O caldeirão das urnas
Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
Passados os lúdicos tempos da Copa, o País retornará
ao ciclo da "opressão psíquica", expressão que Sergei Tchakotine usa, ao
lado de outras, como "violação psíquica", "maquinaria psíquica",
"impostura psíquica", para explicar o tiroteio verbal a que será
submetido o eleitorado brasileiro na arena que abrigará contendores até a
luta de outubro, quando as urnas mostrarão quem viverá, morrerá ou será
ferido na eleição mais emblemática das últimas décadas. A nomenclatura
do cientista russo foi usada para estudar as "chicotadas psíquicas" de
Hitler, que explicam a tirania a que submeteu o povo alemão, mas serve
para mostrar a relação entre propaganda e política neste momento de uso
intenso da palavra na competição pelo poder.
Mesmo levando em conta que a evolução social da massa impede que
seja entorpecida como "um rebanho de carneiros que não se governa por
si mesmo, devendo ser conduzido por entusiasmo e interesse", como dizia
Mussolini, é fato que parcela ponderável das camadas menos esclarecidas e
até de segmentos mais elevados é muito influenciada pela propaganda
política. Não por acaso, a conquista de maior espaço na mídia eleitoral
foi o fator mais ponderado nas negociações para a formação da mais
estrambótica frente de parcerias e alianças entre partidos e candidatos.
Afinal, que condimentos entram no caldeirão eleitoral, a ponto
de atrair o apetite de milhões de pessoas de todas as classes? O medo,
por exemplo. Estudos de propaganda política revelam que os efeitos do
medo são muito grandes ante situações de fome, sede, doença, depressão e
até cansaço, o que explica a eficácia da linguagem da ameaça nas
abordagens. Exerce o medo maior influência sobre camadas em precária
situação econômica, contingentes esgotados ou amedrontados por diversos
motivos. O desconhecido, a surpresa, o isolamento, a tensão agravam o
estado de medo. Por isso mesmo se procura marcar candidatos com a pecha
de contrários a programas assistenciais, como o Bolsa Família. É sabido
que os valores econômicos e os interesses materiais, fundamento dos dois
instintos de conservação do ser humano (combativo e nutritivo), lideram
o rol de "alimentos psíquicos" que entram na panela eleitoral. O bolso,
portanto, é a parte mais sensível do eleitor.
Harold Lasswell, estudioso norte-americano, põe ainda no
caldeirão que começa a ferver duas categorias assim designadas: os
credenda e os miranda, isto é, as coisas a serem acreditadas e as coisas
a serem admiradas. A primeira comporta o discurso, as propostas, as
promessas - repertório, aliás, hoje bastante desprestigiado. Ele parte
da lógica que aponta para as prioridades das famílias, ou seja, as
demandas urgentes e prementes do cotidiano: alimento barato, transporte
fácil, rápido e confortável, escola de qualidade perto de casa, hospital
capaz de prestar bom atendimento, segurança nas ruas, harmonia
comunitária. Já na galeria da admiração emerge, primeiro, o candidato
com sua história e valores que modulam o perfil: experiência, mudança,
avanço, domínio temático, capacidade expressiva, simplicidade, maneira
de se apresentar. Dependendo da forma como são expostos, podem despertar
atenção, gerar simpatia, empatia ou antipatia, elementos que carregam o
voto do coração para uns e rejeição para outros.
O eleitor, porém, percebe quando o candidato se esforça para
acrescentar um palmo mais à sua altura, quer dizer, mostrar a imagem bem
diferente da identidade. O artificialismo exagerado não passa pelo
crivo do eleitorado.
Os grupos de amigos, a vizinhança, a vida no bairro têm peso no
processo decisório do eleitor, eis que funcionam como cola de
pertinência social e do cotidiano comum, importante para estabelecer as
demandas comunitárias. Explica-se assim a proximidade como fator gerador
da distritalização do voto, tendência crescente no País. As bases
buscam cada vez mais candidatos que se identifiquem com as localidades,
que são os centros da micropolítica. Não é desprezível também o tempero
dos partidos, principalmente nos fundões, onde ainda se vota de acordo
com os costumes antigos e sob a égide de lideranças e famílias que
repartem o espaço político e as estruturas de poder. Da mesma forma, é
inegável a influência de pesquisas em alguns compartimentos,
particularmente nas beiradas que agregam camadas incultas e embaladas
pelo celofane de "vitórias" arrumadas por mapeamentos "fajutos" e de uso
eleitoreiro. Em algumas regiões pesquisa vira cabo eleitoral.
Questão instigante na propaganda política é a que procura
distinguir a linguagem da emoção da linguagem da razão. "As pessoas que
votam com o coração são mais numerosas que as que votam com a cabeça; as
eleições são ganhas e perdidas pela emoção, não pela lógica", proclama o
famoso profissional de propaganda norte-americano Joseph Napolitano. É
verdade que a espetacularização da política, que se expande no bojo da
sociedade de informação, procura maximizar as alavancas da adesão do
eleitorado, o que implica adoção de signos que impactem o hemisfério
emotivo do cérebro. Urge, porém, reconhecer a promoção educacional e
social de grupos saídos das margens, que começam a fazer exame
criterioso de candidaturas e escolha mais racional de perfis. Ou será
que os 30 milhões de eleitores que ascenderam ao meio da pirâmide nos
últimos dez anos votam apenas com o coração?
Como se conclui, é imbricado o tecido sobre o qual se desenvolve
a artilharia discursiva das campanhas. Pode-se até apostar no
entorpecimento das massas por meio da "mágica da expressão" a cargo do
marketing eleitoral. Mas a excitação, a animação, a indução, enfim, os
fenômenos que explicam os comportamentos humanos ganham outras
influências, a par da artilharia desfechada pela palavra. Sem esquecer
que existe a força do imponderável, aquele vento que causa destruição
quando entra pelas frestas eleitorais sem dar aviso prévio.
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