Jornalismo com alma
Carlos Alberto Di Franco - O Estado de S.Paulo
Antes da era digital, em quase todas as famílias existia
um álbum de fotos ou uma caixa de sapatos cheia de fotografias. Lá
estavam as nossas lembranças, os nossos registros afetivos. Muitas vezes
abríamos o álbum ou a caixa e a imaginação voava. Era bem legal.
Agora, fotografamos tudo e arquivamos compulsivamente. Nossa antiga
caixa de sapatos foi substituída pelas galerias de fotos de nossos
dispositivos móveis. Temos overdose de fotos, mas falta o mais
importante: a memória afetiva, a curtição daqueles momentos. Fica para
depois. E continuamos fotografando e arquivando. Pensamos,
equivocadamente, que o registro do momento reforça sua lembrança, mas
não é assim. Milhares de fotos são incapazes de superar a vivência de um
instante. É importante guardar imagens. Mas é muito mais importante
viver cada momento com intensidade.
Algo análogo, muito parecido mesmo, ocorre com o consumo da
informação. Navegamos freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de
estímulos dispersam a inteligência. Ficamos reféns da superficialidade.
Perdemos contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos
pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos,
aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário
personalizado. Será? Não creio, sinceramente. Penso que há uma crescente
nostalgia de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica
e ética. Há uma demanda reprimida de reportagem. É preciso reinventar o
jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparente e
interativo, as competências e a magia do jornalismo de sempre. É preciso
olhar para trás para dar saltos consistentes.
"Hoje", dizia Nelson Rodrigues, "ninguém imagina o que eram as velhas
gerações românticas da imprensa. Mudaram o jornal e o leitor. No ano
passado, houve uma chuva inédita, uma chuva bíblica, flagelando a
cidade. Desde Estácio de Sá não víamos nada parecido. E todo mundo
morreu e desabou, e se afogou, menos o repórter. Não houve uma única
baixa na reportagem. Fez-se toda a cobertura do dilúvio e ninguém ficou
resfriado, ninguém espirrou, ninguém apanhou uma reles coriza. Por aí se
vê que há, entre a nossa imprensa moderna e o fato, uma distância
fatal. O repórter age e reage como um marginal do acontecimento.
Antigamente, não. Antigamente, o profissional sofria o fato na carne e
na alma."
Jornalismo sem alma. É o diagnóstico de uma doença que contamina
inúmeras redações. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens
não têm cheiro do asfalto. As empresas precisam repensar o seu modelo e
investir poderosamente no coração. É preciso dar novo brilho à
reportagem e ao conteúdo bem editado, sério, preciso, isento.
É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros
ideológicos. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador
constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a
sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da
incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a
necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns
procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformam
um princípio irretocável num jogo de aparência.
A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à
ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em
guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A
decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da
verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma
ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia
exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e
dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o
repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.
Sucumbe-se, frequentemente, ao politicamente correto. Certas
matérias, algemadas por chavões inconsistentes que há muito deveriam ter
sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas
interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a
credibilidade, verdadeiro capital de um veículo, se esvai pelo ralo dos
preconceitos.
A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a
qualidade. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta de
pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O
jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de
uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de
editores com o fechamento. Quando editores não formam os seus
repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline,
quando as pautas não nascem da vida real, mas de pauteiros anestesiados
pelo clima rarefeito das redações, é preciso ter a coragem de repensar
todos os processos.
Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal The New York
Times, Gay Talese vê alguns problemas a partir da crise que atingiu um
dos jornais mais influentes do mundo. Embora faça uma vibrante defesa do
Times, "uma instituição que está no negócio há mais de cem anos",
Talese põe o dedo em algumas chagas que, no fundo, não são exclusividade
do diário americano. Elas ameaçam, de fato, a credibilidade da própria
imprensa. "Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou
muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a
cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto
das pessoas. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um
avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando",
conclui Talese.
O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, o cara a cara, o coração e a alma.
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