segunda-feira, 2 de junho de 2014


the unknown rebel
Somos Apenas Humanos
 
Na madrugada de 26 de setembro de 1983, uma segunda-feira, o Tenente-Coronel soviético Stanislav Petrov, designado de última hora para substituir um colega que ficou doente, era o responsável pelo monitoramento da rede de computadores, ligados aos satélites do país, que vigiavam o espaço aéreo da URSS. Sua única função era tomar contramedidas nucleares no caso de um ataque com mísseis balísticos intercontinentais dos EUA ou países inimigos direcionados a sua nação. Ou seja, ele era “produto” da lógica da Guerra Fria que ficou conhecida como “Mutual Assured Destruction (MAD)”: se tentassem nos destruir, também os destruiríamos.
Naquela madrugada em especial, o alarme do sistema entrou em ação ao detectar que um desses mísseis nucleares, oriundo dos EUA, estaria em direção à URSS. Petrov, inicialmente, optou por ignorar o aviso, por não acreditar que apenas um míssil seria lançado contra seu país, mas incontáveis , caso um ataque real acontecesse. Portanto, só poderia ser um erro do sistema. Contudo, nos minutos seguintes ao primeiro alerta, o sistema começou a mostrar mais e mais mísseis intercontinentais surgindo no radar, indo em direção as principais cidades russas. Importante lembrar que um mês antes, a União Soviética havia derrubado um Boeing 747 sul-coreano, matando 269 civis, por acreditar que se tratava de um avião militar dos EUA. Esse evento serviu para aumentar as hostilidades entre os dois países.
Petrov não tinha meios, naquele momento, de confirmar se os mísseis captados pelos satélites russos eram reais ou não. Sabia, naquela situação, que o procedimento padrão a ser seguido era claro: lançar todos os mísseis nucleares soviéticos em direção aos EUA e Europa. Era preciso tomar uma decisão rapidamente e Petrov a tomou: decidiu esperar, ignorando o protocolo. Naquela noite, se recusou a ser o agente do apocalipse; se recusou a iniciar uma guerra nuclear que provavelmente eliminaria no mínimo ¾ da população mundial. Felizmente, o mundo não acabaria ali. Após esse evento, Petrov foi punido pelo Exército por não seguir os protocolos militares na situação de emergência e acabou aposentado compulsoriamente.
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Stanislav Petrov
Há dois importantes motivos, caros leitores, para iniciar esse texto contando-lhes essa história real. Pretendo responder, com base neles, questões e indagações levantadas por vocês quanto ao meu artigo anterior, no qual me propus a defender o libertarianismo por uma ótica pessimista, posição com a qual mais me identifico.
O primeiro motivo é ilustrar a ideia central do meu argumento. Ou seja, a clara noção de que apesar dos inúmeros avanços, conquistas e feitos obtidos nos últimos milhares de anos pela humanidade, nossa capacidade para o mal e a destruição cresceu de forma proporcional e megalomaníaca. Se por um lado há razões para comemorar nossas glórias como espécie, também há razões para temer os demônios que criamos e continuamos a alimentar diariamente.
Não nego que há várias razões para olharmos para a história com certo tom de otimismo: mesmo com guerras mundiais, genocídios em massa, epidemias mortíferas, não só conseguimos sobreviver como espécie, como também prosperamos em vários campos, saindo da condição de caçadores-coletores há cerca de 10 mil anos para a exploração do universo. Sem a menor sombra de dúvidas demos um salto evolutivo inigualável.
Mas e o outro lado dessa moeda evolutiva? É ela que o pessimista, ao contrário do otimista, não ignora ou considera irrelevante. O pessimista não desconsidera o incrível feito de termos aumentado a população mundial de 1,2 bilhão em 1850 para 7 bilhões em 2011, para quais os avanços do comércio e da tecnologia nos últimos séculos foram fundamentais; ele observa, contudo, que os mesmos mecanismos que nos permitiu atingir tal feito também abriram portas para nos convertermos (ainda mais) em piores inimigos de nós mesmos. Para ficar no exemplo nuclear, é alarmante que a mesma tecnologia que nos permite ter acesso a uma fonte de energia tão poderosa é a mesma que tornava possível a concretização dos nossos piores pesadelos naquele quase fatídico 26 de setembro de 1983.
Observando os dois lados dessa moeda, meu libertarianismo de tonalidades pessimistas evidentemente acredita que criticar a legitimidade de estruturas hierárquicas, de posições de autoridades (estatais ou não) e o uso da coerção na sociedade, em todas as suas formas, é o passo inicial para diminuir ou mitigar nossa tendência como espécie para a prática do mal. Mas um mundo justo, inovador, desenvolvido e totalmente livre é mesmo factível? Talvez. Particularmente, creio que não. Isso, contudo, não torna o ideal libertário menos válido. De fato, o torna até mais admirável em comparação com outros sistemas filosóficos e éticos.
O segundo motivo pelo qual essa história de Petrov é significativa na defesa de um libertarianismo pessimista tem ligação direta com minha opinião sobre o ser humano. Obviamente, a história da humanidade demonstra nossa capacidade potencial quase inimaginável tanto para criar como para destruir. Se por um lado, o acúmulo de conhecimento e desenvolvimento tecnológico nos permitiu ferramentas para melhorar nossas vidas, também nos deu meios para aniquilar nossos inimigos mais facilmente, de forma cada vez mais impessoal e acrítica.
Uma das características comum às obras de teóricos do libertarianismo, sejam estes anarquistas ou defensores de um Estado mínimo, é a crença de cunho otimista de que uma sociedade libertária funcionaria como uma espécie de “incubadora” para todos os tipos de utopias sociais. Assim, seja por meio de instituições monopolísticas ou policêntricas, o ideal almejado por autores libertários é que as pessoas sejam livres o bastante para, individualmente ou coletivamente, tornarem realidade seus sonhos e objetivos. Em suma, concretizem suas “utopias”.
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Apesar de me considerar um libertário, nunca compartilhei desse “otimismo antropológico”, apesar de também achá-lo um ideal válido a ser perseguido. Para um pessimista como eu, uma sociedade libertária tem uma única e importante vantagem fundamental sobre a atual, a qual apontei no artigo anterior: ela fornece instituições que, diferente das em vigor, minimizam a potencialidade humana para o uso do conhecimento e de mecanismos para o mal (leia-se: prejudicar o próximo). Se ela não acabará com nossa tendência para a maldade, ao menos retirará ou tornará quase que inexistentes os meios atuais pelos quais podemos nos matar com tamanha eficácia e de forma tão impessoal.
Por conta desses dois motivos, o pessimismo – apesar de muitas vezes mal visto por alguns – tem uma importância que considero essencial. Ele funciona como um alerta constante, um aviso, uma pedra no sapato do otimista e sonhador que almeja construir um “mundo melhor”. Isso se deve ao fato de que os pessimistas, chatos do jeito que são, costumam lembra-los constantemente de que embaixo do tapete do progresso e do desenvolvimento humano, há um universo paralelo abominável, em que as mesmas ferramentas que nos permitem fazer coisas grandiosas também possuem o poder para exterminar a humanidade da face da Terra.
É curioso notar que, como assinalava Adam Smith, o grosso da cooperação e o desenvolvimento em sociedade surgem não das boas intenções dos indivíduos, mas dos objetivos mais mesquinhos. Esse processo onde, grosseiramente, podemos afirmar que “o bem surge do mal” não é uma exceção em nossa história como espécie. Grandes invenções e descobertas que ajudaram a melhorar o mundo surgiram ou de maneira acidental (por exemplo, o primeiro antibiótico do mundo, a penicilina, num acidente de laboratório) ou de forma intencionalmente oposta (a anárquica e fascinante internet, teve origem num projeto militar americano chamado ARPANet, que visava aumentar a coordenação entre as forças armadas ao redor do mundo).
Notadamente, o inverso desse processo também faz parte do nosso histórico: as principais utopias sociais dos últimos séculos redundaram em catástrofes humanas sem precedentes quando aplicadas. Portanto, faz mesmo sentido ser otimista quando, de forma geral, nossa história mostra que projetos bem intencionados costumam provocar desastres enormes e os produtos e descobertas que tornam nossa vida mais tolerável e confortável proveram de intenções não necessariamente nobres (quando não por um simples “erro” humano)?
Para alguns libertários, essa minha “utopia” carece de vários elementos: paixão pela humanidade, desejo por um mundo melhor e, principalmente, ausência de uma maior ambição para um projeto de cunho “utópico”. Quanto a isso, respondo que considero suficientemente ambicioso lutar por um mundo onde ninguém esteja numa posição em que tenha que decidir, numa madrugada gelada de segunda-feira, se a espécie humana deve continuar ou não a existir. Afinal, felizmente, nunca saberemos se a decisão tomada por Petrov naquela noite teria sido a mesma escolhida pelo oficial que ficou doente ou por qualquer outro que fosse chamado a substituí-lo. Um mundo onde esse tipo de situação não tenha chances de se repetir já me basta.
Há uma anedota interessante, não se sabe se real como a que abre esse texto, envolvendo o famoso romano Marco Aurélio, que conta que o “imperador-filósofo” costumava caminhar nas ruas sempre com um escravo ao seu lado. Toda vez que algum poderoso ou popular se aproximasse dele, o elogiando pela sua sabedoria, conhecimento ou eloquência, em suma, o bajulando, cabia a esse escravo sussurrar aos ouvidos de Aurélio a seguinte frase: “Você é só um homem comum.”
Gosto de imaginar que o libertário pessimista possui a mesma função com o libertarianismo que esse escravo da história tinha. Não pretendemos diminuir a capacidade dos libertários otimistas de sonharem com um mundo melhor, algo por si só louvável. Apenas fazemos questão de lembrá-los, sempre que possível, que todos nós somos apenas humanos; tanto para o bem como para o mal.

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