais ao regime de Bashar al Assad como da oposição laica e dos islamistas.
Esse jovem arqueólogo sírio, de 30 anos, construiu a rede, integrada por cerca de 200 pessoas, das quais 150 trabalham na Síria, graças à sua experiência anterior como "guia turístico" no país entre 2005 e 2009. "Depois viajei à Espanha para terminar meus estudos, mas em 2011 eclodiu a guerra, justamente quando eu preparava, com o apoio do Conselho Superior de Pesquisas Científicas, um projeto para administrar o patrimônio da Síria, para o qual o governo de Bashar al Assad nunca criou qualquer política", explica Sabrine. Sua ideia mudou e se transformou em uma organização dedicada a proteger o patrimônio durante os conflitos, a versão síria de "Caçadores de Obras-primas", filme dirigido e protagonizado por George Clooney que narra a história de um grupo aliado na Segunda Guerra Mundial que resgatava obras de arte antes que fossem roubadas ou destruídas pelos nazistas.
Na Síria às vezes é difícil identificar quem são esses nazistas. Tanto o bando que apoia Assad como forças da oposição saquearam parte do patrimônio sírio para se financiar. Agora, os jihadistas do Estado Islâmico se somam não só à pilhagem como método de financiamento, mas também à destruição da herança cultural e artística.
Porque além do colossal custo humano da guerra síria, que em quatro anos tirou a vida de mais de 220 mil pessoas e obrigou outras 4 milhões a se refugiarem em países vizinhos, a destruição da herança cultural e artística do país sofreu um dano irreparável.
Cinco dos seis lugares sírios inscritos na lista do Patrimônio Mundial da Humanidade da Unesco, entre eles a antiga cidade de Alepo, foram seriamente danificados. Ao todo, segundo dados do Unitar (Instituto da ONU para Formação e Pesquisa), 24 locais com patrimônio cultural foram completamente destruídos, 104 seriamente danificados, 85 pouco danificados e 77 possivelmente danificados. Obras de arte babilônicas, sírias, gregas, romanas e bizantinas desapareceram para sempre.
"Formamos as pessoas para que saibam o que fazer em cada situação", explica Sabrine, que admite que às vezes esse grupo de arqueólogos "arrisca suas vidas ao visitar lugares muito perigosos". Durante a preparação, no Líbano ou na Turquia, Sabrine e sua equipe ensinam seus guerreiros a documentar os danos nos edifícios, a esconder objetos preciosos e registrar corretamente as coordenadas para localizá-los mais tarde, a inspecionar lugares arrasados para resgatar alguma obra de arte sobrevivente ou certificar-se de que tudo o que havia ali desapareceu.
Somente assim, segundo ele, "é possível saber que peças circulam no mercado ilegal de arte" e talvez um dia recuperá-las e contribuir para a reconstrução da identidade do país.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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