sábado, 28 de março de 2015

Califado sob pressão: O Estado Islâmico está em apuros no Iraque?
Susanne Koelbl e Christoph Reuter - Der Spiegel
Khalid Mohammed/AP
Soldado iraquiano tira fotos do mausoléu destruído do ditador Saddam Hussein, em Tikrit, 130 km ao norte de Bagdá Soldado iraquiano tira fotos do mausoléu destruído do ditador Saddam Hussein, em Tikrit, 130 km ao norte de Bagdá
A viagem de Bagdá a Tikrit permanece extremamente perigosa. Há muitas bombas plantadas ao longo da estrada e atiradores ocasionalmente espreitam nas proximidades. Assim, ninguém sabe ao certo em que carro o ministro do Interior do Iraque, Mohammed al-Ghabban, está viajando. O comboio dele, protegido por soldados fortemente armados, está seguindo para o norte, passando por muros e escolas onde a bandeira preta do Estado Islâmico (EI) ainda está tremulando. E passa por aldeias vazias e por trincheiras que refletem o combate em andamento.
O ministro está seguindo para Tikrit, a cidade na linha de frente a 180 quilômetros ao norte de Bagdá, de onde o EI foi forçado a se retirar há poucos dias. Ghabban, 53 anos, é um homem magro e rijo em um uniforme policial simples. Ele foi preso aos 18 anos durante o regime de Saddam Hussein e posteriormente se juntou ao Partido Badr xiita financiado pelo Irã. Tikrit é um lugar de certa relevância para ele. É o local onde o odiado ditador nasceu e não é distante de onde ele está enterrado.
A torre de água de Tikrit pode ser vista de longe: ela também foi pintada de preto com escrita do EI em branco. Tikrit costumava ter 260 mil habitantes, mas agora é uma cidade fantasma. Veículos incendiados pontilham as margens da estrada, não há eletricidade e as torres de celular foram destruídas. Mas a bandeira iraquiana está novamente tremulando sobre a Praça Alam. Atrás dela, na rua principal, se encontram os homens responsáveis por esta vitória: policiais, soldados e, acima de tudo, os membros da milícia xiita.
Eles enfileiraram centenas de cápsulas de morteiro que dizem terem sido disparadas pelos combatentes do EI durante a batalha pela cidade. Um velho comandante da polícia se aproxima do ministro do Interior e relata que sua unidade perdeu 60 homens durante o combate. Mas, ele acrescenta, as ruas do distrito de Qadisiya de Tikrit estão repletas de cadáveres dos combatentes do EI.
A atmosfera é de euforia e as pessoas adorariam acreditar nas alegações do ministro do Interior de que a situação está melhorando, mas os soldados sabem que a retomada de Tikrit é apenas uma pequena vitória em uma guerra prolongada –e mesmo Tikrit não foi realmente libertada. No centro da cidade, um pequeno grupo de combatentes do EI e seus reféns civis permanecem entrincheirados. Pior, eles minaram a cidade, tornando avanços adicionais pelo exército perigosos demais por ora, diz o comandante.
A operação em Tikrit é a maior ofensiva militar até o momento contra o EI, que conquistou grandes áreas do Iraque desde o ano passado, frequentemente sem encontrar resistência. No início de março, o "califado" se estendia da fronteira turca até apenas 60 quilômetros de Bagdá. Mas de lá para cá, ele começou a encolher ao longo das margens.
A influência das milícias xiitas
Entretanto, é cedo demais para interpretar a reconquista de partes de Tikrit como o início do fim do EI. Os jihadistas continuam sendo inimigos formidáveis e seu recuo temporário da cidade pode ser apenas uma manobra tática inteligente, visando poupar combatentes e equipamento militar – e para inflamar o conflito sangrento entre xiitas e sunitas.
Afinal, a libertação de Tikrit não foi liderada pelo exército, mas pelas milícias xiitas. Essas milícias são oficialmente subordinadas ao governo e realizam operações conjuntas com o exército. Mas elas são armadas e comandadas pelo general iraniano Qassem Suleimani. Isso torna a captura de Tikrit uma vitória de dois gumes, principalmente para o Ocidente. É um sinal de esperança, mas as consequências podem ser desastrosas.
O exército do Iraque precisa ser reconstruído após sua derrota em meados do ano passado pelas tropas do EI, o motivo para as milícias xiitas terem assumido o controle militar no Iraque. O exército enviou apenas cerca de 4 mil soldados para Tikrit, em comparação aos 20 mil homens das milícias. (A coalizão internacional, sob a liderança dos Estados Unidos, não esteve envolvida até quinta-feira, quando jatos americanos atacaram posições do EI a pedido do governo iraquiano.)
O conflito entre os sunitas e xiitas iraquianos está esquentando há algum tempo. O ex-primeiro-ministro, Nouri al-Maliki, forçou todos os sunitas a deixarem o governo e promoveu as milícias xiitas. Seu sucessor, Haider al-Abadi, prometeu por fim a essas práticas. Abadi tem uma reputação de íntegro, mas aparentemente não conta com poder suficiente para escolher os membros de seu gabinete. Ghabban, o ministro do Interior, parece confirmar isso; ele é membro da Corporação Badr, uma das milícias mais notórias.
Além disso, o novo primeiro-ministro é dependente do Irã e de suas milícias para combater o EI. Por um lado, o Irã está enviando armas, combatentes e apoio aéreo, e oficiais iranianos estão treinando o exército. Enquanto isso, membros da Guarda Revolucionária do Irã estão ampliando sua influência no Iraque por meio das milícias –e a luta delas contra o Estado Islâmico está criando um ciclo vicioso bárbaro. Quanto maior é a ameaça dos jihadistas, maior é a retaliação por parte das tropas xiitas, que por sua vez motiva mais pessoas a aderirem ao EI.
'Não há lugar em nossa sociedade'
Muitos civis sunitas nas áreas capturadas pelo EI enfrentam uma situação desesperada, ameaçados tanto pelos jihadistas quanto pelos radicais xiitas. "Ou fogem ou são mortos", disse recentemente o xeque Sayed Maher, da unidade Asaib Ahl al-Haq, enquanto estava acompanhado por um general do exército iraquiano. Falando sobre os sunitas que permaneciam nas áreas, ele acrescentou: "Nós os tratamos como Daish". Daish é a sigla em árabe do EI.
Há um vídeo no qual combatentes afiliados ao Asaib Ahl al-Haq sorriem enquanto seguram cabeças decapitadas diante de uma câmera. Na aldeia de Barwana, no final de janeiro, pelo menos 70 cadáveres de civis foram encontrados, aparentemente executados por milícias xiitas.
Em Tikrit, Ghabban, o ministro do Interior, sobe a uma tribuna improvisada e faz um discurso visando motivar seus soldados. "Isto é apenas o início", ele brada. "Nós venceremos uma batalha após a outra. Nós libertaremos nosso país do Daish. Nós venceremos!"
Um jornalista pergunta para ele: "O que acontece com aqueles que lutaram pelo EI, mas desejam abandoná-lo?"
"Essas pessoas não têm lugar em nossa sociedade", responde o ministro.
A luta contra o EI está alimentando uma nova desconfiança em relação aos sunitas. Um vídeo no YouTube, supostamente feito há poucos dias no Hospital Kadhimiya, em Bagdá, mostra quão explosiva a situação se tornou. Ele mostra um paciente sunita sendo agredido com pés de cadeira, mesas de cabeceira e vassouras. O homem não sobreviveu ao ataque.
Muitos sunitas fugiram para Bagdá para escapar do EI e dos combates. Um deles é Hamada Zaleh Atija, um agricultor da cidade de Duluaiya, perto de Samarra, onde contava com 1.500 pés de tangerina (mexerica). Agora ele está em uma longa fila para dinheiro em Sadr City, um bairro xiita.
Atija pertence à tribo sunita Buajil. Muitos dos membros de sua tribo na área do EI se juntaram aos jihadistas. Eles não confiam no governo, que discrimina os sunitas e os exclui do serviço público e de posições no exército. Em 2007, eles começaram a lutar ao lado dos americanos contra a Al Qaeda, mas apesar das promessas, nunca foram admitidos no exército iraquiano.
Mas há outros motivos para se juntarem ao EI. O jornalista iraquiano Saud Murrani explica que para os homens jovens que vivem em aldeias profundamente religiosas –onde meninos e meninas são criados rigidamente separados– o EI representa uma espécie de libertação. Ele diz que ele lhes dá a oportunidade de conseguirem tudo pelo que anseiam, incluindo sexo, influência e poder, ao mesmo tempo lhes permitindo ver a si mesmos como lutando ao lado de Deus.

Açoitado em público

O primo de Atija, por exemplo, se juntou ao EI. "Ele é um menino estúpido", diz Atija. "Ele adora carros velozes e acredita que o EI o tornará rico."
Um homem chamado Hussein também está esperando na fila. Ele era funcionário de um depósito do Ministério do Petróleo em Tikrit. Ele viveu no "califado" por 22 dias com sua família até conseguirem fugir. Naqueles dias, só havia uma regra, diz Hussein: "Alá". Todos tiveram que entregar seus cigarros. A primeira vez que alguém era pego fumando, a pessoa recebia um alerta; na segunda vez, o dedo mínimo era quebrado; na terceira, era açoitada em público. Quando os radicais ocuparam o Ministério do Petróleo em Tikrit, eles demitiram todos os funcionários. A esposa de Husam, uma professora de história e geografia, também não foi mais autorizada a trabalhar.
Apesar do EI seguir regras rígidas, sua estratégia é pragmática. Na cidade síria de Kobani, os jihadistas lutaram até o último homem, mas em outras partes, eles costumam se retirar rapidamente. A sede de sangue que costumam exibir diante das câmeras esconde os frios cálculos de custo-benefício que fizeram com que se tornassem bem-sucedidos.
O comandante da milícia Badr, Hadi al-Ameri, relatou no final de janeiro, por exemplo, que seus homens tinham retomado do EI a província iraquiana de Diyala, no nordeste. Mas, diferente da batalha em Tikrit, eles mal combateram. Um contador do EI explicou o que aconteceu: "O Hadi al-Ameri pagou vários milhões de dólares pela retirada de Diyala". Os sunitas que fugiram de Diyala, ele disse, ficaram responsáveis pela soma paga aos jihadistas. "Eles tiveram que pagar cerca de US$ 30 mil por aldeia caso quisessem retornar", diz o contador.
O EI dificilmente conseguiria manter Diyala – uma província sunita-xiita – por fazer fronteira com o Irã. Então os jihadistas preferiram pegar o dinheiro e se retirar. No passado, eles se retiraram com frequência de áreas por motivos igualmente pragmáticos, apenas para retomá-las depois. A atual meta deles parecer ser a consolidação de seu território, e isso exige dinheiro e combatentes, não combates desnecessários.
Se os iraquianos conseguirem expulsar o EI da segunda maior cidade do Iraque, Mosul, além de Tikrit, ou mesmo retomar todo o país –isso representaria um duro golpe para o autodeclarado "califa", Abu Bakr al-Baghdadi. Mas dificilmente representaria o fim da organização, já que o EI poderia recuar para a Síria a qualquer momento. Na semana passada, os jihadistas evacuaram para a Síria todo maquinário transportável de uma refinaria próxima de Baiji, além do equipamento de uma usina de açúcar e de uma fábrica de cimento próxima de Mosul.
Valor inestimável
Fora as bem organizadas forças curdas, o EI não enfrenta nenhuma ameaça real na Síria. Apesar do ditador sírio Bashar al-Assad estar oficialmente em guerra contra o EI, os combates se limitam aos campos de petróleo e a um pequeno número de cidades. E onde há grupos rebeldes sírios, o EI está cooperando tacitamente com o regime.
O exército de Assad não é capaz de derrotar o EI e nem essa derrota seria do interesse do regime. Afinal, o grupo islâmico horrendo provou ser um inimigo de valor inestimável: as atrocidades de Assad e as mais de 215 mil vítimas da guerra civil foram praticamente esquecidas devido ao medo do Ocidente da violência brutal dos jihadistas do EI.
De fato, apesar dos curdos terem conseguido forçar o recuo do EI no norte da Síria, os jihadistas enfrentaram pouco resistência no sul. Em dezembro, unidades do EI apareceram repentinamente na província de Daraa, na fronteira com a Jordânia, saindo do deserto em blindados de transporte de pessoal e utilitários esportivos. Eles passaram por duas das mais importantes bases aéreas do regime e cruzaram áreas que eram controladas pelo exército sírio. Ninguém os deteve.
Os golpes mais severos contra o Estado terrorista atualmente são desferidos pelos ataques aéreos da coalizão internacional contra as posições, comboios e armamentos pesados do EI.
O EI não é mais capaz de lançar grandes ataques ou realizar o tipo de deslocamento de tropas que conseguia em meados do ano passado. Mesmo dentro do território que controla, o Estado Islâmico está se tornando cada vez mais invisível: as bandeiras pretas que tremulavam em cada vilarejo até o final do ano passado foram retiradas em muitos lugares, e em Mosul, elas foram colocadas nas casas de famílias que se recusam a jurar fidelidade ao EI.
Em vez de se deslocarem em picapes e Humvees chamativos, eles agora utilizam táxis. Até mesmo as novas placas de automóveis do EI desapareceram rapidamente de seus veículos.
Fontes da "Spiegel" dentro do "califado" relatam que há ampla insatisfação com a situação desastrosa dos suprimentos. Há escassez de eletricidade, água potável e alimentos, indicações de que o EI não está conseguindo administrar seu território.
Mas essa insatisfação ainda não levou a uma resistência aberta. Diferente de grupos terroristas anteriores, o Estado Islâmico exerce controle total sobre seus súditos. Na Síria, ex-informantes do regime agora espiam para o EI, e no Iraque, o grupo conta com uma rede de espionagem que já existe há muitos anos. Crianças doutrinadas costumam ser usadas como espiãs.
Medo universal
Permissão por escrito é necessária para viagens entre cidades e para fora das fronteiras do "califado", com as viagens para fora do território tendo sido limitadas recentemente apenas aos doentes. Transferências de dinheiro são monitoradas. Posse de armas é proibida. "Nós temos medo de falar até mesmo em nossas casas e quintais", diz um velho sírio, que foi autorizado a visitar seu filho ferido em um hospital no lado turco da fronteira. "Eles têm ouvidos em toda parte. Ninguém mais confia em seus vizinhos –todos estão paralisados de medo." A paranoia dentro do EI é tão grande que os jihadistas até mesmo mataram dezenas de seus próprios membros, ou por suspeitarem de espionagem ou por se recusarem a combater.
No início de março, mais de 100 presos do EI conseguiram escapar para a cidade síria de Bab. A maioria dos fugitivos era curda. Dois terços deles foram recapturados pouco depois e a maioria foi executada. Um pequeno número conseguiu caminhar por várias noites até atravessar a fronteira turca e chegar a um local seguro. Um deles, um agricultor curdo, ainda treme de medo quando fala sobre sua provação. Ele não quis dizer seu nome porque, apesar de ter escapado, seu filho não conseguiu.
"A tortura era pior do que sob o regime", ele diz. "Eles nos atormentavam com bicos de Bunsen até confessarmos que pertencíamos ao PKK (o Partido dos Trabalhadores do Curdistão)." Então um ataque aéreo danificou as barras de ferro em frente de uma janela da prisão. "Nós forçamos a alvenaria por três dias e então fugimos em pequenos grupos." Ele estava no primeiro grupo e seu filho deveria vir logo depois dele. "Mas nós ouvimos disparos atrás de nós, então começamos a correr sem olhar para trás."
O Estado Islâmico está se tornando cada vez mais brutal, mas ainda tem seu território sob controle. O gerente de um café de Internet em Raqqa – uma cidade controlada pelo EI no lado sírio da fronteira – diz: "Quando os combatentes estrangeiros do EI chegam, eles abrem uma nova conta no Facebook, conversam com amigos ou parentes, e então deletam a conta". Até mesmo os apoiadores mais leais têm medo.
Tradutor: George El Khouri Andolfato 

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