Rodrigo Constantino - VEJA
A esquerda caviar adora glamourizar as
favelas, ou melhor, as “comunidades”. São lugares vistos como de
vanguarda, onde há uma simplicidade maior, uma camaradagem espontânea,
algo que nos remete ao “bom selvagem” de Rousseau, pessoas mais “puras”,
enfim, pois não totalmente contaminadas pela “ganância capitalista” e a
impessoalidade das cidades. Basta assistir a um programa “Esquenta!”,
de Regina Casé, ou ler uma entrevista
de Miguel Falabella, enaltecendo o estilo de vida mais descolado e
divertido de lá, para se ter quase vontade de vender tudo e ir morar
numa favela.
Na prática, não é nada disso. O que temos é um cotidiano de surras e pobreza,
os “gatos” da Net feitos por “esperteza” e excesso de “malandragem”, e
um clima de total insegurança, em que os pais vivem constantemente
apavorados com o risco de seus filhos serem atraídos pelo tráfico de
drogas, que domina quase todas as favelas cariocas. O gerente de tráfico
da favela da Maré chegou a afirmar
que matava um por dia, se quisesse. É esse o ambiente insalubre dos
moradores dessas “comunidades”, sem falar da falta de saneamento
adequado e tudo mais.
Enquanto o beautiful people dos
bairros chiques elogia essa condição de vida de longe, muitos favelados
(termo jamais usado por essa gente) desejam aquilo que os outros têm:
consumir mais produtos modernos, viver com mais segurança, oferecer uma
condição de vida melhor para seus filhos. Na resenha que escrevi de Um país chamado favela,
tentei encontrar um ponto de equilíbrio entre a glamourização feita
pela elite da esquerda e o preconceito destilado por muitos, sem deixar
de criticar o viés esquerdista dos autores.
Mas tudo isso foi para chegar à entrevista
recente que Seu Jorge concedeu à revista Rolling Stone. Ele, que veio
de Belford Roxo e sabe do que está falando, ao contrário dos artistas e
“intelectuais” nascidos em berço de ouro, como Chico Buarque e
companhia, foi enfático ao dizer:
Favela
não é lugar para ninguém. Favela não é legal. Não tem segurança, não tem
saneamento, não tem hospital, não tem porra nenhuma. Favela só sofre
preconceito. Eu quis sair mesmo. Eu não quis ficar enterrado na favela.
Nasci lá, mas não quis ficar enterrado lá. Favela não é meu mundo, meu
tudo, porra nenhuma. A favela é o abandono que o governo deixou pra
gente. E hoje eu não quero tocar na favela para não me envolver com tudo
que está errado lá dentro.
Sinceridade, algo que tanto falta aos
nossos artistas da esquerda caviar. Ao contrário daqueles que elogiam
Cuba, Venezuela e o socialismo, mas escolhem passar férias ou viver em
Nova York ou Paris, Seu Jorge elogia os Estados Unidos mesmo, um “país
diferenciado”, não por acaso onde escolheu viver. Quando questionado por
que foi para Los Angeles, respondeu: “Tranquilidade.
Eu precisava ser pai. No Brasil o Seu Jorge estava dentro de casa. Eu
não conseguia levar minhas filhas para passear, ir à escola delas sem
ter a aclamação do público. Nos Estados Unidos não tem isso. Lá eu tenho
uma vida normal de pai, que sai, dá uma volta com o cachorro”.
Não é apenas a fama que o mantinha em
casa, naturalmente. Pode ter sido o fator principal em seu caso, mas não
foi o único. É o que faz muita gente, cada vez mais, temer um simples
passeio no parque, ou andar de bicicleta pela orla: a violência, o risco
de assalto, de levar uma bala perdida, de ser abordado por um marginal
que depois é tratado como “vítima da sociedade” pelos sociólogos e
poetas. Não há isso nos Estados Unidos. Aqui em Weston vemos vários
ciclistas pelas ruas, e se eu perguntar se temem algum assaltante, não
vão compreender minha pergunta. Posso sair de um restaurante às 23h de
vidros abertos e parar em qualquer sinal sem medo. Tranquilidade, é a
palavra certa, usada por Seu Jorge, que lamenta a perda de identidade do
brasileiro:
Acho que
a política brasileira está passando por uma crise de identidade muito
grande. Não reconhecemos mais quem nos representa. É um problema muito
sério, porque atinge a percepção da capacidade de o Brasil ser um país
colossal, como ele merece e tem condições para ser. O mundo todo torce
para o Brasil e para o brasileiro, eu percebo isso [lá fora]. Os
programas sociais não são um problema, mas causam um rombo muito grande e
fazem com que as pessoas não se movam para alcançar outro plano. As
contas do governo também não batem. Acho que uma série de ministérios
deveria ser suprimida e que precisamos de gestores mais sérios. Está
cada vez mais difícil representar o Brasil fora daqui, e essa é minha
função. Não saí do Brasil para me tornar um gringo – eu saí para afirmar
o Brasil. Mas está difícil, porque nossas mazelas e feridas estão
expostas e as pessoas não acreditam na gente. Isso interfere diretamente
no meu trabalho e carreira.
Sobre aqueles que atacam o cantor por ele
ter se mudado para os Estados Unidos, a típica elite da esquerda caviar
que vive numa bolha, Seu Jorge solta o verbo em desabafo:
O
patrulheiro que fica me enchendo o saco, dizendo “Pô, o Jorge agora mora
nos Estados Unidos”, tem que se lembrar do seguinte: eu era morador de
rua, um fodido e meu dinheiro eu fiz centavo por centavo sem sacanear
ninguém, sem roubar ninguém. O Brasil em que eu acredito é esse que está
na Avenida Paulista ralando; é o Brasil do motoboy, das mães solteiras
fazendo faxina como diaristas, dos garçons, dos seguranças. Esse é o meu
Brasil, eu vim daí. Agora, vem essa galerinha de Facebook e de Twitter
[falar de mim]. Pô, morre e nasce de novo para poder chegar perto de
mim, morou?
Morei. Entendo perfeitamente o desabafo
de Seu Jorge, mesmo jamais tendo passado pelo que ele passou na
infância. Isso nunca me impediu de ter sensibilidade para tentar me
colocar no lugar do outro, e por isso mesmo minha revolta com essa elite
hipócrita, que glamouriza o que é, para o outro, um fardo concreto. Se
Seu Jorge tivesse ficado na favela até hoje, tendo que fazer parceria ou
com o tráfico ou com a milícia, a esquerda caviar ia adorar, ia repetir
que ele não perdeu os laços com sua essência humilde, enquanto, na
prática, ele estaria prejudicando sua família e agredindo sua ética.
Em Los Angeles ele não precisa de nada
disso. Pode oferecer uma qualidade de vida bem melhor para as filhas,
pode dormir em paz, sair com tranquilidade, e não tem que contemporizar
com bandido para fazer seus shows. E isso é condenado por aqueles que
vivem no Leblon ou no Jardins, gente que vai para Paris ou Nova York
todo ano, mas adora odiar os Estados Unidos, e “ama” as favelas, de
preferência bem de longe, vendo-as como uma simples abstração, enquanto
os favelados são apenas mascotes para alimentar sua vaidade fruto da
autoimagem de abnegados e altruístas. Para esses “psicólogos sakamotianos“, Seu Jorge quer apenas o gozo da inveja alheia. Não é mole não!
2 comentários:
Seu Jorge é um péssimo exemplo, pois conseguiu vencer na vida sem ajuda de militância partidária ou ideológica.
Pronto, a triste e verídica piada foi essa.
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