Filme sobre Margaret Thatcher reacende debate sobre as políticas da ex-premiê britânica
John Campbell - Prospect
Dez anos depois que saiu do poder, a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher apareceu na conferência de primavera do Partido Conservador em Plymouth para apoiar o líder na época, William Hague. Observando que um cinema local estava exibindo o filme “O Retorno da Múmia”, ela sem saber fez uma piada com isso, sem perceber que se tratava de um filme de terror e não tinha nada a ver com uma figura materna carinhosa (“mummy” em inglês britânico significa tanto “mamãe” quanto “múmia”). Ao fazer a piada sobre si mesma, ela sem saber evocou todas as charges que durante anos a retrataram como um fantasma assombrando o Partido Conservador.
Agora a múmia retornou com uma vingança para assombrar o atual primeiro-ministro David Cameron. O novo filme “A Dama de Ferro”, que será lançado no Reino Unido em 6 de janeiro, estrelado por Meryl Streep, está numa escala diferente em relação às representações anteriores de Thatcher, que foram mais ou menos satíricas. Ele mostra que, mesmo viva, a primeira e até agora a única primeira-ministra mulher da Inglaterra entrou para a história como uma figura mítica maior do que a política.
O roteirista do filme (Abi Morgan), a diretora (Phyllida Lloyd) e a estrela (Streep) não eram apoiadores de Thatcher quando ela estava no poder, mas tentaram ir além das atitudes polarizadas dos anos 80 e vê-la de outra forma. Não é que eles passaram a gostar mais dela com os anos, mas reconhecem-na como figura pública dominante que moldou suas vidas. Alguns anos atrás havia uma peça, “Thatcher: O Musical”, que fez turnê na Inglaterra, mas infelizmente nunca chegou a Londres. Ele começava com a primeira de nove atrizes que interpretavam a primeira-ministra durante a noite praticamente provocando o público com o refrão: “Eu estou no seu DNA”. Ame-a ou odeie-a, Thatcher está no DNA de todos com mais de 35 anos na Inglaterra.
O cerne do filme mostra Thatcher em seu auge, de uma forma simpática a ela, mas um tanto unidimensional, como uma espécie de Mulher Maravilha, varrendo tudo à sua frente até que excede suas forças e é derrubada. Ele não diz praticamente nada sobre suas ideias ou seu legado político. Ele apresenta sua história simplesmente como o triunfo da força de vontade individual, como se o Thatcherismo não fosse nada além da emanação de sua própria personalidade; não como ele de fato era – a face britânica da revolução global contra o coletivismo.
Essa revolução global é agora quase universalmente reconhecida como uma reação necessária contra a ineficiência esclerosada do que Thatcher chamava de “socialismo” - de fato (na Inglaterra pelo menos) uma combinação de trabalhismo, keynesianismo e corporativismo. A liberalização da economia através da privatização, a restrição do poder dos sindicatos e a desregulação da Cidade de Londres desprenderam uma onda imensa de energia econômica, tão grande que todos os partidos entraram nela. Mas essa onda quebrou em 2008, com consequências que estão apenas começando a ser sentidas. O que a mordida no crédito, a crise bancária e a crescente reação contra a extrema desigualdade fizeram para a reputação de Thatcher?
Até 2008, o legado de Thatcher incorporou um paradoxo. O Thatcherismo havia vencido amplamente o argumento ideológico, tanto que não só o próximo governo conservador de John Major como também todo o “projeto” do “Novo Trabalhismo” aceitaram e até mesmo estenderam as políticas de Thatcher – sobre impostos, serviços públicos e uma regulação “de toque leve”. Mas ambos os partidos se recusaram a reconhecer sua dívida. Era compreensível que figuras trabalhistas como Gordon Brown e David Blunkett, que haviam denunciado Thatcher nos anos 80, ficassem envergonhadas de ter adotado suas políticas.
Mas os conservadores também sentiram a necessidade de se distanciar de sua antiga heroína. Hague ficou patentemente envergonhado com seu apoio, e o Partido Trabalhista em 2001 pensou em assustar o eleitorado retratando-o com o cabelo de Thatcher. A única missão parcialmente bem sucedida de Cameron desde 2005 foi “desintoxicar” o Partido Conservador ao se distanciar de seu legado. Mais recentemente houve uma espécie de abrandamento das atitudes em relação a ela, em parte por compaixão por ela estar com Alzheimer, mas também por nostalgia de uma época em que a política era mais excitante e clara.
Agora, de repente, à medida que a “Dama de Ferro” levou Thatcher de volta ao noticiário, os conservadores não conseguem se decidir se a culpam como madrinha da crise atual ou olham para ela como a forte líder cujo exemplo deveríamos seguir para sair da mesma. Essa ambiguidade deriva dos dois lados do caráter dela, que ficaram refletidos nos dois aspectos conflitantes do Thatcherismo.
Por um lado ela era filha do dono de duas mercearias, uma apóstola do comedimento que nunca teve um cartão de crédito. Seu lado moralista desaprovava o capitalismo de cassino que sua filosofia de mercado livre havia incentivado. Mas Thatcher também foi responsável pela cultura do “monte de dinheiro” do final dos anos 80 e pela maior expansão de crédito da história que continuou até 2008.
Enquanto qual Maggie ela seria hoje? Pode-se assumir que ela deploraria as consequências não intencionais de suas últimas políticas e voltaria a ser a Thatcher de 1981. Naquela época, ela e o então chanceler do Tesouro, Geoffrey Howe, desafiaram a ortodoxia keynesiana de 364 economistas que escreveram para o The Times pedindo que ela reaquecesse a economia. Em vez disso, ela insistiu em aumentar os impostos e cortar gastos até durante a recessão, para cortar a inflação e equilibrar o orçamento. Thatcher provavelmente aplaudiria a recusa da chanceler Angela Merkel em imprimir dinheiro para resgatar as nações mediterrâneas imprudentes.
Os críticos conservadores já estão usando o filme para repreender Cameron e George Osborne, o atual chanceler do Tesouro, como fracos coalizionistas que precisam de uma injeção de pulso à Thatcher. Mas seria um erro para Cameron responder a essas críticas tentando imitar a atitude heroica de Thatcher. Ela própria só conseguiu se sair bem com isso em seus primeiros anos, por conta de uma combinação de sua personalidade particular e circunstâncias favoráveis.
Ela foi capaz de se vangloriar dizendo que “não era de virar” só porque os críticos dos conservadores e uma oposição fragmentada não conseguiam criar uma alternativa convincente, e porque havia uma aceitação pública de que algum remédio amargo era necessário. No cenário mundial ela foi abençoada com Ronald Reagan, um presidente norte-americano excepcionalmente autoconfiante que permitiu que ela compartilhasse o holofote internacional com ele. Mas esse estilo grandioso não funcionou muito bem no tocante ao presidente da Comissão Europeia, Jacques Delors, e nas questões de integração europeia. Tanto em casa quanto no exterior, o estilo da “Dama de Ferro” se tornou cada vez mais contraproducente.
O que o filme não transmite é que por trás da retórica forte, Thatcher era na verdade muito cautelosa. Ela não chegou no poder com um programa claro que implementou impiedosamente, mas sentiu cada passo do caminho com cuidado. Ela abandonou rapidamente o monetarismo rígido quando ele claramente não estava mais funcionando, e recuou de uma disputa de força com os mineradores quando ainda não estava preparada para vencer.
Thatcher se intitulava “uma política de convicção”, o que ela era; mas a primeira palavra era tão importante quanto a segunda. Ela era uma política astuta que navegou a onda da opinião pública, criando aceitação para medidas controversas enquanto avançava. Ela foi cuidadosa para nunca ir longe demais, à frente do eleitorado, até depois de 1987, quando se tornou cada vez mais autocrática, tentando reformar tudo o que estava à vista, desde a educação até as torcidas de futebol, e se deu mal com o “poll tax”, um cobrado de todos os adultos, sem ligação com sua renda ou recursos.
O que ela teve nos primeiros anos foi uma clareza essencial de propósito. Ela não sabia exatamente como chegaria lá, mas sabia a direção para a qual queria avançar e foi cada vez mais capaz de fazer isso à medida que a oposição caiu depois da Guerra das Malvinas. É essa clareza de propósito que mais a diferencia do ex-primeiro-ministro trabalhista Tony Blair e, pode-se suspeitar, também de Cameron.
A melhor lição que Cameron poderá tirar de seu exemplo é provavelmente o conselho de Polônio para Laerte em “Hamlet”: “Sê fiel a ti mesmo”. Uma das coisas mais notáveis sobre Thatcher era que ela extraordinariamente verdadeira consigo mesma. Todos que trabalhavam com ela diziam que você sempre sabia onde estava com ela. Essa honestidade básica era uma grande parte de sua força política, que contrasta com a maioria de seus antecessores e sucessores até hoje.
Qual é o verdadeiro eu de Cameron? Até agora temos pouca ideia disso. A impressão que está começando a se firmar é de que ele não é tão simpático quanto parecia, mas talvez não tão competente quanto parecia inicialmente tampouco. Como Blair, ele quer ser querido; ele também tem um problema que nem Blair nem Thatcher tiveram, tendo que liderar uma coalizão. Mas ele não transparece nenhum claro senso de propósito além da prioridade de cortar a dívida, e parece não ter nenhuma bússola política. Talvez isso não seja culpa sua. Thatcher tinha dragões para matar e um vento ideológico às suas costas. A crise atual deriva da implosão do capitalismo de cassino em 2008; mas na Inglaterra foi o governo trabalhista que comandou isso, permitindo convenientemente que a coalizão culpasse os trabalhistas pela herança da dívida. Há descontentamento com os bônus dos banqueiros, vindo de todas as partes; mas poucos sinais de uma atitude séria contra a economia de mercado. O líder trabalhista Ed Miliband tem medo de condenar o capitalismo enquanto Cameron o endossa totalmente. Nessas circunstâncias, não há uma agenda clara à Thatcher para Cameron abraçar. Enfrentando problemas intratáveis em relação à economia e à Europa, não o ajudará em nada ter a imagem de Thatcher olhando para ele nos cartazes de cinema durante os próximos meses.
(A biografia de Margaret Thatcher escrita por John Campbell está disponível em dois volumes, “A filha do comerciante” e “A Dama de Ferro”, e num único volume condensado chamado “A Dama de Ferro”, todos publicados pela Vintage.)
Tradução: Eloise De Vylder
Nenhum comentário:
Postar um comentário