domingo, 31 de maio de 2015

Para 'herdeira' da Guerra do Vietnã, preservar a história é manter o trauma
Para os laociano-americanos da minha geração, os traumas psíquicos de nossos pais estão entrelaçados em nosso DNA
Mai Der Vang - TINYT
Na manhã de 14 de maio de 1975, em um vale de rochas calcárias, cavernas e sumidouros, o fim se aproximava. Os pertences descartados por aqueles que tinham fugido estavam por toda parte: malas, sapatos, blusas amassadas. Tratava-se de Long Tieng, uma base aérea secreta estabelecida pela Agência Central de Inteligência para liderar operações clandestinas no Laos durante a Guerra do Vietnã.
Naquela manhã, assim como nos dias anteriores, milhares de civis hmong invadiram a pista de terra, esperando uma chance milagrosa de entrar em um avião de carga e fugir em tempo. Alguns agarraram-se ao avião enquanto o piloto tentava taxiar, e só soltaram depois que o motor rugiu. Enquanto isso, no complexo deserto da CIA, os rádios nem tinham sido desligados e as máquinas ainda estavam funcionando. O Vietnã já tinha caído para os comunistas e o Laos seria o próximo.
Durante a Guerra do Vietnã, os negociadores em Genebra concordaram que o Laos permaneceria neutro. Mas como os Estados Unidos temiam a disseminação do comunismo, a CIA dirigiu uma operação secreta no Laos conhecida como Guerra Secreta. Ela recrutou Vang Pao, um general carismático e bastante respeitado, junto com dezenas de milhares de homens e meninos hmong como combatentes. Durante uma década e meia, o general Vang Pao e seus guerrilheiros hmong lutaram ao lado dos norte-americanos.
Naquela manhã caótica, a Guerra Secreta terminou de forma chocante. Depois de uma extração rápida, seguida por décadas de exílio, o general Vang Pao, que morreu em 2011, nunca mais viu sua terra natal. Muitos de seus altos oficiais tinham sido retirados em voos anteriores, mas milhares de pessoas foram abandonadas na pista de voo, e um número maior ainda foi deixado para trás por todo o Laos. Long Tieng, antes um reduto simbólico da ocupação norte-americana, estava agora em ruínas.
Este mês marca 40 anos desde a queda de Long Tieng e o início do êxodo dos hmong do Laos. Marca a deserção de um povo que foi abandonado à própria sorte, sem nada para reconstruir suas vidas. Marca a traição do governo dos Estados Unidos, que entrou num país desconhecido, travou uma guerra durante anos, e depois abandonou tudo de uma hora para outra. Marca uma paisagem devastada por conflitos, com aviões de guerra norte-americanos derrubando uma quantidade de munição equivalente a um avião carregado de bombas a cada oito minutos, 24 horas por dia, durante nove anos no Laos, de acordo com a Legacies of War, uma organização que trabalha para conscientizar as pessoas sobre munição não detonada.
A retirada do general Vang Pao do Laos levou dezenas de milhares de pessoas a fugirem. Meus pais fugiram com suas famílias a pé, caminhando durante dias em direção à Tailândia, assolados pela fome e doenças. Nem todos sobreviveram. Uma das tias mais velhas de meu pai estava carregando uma arma para alguém. Quando os refugiados encontraram tropas comunistas, os soldados imediatamente concluíram que ela era uma guerrilheira hmong porque carregava uma arma. Eles a mataram ali mesmo e deixaram seu corpo ao longo da estrada.
O governo dos EUA não tinha previsto que os refugiados inundariam a Tailândia em busca de asilo. Quando os norte-americanos inicialmente recrutaram os hmong, supostamente concordaram em ajudar caso a guerra se tornasse desastrosa. Essa promessa foi cumprida em relação ao general Vang Pao e seus altos oficiais, mas não em relação ao restante das pessoas. Só depois de anos vivendo em acampamentos ilegais, junto com a pressão do governo tailandês, os Estados Unidos concordaram em reassentar os hmong.
Como um hmong norte-americano, sinto os tremores de guerra transferidos de geração em geração. Eu sei agora que, embora uma pessoa possa fugir de um país devastado pela guerra, ela jamais pode fugir do trauma. Às vezes, vejo meu pai sentado sozinho na sala, assistindo a vídeos da guerra, talvez numa tentativa de lembrar o que poderia ter sido. Minha mãe, por sua vez, não pode suportar o ruído de fogos de artifício no 4 de julho porque eles reavivam memórias de morteiros explodindo.
Hoje, a maioria dos norte-americanos não sabe nada sobre a Guerra Secreta. Os funcionários da CIA concluíram a operação confidencial quando tudo deu errado. Foi uma guerra descartável, destinada a parecer que nunca tinha acontecido. Mas a presença dos hmong nos Estados Unidos, hoje mais de 260 mil pessoas, concentrados na Califórnia e Minnesota, é uma prova viva dos resultados.
A guerra e as suas consequências hoje estão incrustadas em minha identidade. Sou uma filha da diáspora, nascida no ano que meus pais começaram uma nova vida nos Estados Unidos, simbolizando há quanto tempo eles deixaram o Laos.
Eu me pergunto: como alguém rememora uma guerra fracassada que a maioria das pessoas não conhece ou prefere esquecer? Como minha geração pode tentar preservar as memórias daquela guerra para que as futuras gerações saibam dela? O que acontece quando nos adaptarmos totalmente à cultura norte-americana e perdemos a narrativa de quem somos? Mesmo agora, faço mais perguntas do que tenho respostas. Mas eu sei que muitos de nós estamos ligados de forma inata a este trauma, como se ele estivesse entrelaçado em nosso DNA.
Para os hmong, preservar a história e a identidade significa também preservar o trauma e a perda. Eu carrego as aflições desta guerra, embora nunca tenha ouvido uma bomba explodir ou temido que meus passos pudessem detonar uma mina. Esta guerra é minha herança.
Mas também acredito que devemos criar uma nova narrativa, uma que não só acolha o trauma, mas construa algo a partir dele. Devemos ressignificar os destroços para que sirvam como um lembrete de quem somos, enquanto reconhecemos o que os mais velhos suportaram.
Faz 40 anos que o general Vang Pao fugiu naquele 14 de maio, olhando para as montanhas do Laos pela última vez. Quarenta anos desde que o último avião norte-americano partiu e deixou para trás um povo devastado pela guerra, uma terra assolada por munições não detonadas e uma Long Tieng abandonada. Ao olharmos para o futuro, para além da perda de nossa terra natal, precisamos construir uma fortaleza de identidade hmong que possa suportar os efeitos do exílio e da diáspora; uma que não se lamente pelo que poderia ter sido, mas, em vez disso, transforme o trauma naquilo que podemos ser plenamente.
Tradução: Eloise De Vylder

Queda de Saigon marcou fim da Guerra do Vietnã há 40 anos
10.abr.1975 - Soldado do Vietnã do Sul faz gesto enquanto corre por estrada em Tan An durante batalha, nos momentos finais da Guerra do Vietnã; há 40 anos, em 30 de abril de 1975, o Vietnã do Sul perdia o controle de Saigon, hoje chamada de Ho Chi Minh, levando ao fim da guerra  Lien/AP
40 anos após guerra, Vietnã ainda sofre efeitos do agente laranja
Entre os anos de 1962 e 1971, o Exército americano espalhou no Vietnã milhões de litros de herbicidas como o agente laranja, fabricado pela multinacional Monsanto, contaminando alimentos e água e deixando pessoas doentes ao longo de três gerações. Segundo a Associação Vietnamita de Vítimas do Agente Laranja/Dioxina (VAVA), 4,8 milhões de pessoas foram expostas ao herbicida e mais de 3 milhões sofrem seus efeitos. A guerra terminou em 30 de abril de 1975 Reprodução/Wikicom

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