domingo, 8 de outubro de 2017

Racionalidade e sonambulismo
Atores políticos perderam, propositalmente ou não, a capacidade de observar as consequências derivadas da tentativa de salvar a própria pele
- O Globo
Desvendar e compreender a racionalidade que orienta o processo de tomada de decisão dos atores políticos é tarefa precípua do analista. No jogo político, o espaço para ações “irracionais” é restritíssimo. Todo ator político observa o contexto e o arcabouço institucional e, a partir dessa observação, opta pela estratégia que mais se aproxima dos seus objetivos. Por outro lado, é difícil observar a aguda crise institucional vivida hoje sem que venha à cabeça a magnífica historiografia da causa da Primeira Guerra Mundial descrita por Christopher Clark.
Se até pouco tempo atrás a possibilidade de uma nova intervenção militar era considerada improvável e remota, em 1914 o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando foi apenas o “fósforo” aceso em um “tanque de gasolina” impregnado de alianças instáveis entre as grandes potências. Uma nova intervenção militar não interessa a ninguém, assim como a guerra não interessava à Europa. Mas, em ambos os casos, o instinto de autopreservação foi — e poderá ser — o fator que desencadeou um processo incontrolável.
Não é de hoje que se fala em “judicialização da política”, ativismo judicial e usurpação de competência. Também não é novidade que o Legislativo se abstém de legislar sobre matérias polêmicas e delega essa tarefa para o STF. Mas, mais grave que isso, delega ao Supremo a última palavra na interpretação do regimento interno do próprio Congresso numa demonstração clara do baixo grau de institucionalização de regras mínimas a respeito do funcionamento do Legislativo.
Não fosse isso o suficiente, temos ainda o ano de 2013 como um marco no divórcio entre representantes e representados. As manifestações daquele ano não apenas mostraram a falência dos canais de representação, mas também “delegaram” simbolicamente ao Judiciário e aos órgãos investigativos a tarefa de depurar o sistema político, elegendo a Lava-Jato como detentora da “vontade geral”, mesmo com os pendores totalitários inerentes à consagração de um novo “soberano”.
À medida que as investigações foram avançando, o sistema político se deteriorou, e nesse processo os atores políticos perderam — propositalmente ou não — a capacidade de observar as consequências derivadas da tentativa de salvar a própria pele e destruir o outro em um contexto de quase total ausência de legitimidade.
O que talvez não se soubesse — e se soubesse foi solenemente ignorado — era que o Poder Judiciário representava o último cordão de isolamento entre a política e os militares, o que ficou muito claro na palestra do general Mourão na loja maçônica de Brasília, e que teve o não tão tácito aval do alto comando.
É nesse contexto que o Senado e o Supremo travarão o embate a respeito de quem tem a última palavra quando se trata do afastamento de parlamentar. No centro desse embate está Aécio, neto de um dos responsáveis por mandar os militares de volta para os quartéis.
Por uma dessas ironias da História, o neto de Tancredo poderá ser o “fósforo” no rastilho do desentendimento entre os poderes da República. A Constituição de 1988 é ambígua quanto ao papel das Forças Armadas, mas, em tempos de baixa da hermenêutica jurídica, quem dará a última palavra em uma eventual intervenção? Como avisou o general: “Não será fácil".

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