Nossa política, mãe da 'herança maldita'
GAUDÊNCIO TORQUATO - OESP
A expressão "herança maldita", de tão banalizada, virou carimbo para
marcar a feição de governos. Foi inicialmente usada por Lula em 2003
para dizer que recebera do ciclo tucano, comandado por Fernando Henrique
Cardoso, "um país quebrado". Nos últimos tempos, tem-se virado contra o
PT, colada aos escândalos de corrupção.
A síndrome da maldição
de governos, sejam quais forem suas posições no arco ideológico, tem
origem na política. Basta anotar a coletânea de mazelas que se extrai do
pleito eleitoral, entre as quais se incluem as coligações
proporcionais, a modelagem dos programas eleitorais, a infidelidade
partidária, a proliferação de siglas, a figura do senador suplente e o
próprio estatuto da reeleição. A "herança maldita" das gestões é filha
da "herança política". Afinal, as representações do povo e dos Estados
no Parlamento, ao lado dos governantes do Executivo, carregam para suas
atividades o ônus de velhas práticas e instrumentos defasados da
política.
Veja-se a primeira contrafação: dos 513 deputados
federais, apenas 35 (6,8%) receberam votos suficientes para se elegerem
sozinhos, sem precisarem do adjutório de coligações ou do quociente
eleitoral de legendas. Os restantes 478 ganharam o mandato pela soma dos
sufrágios dados à legenda ou a outros candidatos, os chamados
"puxadores de voto". Em 2006 apenas 32 tiveram votação suficiente para
conquistar o cargo e na eleição seguinte, em 2010, o número foi o mesmo
que se tem hoje. Ora, ser deputado com votação própria constitui primado
do sistema de representação. Seria, portanto, lógico que as vagas de
cada Estado fossem preenchidas pelos mais votados. Como não é assim,
ganha vulto a aberração do mandato "caroneado", fruto do sistema de
coligações proporcionais. O eleitor vota num candidato e este puxa
outros, de baixa votação - e a representação fica distorcida. Veja-se o
absurdo: o deputado Mendes Thame (PSDB-SP) obteve 106,6 mil votos e não
se elegeu, Fausto Pinato (PRB-SP), com 22.097 votos, chegará à Câmara.
A
segunda mazela surfa na onda do Estado-espetáculo, cujos tentáculos se
voltam para a visibilidade dos atores políticos. Arrumam-se palcos para o
desfile de candidatos, cujos discursos são adornados de
autoglorificação e floreios com aparente embalagem de programas e
promessas. De um lado, os candidatos majoritários, com espaços mais
largos, apresentam-se sob a batuta dos marqueteiros, brandindo feitos e
desfraldando bandeiras. Esse é um momento cruel para a verdade.
Simulação e dissimulação emolduram o jogo eleitoral. Cada qual se veste
com o manto de herói, mocinho, salvador da pátria, benfeitor,
extraordinária figura do bem; já o diabo, a destruição, a perversidade, a
corrupção, a maldição são coisas guardadas no baú do adversário.
Debates entre candidatos majoritários, que deveriam propiciar
comparações entre propostas, são engessados por regras e, quando
permitem o confronto direto, nivelam-se por baixo, fazendo fluir
acusações recíprocas. Ao final, a carga negativa acaba ofuscando os
poucos minutos de bom senso e racionalidade. Já na esfera de candidatos
proporcionais, o desfile de caras, bocas e caretas é um espetáculo de
nonsense.
Na torrente de incongruências, a liberdade dos partidos
de optar nos Estados por rumos diferentes dos seguidos por eles mesmos
na esfera federal se afigura como estapafúrdia. É o que se vê.
Conveniências pessoais, disputas tradicionais entre grupos e tradição
familiar determinam as pedras no tabuleiro eleitoral dos Estados,
fazendo os parceiros nacionais se transformarem em adversários locais.
Não por acaso, a força dos partidos estiola-se ante tantas equações para
a competição política. Ademais, a multiplicidade de siglas funciona
como uma engrenagem defeituosa. Teremos, na próxima legislatura, 28
representadas na Câmara dos Deputados. A extravagância deve-se à
derrubada da cláusula de barreira, em 2006, pelo Supremo Tribunal
Federal. Acolhendo parecer do ministro Marco Aurélio de que a legislação
provocaria o "massacre das minorias", o estatuto que dificultava a
criação de partidos foi extinto, dando lugar a currais partidários para
todos os gostos. Alguns desses estabelecimentos acabam propiciando
parcerias esfumaçadas com a finalidade de melhorar o "pasto" dos
rebanhos. Sem cláusula de barreira é possível enxergar, nos próximos
anos, mais 20 siglas do "toma lá dá cá".
E o que dizer de
senadores sem um voto sequer? É um contrassenso ver chegar à Camara Alta
um suplente sem sufrágio no lugar do titular. Na composição ministerial
tem sido comum o convite para senadores ocuparem cargos de ministro ou,
ainda, de candidato a governos estaduais. É quando os suplentes
ascendem ao posto. Eles são, em geral, figuras de porte
empresarial/negocial e alguns ganham o assento em decorrência de sua
disposição de bancar financeiramente a campanha do titular. Eis a
charada. O mais lógico seria a ocupação do cargo pelo segundo candidato
mais votado no Estado - uma decisão muito esperada da corte senatorial.
Para
fechar o circuito das mazelas deparamo-nos com o estatuto da reeleição.
Em democracias consolidadas a reeleição pode ser um eixo de
aperfeiçoamento democrático, no entendimento de que o mandato de quatro
anos seria insuficiente para um partido no poder concluir sua obra. Em
países de instituições políticas e sociais em processo de consolidação,
como é o caso do nosso, a reeleição bafeja os governantes, visto que,
sem se afastarem do posto, eles usufruem o simbolismo e a força
inerentes ao cargo. Essa alavancagem contribui para entortar a régua da
igualdade entre disputantes. Um mandato de cinco anos sem reeleição
cairia melhor na moldura de nossa democracia, pois propiciaria a
renovação de mandatários e a oxigenação das estruturas governativas.
Essa é a farta "herança maldita" que o Brasil precisa banir.
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