Na marca do pênalti
A Copa simula a guerra, mas o jogo continua a ser jogo: a sobrevivência da nação não está em causa
Demétrio Magnoli - FSP
O
capitão --logo ele!-- refugou. Diante do Chile, na hora da cobrança dos
pênaltis, Thiago Silva implorou para não bater. Antes Julio César, o
goleiro, que ele. "Bater pênalti é uma grande responsabilidade em casa, e
pedi a Deus para não chegar a minha cobrança", justificou-se. O
primeiro longa dirigido por Wim Wenders, "O Medo do Goleiro Diante do
Pênalti" (1972), com roteiro de Peter Handke, não é o que o título
sugere. Sem assisti-lo, Sepp Maier, o eterno goleiro do Bayern, disparou
a crítica futebolística certeira: "O medo do jogador que vai chutar o
pênalti --isto, sim, seria digno de um romance". Mas, se Thiago Silva
fosse o protagonista da trama proposta por Maier, o roteiro deveria
concentrar-se no contexto.
A Copa simula a guerra. Entretanto, o
jogo continua a ser jogo: a simulação opera como substituição e,
normalmente, quase todos os envolvidos sabem que a sobrevivência ou a
honra da nação não estão em jogo. O jogador que vai bater o pênalti tem
medo, mas chuta. No caso de Thiago Silva, o medo cedeu lugar ao pânico
paralisante. Desconfio que isso se deve menos a seus conhecidos traumas
pessoais com pênaltis que ao deplorável clima bélico criado em torno da
participação brasileira na Copa do Mundo.
Antes da estreia,
Felipão e mesmo o sóbrio Parreira proclamaram que "o Brasil" tem a
"obrigação" de ser campeão. Possivelmente, eles adotaram tal estratégia
discursiva sob a inspiração de algum manual de autoajuda --mas fizeram
mal, e não só aos jogadores do time. O jogo é jogo porque inscreve-se na
esfera da incerteza: ninguém pode carregar o fardo de um resultado que
não controla. A única "obrigação" da equipe era dar o seu melhor, até o
fim: fazer como a seleção inesquecível de Telê, Zico, Sócrates, Júnior e
Falcão, derrotada em 1982, não como os astros egocêntricos reunidos por
Parreira em Weggis e derrotados em 2006.
Na Copa das
Confederações, a torcida inaugurou a prática de entoar "a capela" a
segunda parte do hino nacional. Aquilo era uma manifestação política: o
eco, dentro dos estádios, das manifestações multitudinárias que, fora
deles, exigiam das autoridades um módico de decência e espírito público.
Um ano depois, a prática esvaziou-se de seu sentido original,
degenerando num ritual de natureza marcial: gritado a plenos pulmões, o
hino coletivo veicula a exigência de um sacrifício sangrento no campo
verde onde a pátria joga a sua honra. É guerra isso?
É guerra? Na
Venezuela, o regime denuncia complôs diários, antes contra a vida de
Chávez, agora contra a de Maduro, contra a moeda nacional e contra a
rede elétrica. No Brasil, um "complô da mídia" ameaça, todo o tempo, o
"governo popular" --e, estalando os dedos, nove escribas cavilosos
ergueram um estádio para hostilizar a presidente. A coisa pega. Após o
triunfo sobre o Chile, Parreira inventou a hipótese de um "complô" para
impedir a conquista do hexa. Teorias conspiratórias cumprem a função
política de substituir a incerteza da história pelas certezas dos contos
infantis. No caso da Copa, o "complô" imaginário emergiu como
providencial complemento da suposta "obrigação" de vitória: a temida
derrota ganhou uma explicação que preserva a honra nacional. A Fifa
seria a culpada por um fracasso, antecipou o coordenador técnico. Mas e a
almejada vitória? Seria, simétrica e logicamente, obra da Fifa?
Um
pênalti é só um pênalti. Convertê-lo é uma questão de técnica, um termo
que abrange o controle emocional. Thiago Silva tinha o dever de se
voluntariar para chutar --porque é um profissional consagrado, um
jogador experiente e o capitão do time. Ele não tinha esse dever perante
a bandeira nacional, pendão auriverde que a brisa beija e balança, ou a
torcida brasileira, mas diante de seus companheiros de equipe e de si
mesmo. O capitão refugou. Culpa dele. Culpa nossa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário