sexta-feira, 29 de maio de 2015

Partido Comunista corrompeu a língua chinesa para esconder realidade
O vernáculo chinês foi brutalizado - e o Partido Comunista é o principal culpado
Murong Xuecun - TINYT
Jason Lee/Reuters
O presidente da China, Xi Jinping, durante o Congresso Nacional do Povo, em marçoO presidente da China, Xi Jinping, durante o Congresso Nacional do Povo, em março
Em um passeio recente por uma rua da cidade de Sanya, no sul da China, ouvi uma loja bombando uma versão em rock do famoso hino do Partido Comunista "O Socialismo É Bom". Apesar de eu detestar essa canção, conforme a música aumentou em volume, eu me vi cantando em um murmúrio: "Os reacionários derrubados/ os imperialistas fogem com o rabo entre as pernas.... o Partido Comunista é bom/ o Partido Comunista é bom/ o Partido Comunista é um bom líder do povo".
Durante décadas, canções do Partido Comunista como esta vêm ressoando nos ouvidos dos chineses. Para muitas pessoas, inclusive para mim, as canções formam a trilha sonora de nossa juventude. Ainda hoje, apesar de o partido ter se tornado comunista só no nome, elas ainda enchem as ondas aéreas. É difícil exagerar a extensão de sua influência, não apenas no espírito chinês, mas na própria língua.
Mais de 60 anos de educação comunista para o ódio, propaganda idiota e ampla destruição da civilização clássica provocaram um novo estilo de falar e escrever. A língua chinesa foi brutalizada - e o Partido Comunista é o principal culpado.
Não são apenas as proclamações do governo que ecoam em dura cadência e fervor revolucionário, mas também obras literárias e acadêmicas e, mais perturbador, o discurso privado.
A linguagem padrão das autoridades graduadas do partido, mesmo nas ocasiões mais solenes, inclui aforismos banais como "para se transformar em ferro o metal deve ser forte". Proclamações oficiais e os noticiários noturnos falam em "harmonia social" e "espírito chinês". Além de promover o "sonho da China" e uma forte ética do trabalho, o presidente Xi Jinping é conhecido por pronunciar frases como "nunca permitir que comam a comida do Partido Comunista e depois quebrem as panelas do Partido Comunista".
A máquina de propaganda e educação do governo foi além da amargura revolucionária sedenta de sangue. Nossos livros de textos são litanias de atos heroicos brutais: "Deter uma arma com seu peito, segurar uma bomba em suas mãos, deitar-se sobre uma fogueira sem se mover até que você morra queimado". Quase toda criança chinesa ainda usa no pescoço um lenço vermelho, "tingido com o sangue dos mártires", e muitas crescem cantando as canções dos jovens pioneiros: "Sempre preparados para realizar atos nobres, para arrasar nosso inimigo".
Décadas desse discurso do partido foram projetadas pela poderosa máquina de propaganda diretamente na mente das pessoas e no vernáculo chinês. Nos últimos anos, cheguei a ouvir muitos amigos, alguns deles dissidentes, usarem a linguagem de nossos propagandistas, e não de forma irônica.
Dois anos atrás, em uma pequena cidade na província de Shanxi, no centro do país, ouvi dois velhos agricultores discutindo o que era mais satisfatório: uma tigela de arroz ou um bolinho ao vapor. Conforme a discussão se aqueceu, um agricultor acusou o outro, sem ironia, de ser um "metafísico".
Mao Tsé-tung era cético sobre a metafísica, e assim, ao longo dos anos, tornou-se um conceito dúbio, usado na propaganda chinesa como um termo pejorativo. É razoável supor que esses dois agricultores não soubessem muito sobre metafísica, mas usavam a palavra como um insulto, diretamente do léxico do partido. Outras expressões, como "idealista" e "sentimentalista pequeno-burguês", tornaram-se termos cotidianos de agressão, mesmo quando os que os utilizam claramente não têm uma ideia real de seu significado.
A linguagem revolucionária é onipresente entre a população chinesa comum. É comum nos referirmos aos setores econômicos, como indústria e agricultura, como "frentes de batalha". (A maioria dos locais de trabalho é na verdade chamada de "frente".) Uma pessoa continuar trabalhando quando está doente é comparada com "os feridos que não abandonam a linha de frente". Muitas grandes empresas falam sobre suas equipes de marketing como "exércitos" ou "tropas", e seus territórios de vendas como "zonas de batalha".
O acadêmico literário Perry Link e outros chamaram isto de "linguagem de Mao". Em um ensaio de 2012 no ChinaFile, o site da Sociedade da Ásia, Link escreveu que essa linguagem é "muito mais carregada de metáforas militares e influências políticas do que a maioria". No mesmo artigo, ele deu alguns exemplos de como a linguagem de Mao se instilou no uso cotidiano: "No final de banquetes, ainda hoje os chineses continentais às vezes pedem que seus amigos 'aniquilem' [xiaomie] os restos; na última vez que estive em Pequim, uma mãe em um ônibus respondeu a seu filho pequeno, que disse 'Mamãe, eu realmente preciso fazer pipi!', assim: 'Jianchi! [seja firme]. O tio motorista não pode parar aqui'".
As raízes dessa nova língua chinesa naturalmente remontam a Mao. Em seu discurso de Yan'an em 1942, exortando os escritores e artistas a "servirem ao povo", Mao pediu que os autores usassem linguagem compreensível para a população. Mesmo em ensaios que escreveu antes que o Partido Comunista tomasse o poder, Mao rejeitou o uso de palavras "sombrias", que "as massas" não entenderiam. Em reação direta aos ditames de Mao, o aparelho do partido promoveu "a língua do povo" - um estilo simples, de fácil compreensão.
O emburrecimento de nossa língua pelo Partido Comunista foi uma iniciativa deliberada para degradar o discurso público. A Revolução Cultural a levou ao extremo: a discussão intelectual, juntamente com a razão, foi jogada pela janela. Nesse ambiente, as palavras perdem o verdadeiro significado. Então o partido pode usar as palavras para confundir e mentir.
Por exemplo, autoridades do partido falam em construir um Estado socialista sob o "regime da lei", mas, quando adotam a expressão, querem dizer que o partido usa a lei para dominar as pessoas.
Esse uso deliberado da língua para obscurecer e confundir serve a um claro objetivo: esconder a realidade da falta de democracia na China e de fato fingir que ela existe.
Não posso afirmar que tenho a resposta para resistir ao uso da língua pelo partido. Tampouco sei como impedir que isso penetre nosso vernáculo. Mesmo alguém como eu, um escritor que tem aguda consciência de que o partido tenta nos manipular, não consegue deixar de sussurrar as canções do partido de vez em quando.
Meu grande medo é resumido por George Orwell, que escreveu: "Se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento".

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