Democracia e autoritarismo
A desmoralização das instituições chegou ao ponto máximo. Não há paralelo com qualquer momento da nossa história
Marco Antonio Villa - O Globo
O Brasil,
ao longo da sua história, não teve uma cultura política democrática. Mil
oitocentos e oitenta e nove não passou de uma solução de força. Os
republicanos — apesar de 19 anos de propaganda, desde o manifesto de
1870 — não passavam de pequenos grupos espalhados em não mais que cinco
províncias. Sua presença na cena eleitoral era mínima. Basta recordar o
péssimo resultado na última eleição no Império, a 31 de agosto de 1889.
Elegeram apenas dois parlamentares; os conservadores, sete; e os
liberais, 120. Chegaram ao poder através de um levante militar. Numa
situação nacional e internacional distinta, em 1930, os insatisfeitos
com a Primeira República identificaram no golpismo o atalho para o
poder. As rebeliões de 1922, 1924 e a Coluna Prestes foram demonstrações
de que o voto e o convencimento não faziam parte do ideário mudancista,
independentemente do sistema eleitoral, marcado pela fraude. Tanto que,
no início dos anos 1930, o vocábulo ditadura era utilizado de forma
absolutamente positiva pelas principais lideranças políticas. Na
conjuntura de 1964, a defesa de uma saída militar para a grave crise
política estava presente em todo o espectro político. Raros eram aqueles
— como Francisco San Tiago Dantas — que apostavam na resposta
democrática. Durante o regime militar, especialmente após o fracasso dos
grupos de luta armada, no campo da esquerda, o golpismo perdeu força; e
no lado oposto houve a busca de uma transição democrática iniciada —
ainda que timidamente — pela distensão. A inflexão, porém, pouco durou.
A construção de um estado democrático de direito se transformou numa
panaceia. A Constituição de 1988, por mais paradoxal que pareça, é
invocada por aqueles que sistematicamente solapam a democracia. O
acusado de corrupção — muitas vezes, em vídeos e áudios, aparece
negociando propinas milionárias — desdenha dos fatos. Em um primeiro
momento, busca se afastar das luzes, orientado por especialistas que se
dedicam a esta atividade. Depois chega o advogado — geralmente de um
escritório com excelentes relações com as cortes superiores de Brasília.
Ambos sabem que o acusado é corrupto. Aproveitam até para cobrar um
“plus,” pois o criminoso está em situação delicada. Não perguntam, em
nenhum momento, a origem dos pagamentos pelos seus serviços. E quando
conseguem evitar a prisão e a condenação do político, o que geralmente
ocorre, ficam ainda melhor posicionados neste mercado antirrepublicano
aguardando uma nova denúncia. E isto se repete a cada semana. O cidadão,
ao ver que o crime compensa, identifica no regime a raiz dos males.
Democracia deixa de ser o império da lei, transformando-se em sinônimo
de corrupção.
E o que dizer das acusações que pesam sobre o
presidente Michel Temer? A elite política vê com naturalidade a acusação
de corrupção passiva, obstrução da Justiça e formação de organização
criminosa. Temer é aprovado por 3% da população. E a vida segue como se
tudo isso fosse normal, e não produto da degeneração da democracia.
Quando seus defensores jurídicos utilizam argumentos semelhantes aos da
defesa de Lula, não é mero acaso. É que os dois são produtos de um mesmo
sistema. Sistema que levou ao segundo turno das eleições presidenciais
de 2014 uma presidente que perdeu o mandato por crime de
responsabilidade e um opositor que, no momento, está afastado do mandato
de senador e é obrigado, por determinação judicial, ao recolhimento
domiciliar no período noturno.
O sentimento de impotência domina
o cidadão. Fazer o quê? Como participar da vida política? Ou, ao menos,
como simplesmente votar? Em quem? O voto ainda tem valor? Muda alguma
coisa? A desmoralização das instituições chegou ao ponto máximo. Não há
paralelo com qualquer momento da nossa história. O longo domínio petista
colaborou em muito para chegarmos a esta situação. Mas não é o único
responsável. Basta citar os escândalos do atual governo. A questão,
portanto, não é partidária, mas estrutural.
Frente a esta
conjuntura, a resposta do cidadão é encontrar uma solução rápida, que
considera eficaz. Entende que no sistema que aí está, não há nenhuma
possibilidade de mudança. A cada momento em que o estado democrático de
direito é invocado por um advogado de corrupto, cresce ainda mais a
intolerância à democracia. Uns passam a considerar o golpe militar como a
redenção do país; outros defendem o separatismo — é, o separatismo
voltou — como meio de acabar com a corrupção e a insegurança.
Citar a Constituição vai ficando um discurso vazio, pois não há uma
relação entre a Carta Magna e o cotidiano. Todo arcabouço legal
construído nas últimas três décadas não tem, para o cidadão, aplicação
prática. Quando milhares de policiais e soldados, com auxílio das Forças
Armadas, não conseguem sequer capturar um bandido — como no recente
caso da Rocinha e o marginal Rogério 157 — o cidadão pergunta: para que
serve esta tal de democracia?
O regime democrático somente é
compreendido como algo que está a serviço da cidadania quando, ao menos,
demonstra eficácia legal e administrativa. Não é o caso atual. A
fratura entre a sociedade civil e o Estado cresce a cada dia. De nada
adianta negar a crise. Isto só alimenta o autoritarismo. Michel Temer
quer — e deve conseguir — impedir que o STF aprecie a segunda denúncia
da PGR. Os parlamentares só pensam na eleição do ano que vem e de como
vão manter seus mandatos e seus negócios. O STF — “guardião da
Constituição” — continua tomando decisões absurdas. E a democracia pode
estar dando seus últimos suspiros derrotada pelo autoritarismo.
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