sexta-feira, 27 de junho de 2014

Boko Haram: o fogo que se alastra pela Nigéria 
Le Monde 
AFP PHOTO / JEWEL SAMAD
Torcedor leva cartaz com a frase "Bring back our girls", ou "Traga de volta nossas meninas", em referência às jovens sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram na Nigéria Torcedor leva cartaz com a frase "Bring back our girls", ou "Traga de volta nossas meninas", em referência às jovens sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram na Nigéria
Está aí um carrinho bom. Cinco portas, com vidros traseiros que não descem mais, mais de 300 mil quilômetros rodados, um motor que esquenta e exige que sejam jogados saquinhos de água em intervalos regulares no radiador. No entanto, o Opel Astra continua sendo o rei das estradas de Maiduguri.
O motorista de chinelos faz o que pode para acelerar assustadoramente até 180 km/h, apesar dos buracos, dos animais e dos veículos que ultrapassam toda hora pela contramão sem levar em conta o que vem em frente. Cruzamos com eles prendendo o fôlego. Mas o demônio da velocidade e o medo do acidente não são nada comparados com a ideia – absurda, mas impossível de não cogitar – de que desacelerando aumentam as chances de se topar com homens do Boko Haram.
Às vezes a presença dos insurgentes também é invisível. Bauchi parece uma cidade nigeriana congestionada e populosa como tantas outras. Na saída com direção a Kano, encontramos um vendedor de carros que teve de lidar com o Boko Haram, por duas vezes já. Um belo dia, seu pai foi sequestrado.
"Ele decidiu ser o principal negociador para a libertação de seu pai e foi procurar o Boko Haram, a alguns quilômetros de lá", conta Awwal Musa Bashir, um amigo do mecânico. "Eles lhe pediram 90 milhões de nairas. Era muito. Eles fecharam em 20 milhões, parceláveis em dez vezes, um pagamento por semana. No fim da última parcela, eles libertaram seu pai. Mas, um mês depois, eles o pegaram novamente na saída da garagem. Ele foi procurá-los e disse: 'Ótimo, fique com ele, tanto faz'. Eles lhe responderam: 'Ah, nesse caso, vamos colocar fogo na sua garagem'. Ele pediu dinheiro emprestado e pagou um novo resgate. Agora ele está arruinado."
Passando Bauchi, Maiduguri está a somente cinco horas de distância, rodando rapidamente, com vários quase-acidentes, mas também com uma espera nos pontos de controle, que são tantos que desistimos de contar depois do quadragésimo.
Mendigos e vendedoras de água aparecem como que por encanto no meio do nada, para aproveitar a clientela cativa dos motoristas de carros, ônibus e caminhões. Para todo esse pequeno mundo, os policiais e os soldados das barreiras deveriam ser uma ajuda incomensurável nessa estrada perigosa. Mas eles parecem mais atores usando capacetes pesados, exibindo ora uma jovialidade forçada, ora um autoritarismo agressivo, apontando uma arma para o Opel por uma desculpa qualquer para obter dinheiro através de persuasão, pena ou ameaça. Eles estão com calor. Estão com sede. Estão com medo. Eles foram abandonados diante de um inimigo que sempre os surpreende e muitas vezes os mata antes que eles entendam o que está acontecendo.
Eles não são do Norte, não falam nem o hauçá, nem o kanuri, nem nenhuma das línguas dessa região. Suas piadas em pidgin nigeriano do Sul não fazem sentido.
Os insurgentes infiltraram o exército
E eles esperam, espremidos atrás de patéticos sacos de areia e tijolos mal empilhados, pela hora de se reunirem nos vilarejos onde eles às vezes precisam morar em cabanas de galhos ou barracas, ao lado das paredes enegrecidas de seus postos policiais ou de suas casernas que guardam as marcas dos ataques do Boko Haram. Os insurgentes infiltraram o exército, e preparam seus ataques mortais com cuidado.
À medida que nos aproximamos de Maiduguri, os sinais de destruição vão se mostrando mais frequentes. Há buracos nas casas, postes de luz no chão, geradores para as antenas transmissoras que foram explodidas e marcas pretas horríveis na calçada, onde detonaram bombas caseiras, cuja qualidade e número aumentaram razoavelmente nos últimos meses.
Em Beni Sheikh, a cerca de cinquenta quilômetros de Maiduguri, o ar agora pesa como chumbo, e não somente pela temperatura do meio-dia. A maior parte das casas está vazia. Os poucos habitantes se reúnem perto das Civilian JTF (milícias locais sob controle do governo). Os combates contra o Boko Haram terminaram de destruir um pouco mais da cidade.
Sobre essa porção de asfalto, vemos mais vendedoras de água e mais soldados teatrais. Pastores conduzem suas vacas de longos chifres pela brousse cada vez mais árida. Os veículos agora rodam a toda velocidade, sem desacelerar sob hipótese nenhuma, ainda que seja preciso invadir o acostamento para evitar uma batida. Por que esse trecho causa tanto medo?
A resposta será dada em Maiduguri, por uma fonte que tem um bom conhecimento do Boko Haram. "Existem várias áreas onde os insurgentes estão presentes em massa. Na direção do norte do Estado e do Chade, mas também mais ao sul, em zonas vizinhas de Chibok, na floresta da Sambisa. Entre os dois passa uma estrada muito antiga de migração sazonal. É nessa pista quase invisível que as Hilux do Boko Haram circulam, principalmente pela manhã ou no final de tarde. E a pista cruza a estrada principal. Não se deve topar com eles quando eles estão passando, pois eles matam todos aqueles que se aproximam."
Espaços onde as forças policiais não se arriscam mais
Em meio a essa loucura, os veículos particulares mais prudentes param em Maiduguri. Só os caminhões se aventuram um pouco adiante, fazendo seu tráfico de mercadorias ao longo de antigas rotas de caravanas que passam pelos países vizinhos (com ainda mais diligência pelo fato de que as fronteiras teoricamente estão fechadas). E depois disso tem o Boko Haram, presente nesses espaços onde as forças policiais não se arriscam mais.
Um empresário de Maiduguri que continua a visitar seus clientes da região nunca pega a estrada sem uma reza fervorosa e um grosso maço de notas de 10 nairas. Na barreira, o homem que transpira por baixo de seu capacete desde a manhã consegue recuperar um pouco da alegria de viver com essas modestas propinas, e em troca dá a informação que faz toda a diferença. "Em setembro, quando os celulares estavam sendo cortados em Maiduguri por causa do estado de exceção, todo mundo enlouqueceu. As pessoas começaram a pegar o carrro para irem telefonar em Damaturu, porque ali tinha rede. Muitos foram mortos pelo Boko Haram na estrada enquanto iam ligar para suas famílias."
Ele mesmo é um sobrevivente desse trecho. Um dia, um militar o informou em um ponto de controle que um grupo de 200 insurgentes havia sido visto no meio do mato ali perto. Ele evitou pegar a estrada na volta naquele dia. Decisão certa, uma vez que no final do dia o massacre estava no auge. "Dois dos meus colegas viram os Boko Haram chegarem. Eles foram os últimos a passar, por causa de sua velocidade, e continuaram vivos. Todos os outros atrás foram mortos. Os Boko Haram tinham uniformes, paravam os carros como em um ponto de controle normal, depois matavam todo mundo, mesmo aqueles que tentavam fugir para o meio do mato."
Nesse dia de setembro de 2013, fontes calculam que quase 200 pessoas foram assassinadas na estrada. "Havia todos esses carros incendiados, enfim, esses que eles não quiseram, foi sinistro quando voltamos para a estrada", murmura o habitante de Maiduguri, que não desistiu de andar por lá. "Se eu parar, vou viver do quê? É uma questão de sobrevivência para mim."
Os homens do Boko Haram, ou os diferentes grupos que o compõem e agem sob esse nome que agora é conhecido do mundo inteiro, não se contentam em matar os motoristas. Ondas de ataques nos vilarejos também são organizadas a partir da floresta de Sambisa: onde termina a cobertura vegetal, começam os ataques. Especialmente na direção da fronteira camaronesa, nos arredores de Gwoza (onde uma igreja foi atacada no dia 1° de junho, com 13 mortos).
Eles se protegem através do terrorismo
As bases dos insurgentes foram instaladas ao longo dos anos, na floresta onde estariam detidas parte das meninas sequestradas em Chibok no dia 14 de abril. Os grupos armados só saem de lá para fazer incursões nos vilarejos ou massacres. Eles se protegem através do terrorismo. Nenhuma ação militar de envergadura foi tentada contra eles pelo exército regular. E com razão: "A última operação terminou em uma catástrofe, alguns meses atrás. Eles caíram em uma zona minada, depois em uma emboscada. Eles perderam 17 homens e juraram nunca mais colocar os pés nessa floresta", conta uma pessoa próxima do comando militar da região.
Mas o medo não é restrito ao lado de fora de Maiduguri. Em janeiro, a base aérea da cidade foi atacada. "Se eles tivessem pilotos, teriam partido com helicópteros", diz uma fonte diplomática. "Em vez disso, eles os destruíram e divulgaram na internet o vídeo desses acontecimentos. Uma outra fonte militar, em Maiduguri, fala sobre a paranoia de um novo ataque. A mais recente fora dois dias antes: "Passamos a noite inteira esperando um ataque que havia sido anunciado por informantes. Tivemos de beber café para permanecer acordados. Mas não aconteceu nada."
A insurreição acabou se tornando perigosa para o exército, para além desses ataques. Os militares inferiores, mal pagos e mal equipados, desistiram de lutar. E os oficiais superiores desviaram grande parte de recursos consideráveis alocados para combater o Boko Haram: o orçamento da segurança mais do que dobrou em 2014, estabelecendo-se em 1 trilhão de nairas (R$13,5 bilhões).
Então, como analisa uma fonte próxima dos serviços de segurança nigerianos: "O descontentamento está tomando conta do quartel, e isso vai acabar gerando um problema com a aproximação das eleições. O exército está humilhado e ele acredita que o poder civil é responsável por seus problemas. Os planos de golpes de Estado podem acabar prosperando, como em 2010. Provavelmente é isso que o Boko Haram está esperando: cada vez mais instabilidade."

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