domingo, 31 de maio de 2015

Escândalo de tortura abala polícia alemã
Jörg Diehl, Michael Fröhlingsdorf, Jasper Ruppert, Andreas Ulrich e Wolf Wiedmann-Schmidt - Der Spiegel
Ronny Hartmann/AFPPedestres em frente à delegacia da Polícia Federal na estação central de Hanover Pedestres em frente à delegacia da Polícia Federal na estação central de Hanover
Em seu tempo livre, Torsten S. se dedicava a atividades tipicamente rurais em seu vilarejo perto de Hanover: pescar, criar galinhas, cortar lenha, acelerar seu jipe no meio da lama. Mas se as acusações contra ele forem comprovadas, o sargento da polícia tinha um outro lado, mais sombrio, que se manifestava no trabalho. Há vários dias, o homem de 39 anos tem sido a peça principal de um caso que pode abalar a confiança dos alemães em sua força policial.
"Eu arrebentei a cara dele."
"Ele gritou como um porco."
"Daí o bastardo comeu o resto da carne de porco podre da geladeira. Direto do chão."
Estas e outras frases semelhantes foram supostamente enviadas por Thorsten S. a colegas através do serviço de mensagens WhatsApp, enquanto ele se gabava da forma como havia tratado dois homens, um afegão e um marroquino, na delegacia de polícia. A emissora pública alemã Norddeutscher Rundfunk foi a primeira a divulgar as mensagens, juntamente com uma foto de uma das supostas vítimas deitada no chão, com as mãos amarradas, o rosto obviamente contorcido de dor.
A Anistia Internacional descreveu como tortura o que aconteceu na delegacia, que fica na principal estação ferroviária de Hanover. Parece uma coisa que poderia acontecer em Abu Ghraib –- não no Estado da Baixa Saxônia, no norte da Alemanha, não em um departamento oficial da polícia alemã em 2015.
O incidente foi revelado por dois colegas de Thorsten S. na Inspetoria da Polícia Federal em Hanover. Por meio de um advogado, eles entraram com uma queixa no Ministério Público em 7 de maio. Seis dias depois, o tribunal local aprovou um mandado de busca à casa do sargento. Entre os motivos, estava a suspeita de que ele tinha cometido lesão corporal enquanto estava em serviço.

Outro incidente

O mandado, no entanto, menciona outros incidentes além do suposto abuso aos imigrantes na delegacia de polícia em março e setembro de 2014. Em agosto de 2013, Torsten S. teria colocado seu pênis sobre o ombro de um outro policial e ordenado que ele o pusesse na boca, enquanto apontava sua arma de serviço para a cabeça do colega. O juiz incumbido da investigação descreveu isso como uma possível tentativa de estupro. Torsten S. disse à Spiegel que as acusações contra ele são "exageradas", mas recusou-se a falar mais, a conselho de seu advogado.
Ainda não está claro por que levou tanto tempo para que as acusações viessem à tona e por que seus colegas guardaram silêncio por tantos meses.
Membros do sindicato da polícia tentaram abafar espontaneamente a discussão sobre essas questões: as acusações são graves e precisam ser investigadas, dizem eles, mas insistem que o caso é único. Infelizmente, dizem, existem ovelhas negras em todos os lugares.
Mas este caso não será resolvido tão facilmente. Fontes nos círculos policiais dizem que há muito se sabe que a unidade de polícia de Hanover à qual Thorsten S. pertence já teve problemas sérios. Os agentes da polícia relataram problemas para o supervisor da delegacia, que por sua vez procurou a sede da Polícia Federal em Hanover, disseram fontes policiais. O supervisor da delegacia pediu que uma equipe de investigação fosse criada para investigar os acontecimentos na delegacia da estação ferroviária. Seus próprios homens, disse ele, de acordo com as fontes policiais, não se sentiram à altura da tarefa. Por mais de meio ano, houve relatos de que "estavam acontecendo coisas erradas" na estação.
Mas nada foi feito, dizem as fontes.
Na manhã de terça-feira, o ministro do Interior, Thomas de Maizière, membro dos Democratas Cristãos da chanceler Angela Merkel, chamou o diretor da Polícia Federal, Dieter Romann, ao Ministério do Interior. Depois, Romann foi diretamente a Hanover, onde visitou a delegacia de polícia onde os ataques teriam acontecido. Romann disse aos policiais que espera que a questão seja completamente resolvida. Ele disse que a investigação também vai identificar aqueles que observaram alguma coisa mas não disseram nada. Aqueles que fizeram vista grossa também são culpados, disse ele.
Na quarta-feira, Romann se pronunciou sobre as acusações diante da Comissão de Assuntos Internos do Parlamento alemão. Além de reconhecer a perversidade das acusações, ele também expressou seu descontentamento com os dois policiais que só se manifestaram muitos meses depois que o abuso supostamente aconteceu. E com o fato de as acusações terem ido parar na mídia quase ao mesmo tempo.

Dúvidas quanto aos testemunhos

Líderes da Polícia Federal alemã não têm tanta certeza de que existam apenas intenções nobres em jogo, disse ele. Supostamente, os dois oficiais que estão no centro do caso eram amigos antes de brigar por causa de avaliações de desempenho. Se suas acusações contra Thorsten S. vierem a ser falsas, os dois queixosos podem ter de responder judicialmente. Mesmo que tudo o que alegam seja verdade, eles podem ter problemas por terem permanecido em silêncio e não intervir.
Em interrogatórios realizados pelo Ministério Público em Hanover, os dois oficiais se mantiveram fiéis à sua história original. Mas os investigadores estão céticos quanto a esclarecer completamente as acusações -– o que depende, em grande parte, de encontrar as supostas vítimas ou mais testemunhas. Uma equipe composta de oito oficiais foi formada para dar prosseguimento à investigação.
"A imagem da polícia federal já foi enormemente prejudicada", diz Frank Tempel, membro do Partido de Esquerda no Parlamento alemão. Antes de entrar para a política, Tempel trabalhou como policial e seu partido está defendendo a criação de um cargo de representante independente da polícia, a quem os oficiais possam recorrer imediatamente sem serem tachados de traidores.
Irene Mihalic, do Partido Verde, que também foi treinada na polícia, concorda, dizendo que "apenas um cargo independente fora da hierarquia da polícia pode resultar num monitoramento real".

Projetando uma imagem de durão

De acordo com o criminologista Rafael Behr, de Hamburgo, que estuda a cultura das unidades policiais há cerca de 20 anos, o clima em muitos departamentos de polícia favorece os segredos. As unidades criaram a noção de que os destinos dos policiais estão entrelaçados, que eles estão constantemente sob a ameaça de criminosos, bêbados e de um mundo exterior hostil. Ele diz que a regra, mesmo que um oficial ultrapasse os limites, é de que os policiais permaneçam unidos.
Este, diz ele, é um dos motivos pelo qual apenas uma fração das cerca de duas mil investigações contra a polícia por casos de violência vá parar nos tribunais a cada ano. "Você não abre a boca sobre um colega, esta é a regra de ouro", diz Behr.
Força, hombridade, solidariedade –- são estes os valores que contam neste mundo. Thorsten S. se retratava como um policial durão: ele levantava pesos e mostrava seus músculos nas mídias sociais. Internamente, ele era considerado um problema já havia algum tempo. Seu consumo excessivo de álcool causou polêmica anos atrás e mais recentemente ele foi alvo de um procedimento disciplinar depois de um suposto caso sexual com um colega no bloco de celas da delegacia de polícia da estação ferroviária.
Mas ele ainda não havia sido suspenso. Agora, ele não pode mais usar o uniforme e sua arma foi confiscada. Quando a polícia fez a busca em sua casa, encontrou outra arma, aparentemente ilegal: uma espingarda de pressão.
Tradutor: Eloise De Vylder 

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