Carta a Antonio Palocci
O que o senhor chama de melhor dos momentos de seu governo é aquele em que o projeto de dominação petista ganhou veio
Carlos Andreazza - O Globo
O senhor
nunca me enganou. Nem quando era vendido como petista pragmático,
interlocutor dos mercados e fiador de Lula junto ao setor produtivo.
Nunca me enganou. E é provável que mesmo os que então o compravam não se
enganassem. Havia dinheiro a ganhar, porém. E, nisso, numa grande ode à
desfaçatez, estavam todos afinados — não é?
Talvez seja o caso
de informar que este que lhe escreve não é um idiota. Para mim, o senhor
sempre foi aquele sob cuja gestão se quebrou o sigilo bancário de um
caseiro que, segundo a mente mafiosa, poderia comprometer o ministro da
Fazenda — um dos mais representativos episódios sobre até onde o petismo
pode ir para defender seu projeto de poder, ataque do Estado a um
indivíduo. Barbárie mesmo depois da qual o senhor não apenas coordenaria
a primeira campanha de Dilma como ainda lhe seria chefe da Casa Civil.
Para mim, isso é — sempre foi — Palocci e PT.
Que o senhor não
tenha dúvida sobre minha pretensão de ser direto. Li sua carta à
senadora Gleisi e ao comando da organização que ela dirige. Analisei-a
sob a desconfiança que o histórico de sua vida pública impõe, o que
estabelece premissa incontornável: se é provável que revele verdades,
muito maiores são as chances de que o faça para esconder outras tantas.
Gente como o senhor foi treinada para não agir senão com método. É
preciso ter límpido, pois, o entendimento sobre as condições em que
resolveu falar.
Não é porque se trate de um petista entregando
outros que devem ser afrouxados os critérios sobre o peso probatório
daquilo que se tem a relatar. Quem delata ou negocia para delatar é
bandido confesso. Aqueles delatados, não. Não necessariamente. Sim: não
acredito no senhor; mas isso só desqualificará sua delação se o conteúdo
do que alcaguetar for tratado como algo mais do que meio para obtenção
de prova. Não importa se Odebrecht, Batista, Funaro, Cunha ou Palocci,
qualquer um nessa posição é um encrencado — um preso, condenado ou em
vias de — em busca de aliviar a própria barra.
Não sou — admito —
um homem desprovido de perversões. Sei apreciar uma boa estratégia mesmo
que traçada pelo pior dos canalhas. Divirto-me com o xadrez que o
senhor esgrime contra os de seu partido. É pura ciência. O senhor
conhece a raça e, como é inteligente, tem conseguido se manter alguns
corpos à frente até de Lula. Como é inteligente e cínico, está à vontade
para aplicar um xeque-mate como esse em que questiona o fato de o PT
nunca o ter punido pelos crimes em decorrência dos quais foi condenado,
mas se mobilizar para penalizá-lo agora que se dispõe a revelar as
ilegalidades cometidas pelo partido no curso dos anos em que governou o
país.
É devastador o poder político de uma crítica moral feita por
um amoral. O senhor é o que se chama de petista histórico — um
fundador, prefeito pioneiro (junto, aliás, com Celso Daniel) nos
projetos-piloto que testaram o modelo de ocupação do petismo. O senhor é
um sobrevivente à procura de sobreviver, e sabe que as acusações de um
de dentro dinamitam o blá-blá-blá de que a elite se articula para
derrubar as conquistas do povo. Não é mais um empreiteiro a destampar os
fundos — fornidos de propina — para sustentar a expansão autoritária do
partido, mas Antonio Palocci, o formulador da tal “Carta ao povo
brasileiro”, um dos pilares do castelo de cera sobre o qual o PT erigiu
sua farsa. O senhor sabe a força que tem — força que é também de
barganha.
Por favor. Sua principal motivação não é que toda a
verdade seja dita, sobre todos os personagens envolvidos; mas que
alguma, sobre alguns, baste para um acordo que abrevie os anos de
cadeia. Falar a verdade — ou convencer de que o faz — é sempre o melhor
caminho a quem não tem alternativa. O senhor não decidiu colaborar com a
Justiça por estar arrependido e disposto a contribuir para a apuração
de crimes etc. A sua própria carta oferece os elementos indicativos de
que não se compungiu senão dos erros de procedimento que afinal
expuseram o assalto petista ao Estado.
O senhor é inteligente, mas
vaidoso. E, quando se elogia, se trai. Lula não sucumbiu ao pior da
política no melhor dos momentos de seu governo. Lula e o PT sempre foram
Lula e o PT, e o que o senhor chama de melhor dos momentos é aquele,
exato, em que o projeto de dominação petista encontrou o veio — o mito
do pré-sal — por meio do qual se robustecer e avançar. O senhor,
objetivamente, considerava isso necessário — e trabalhou pelo sucesso do
aparelhamento: para ver em movimento, na prática, a própria definição
de esquerda no poder, inflando o Estado para ampliar a superfície a ser
pilhada. E estaria lá, a serviço, ainda hoje, não tivesse a casa, enfim,
caído de vez.
Por isso chama de “mau governo” o de Dilma. Não por
haver redobrado as apostas irresponsáveis do antecessor, mas porque,
incompetente em todos os sentidos, acelerou o derretimento do legado
artificial lulista, o que escancarou — sem dinheiro para novas defesas
populistas — a “rede de sustentação corrupta” do esquema partidário.
O
senhor sente saudade de quando a aprovação do governo Lula era de 95%,
ambiente de fartura propício ao desenvolvimento do mais ambicioso
projeto de tomada do Estado por um partido da história do Brasil. O
senhor sente saudade de quando ainda havia petrodólares para comprar o
engano alheio — essa, a saudade do vício, a essência de sua carta.
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