A história de um fiasco diplomático
MARCOS GUTERMAN - O Estado de S.Paulo
Úbris é o termo grego que designa "excesso de
confiança", e suas principais características são a imoderação e a
arrogância. É a tal conceito que recorre o diplomata Luiz Felipe
Lampreia, em seu recém-lançado livro Aposta em Teerã (Editora Objetiva),
para qualificar a tentativa da diplomacia brasileira, em 2010, de
negociar um acordo nuclear com o Irã.
Não é exagero afirmar que teria sido um feito histórico se naquela
oportunidade o Brasil conseguisse arrancar do governo iraniano o
compromisso firme de interromper o desenvolvimento de um processo
técnico que, a certa altura, garantiria ao Irã a capacidade de fazer
armamentos nucleares. No entanto, acreditar que um acordo dessa
envergadura pudesse ser costurado por um país com escasso poder
diplomático no âmbito das grandes querelas internacionais e sem nenhum
envolvimento político relevante com o Oriente Médio demanda um
voluntarismo e uma ingenuidade raras vezes vistos em negociações com
esse grau de complexidade. Mas o presidente brasileiro na época era Luiz
Inácio Lula da Silva, e isso explica tudo.
Lampreia é um narrador privilegiado. Na carreira diplomática desde 1963,
foi secretário-geral do Itamaraty entre 1992 e 1993 e ministro das
Relações Exteriores entre 1995 e 2001, no governo de Fernando Henrique
Cardoso. Portanto, conhece de perto os limites da diplomacia brasileira e
os riscos, para os reais interesses do País, de embarcar em aventuras
que possam comprometer a imagem do Brasil.
Pode-se argumentar que, ao fazer críticas à diplomacia de Lula, Lampreia
move-se por divergências políticas - afinal, trabalhou com FHC e,
segundo a lógica binária atualmente em vigor no Brasil, teria
necessariamente de ser antagonista da diplomacia petista. Mas não é isso
o que se encontra no ensaio de Lampreia. Ao contrário: o ex-chanceler
reconhece que, sob Lula, "nunca em nossa história estivemos em posição
tão elevada na escala de prestígio internacional". Nenhum outro país,
diz Lampreia, conseguiu em tão pouco tempo "um aumento comparável de
estatura".
Talvez tenha sido em razão desse êxito inicial que Lula se deixou
seduzir pela ideia de que o Brasil teria, sob seu governo, reunido
condições de interferir nos grandes contenciosos internacionais. O líder
petista tinha a pretensão de se apresentar ao mundo como o mediador
capaz de resolver os impasses que ameaçam a segurança do planeta, pois o
que faltava às partes em litígio, em sua visão, era simplesmente a
vontade de sentar e conversar. Tal ingenuidade mal escondia a soberba do
ex-metalúrgico que se acreditava capaz de triunfar onde os gigantes -
especialmente os Estados Unidos - fracassaram.
Dessa forma, como mostra Lampreia, a aventura do Itamaraty em Teerã não
pode ser condenada em si mesma, pois havia um sincero desejo, por parte
dos diplomatas brasileiros, de encontrar uma solução para aquele
perigoso impasse internacional. No entanto, o mesmo não se pode dizer
das intenções ególatras de Lula.
Lampreia demonstra, em detalhes que normalmente são conhecidos apenas
pelos protagonistas das negociações, de que maneira Lula se deixou
iludir pelas circunstâncias. "Nunca antes um presidente brasileiro tinha
jogado seu prestígio pessoal em uma operação de tão alto risco e com
tão poucas chances de êxito", escreveu o ex-chanceler.
O Irã sempre afirmou que seu programa nuclear é pacífico, mas, fiel ao
estilo ambíguo, pouco se esforçou para provar o que dizia, criando um
clima crescente de confronto. Por essa razão, a comunidade internacional
vem aprovando várias rodadas de sanções com o objetivo de forçar o país
a abandonar seus planos - para Lampreia, não resta mais a menor dúvida
de que o Irã quer a bomba.
Em 2010, às vésperas da adoção de novas punições, Brasil e Turquia
decidiram tentar articular uma nova negociação com o Irã. A confiança
brasileira se acentuou quando o presidente americano, Barack Obama,
enviou uma carta a Lula na qual disse que Washington via com bons olhos
um acordo como o que estava sendo negociado - o Irã deveria aceitar que
um terceiro país enriquecesse seu urânio o suficiente apenas para fins
médicos. Na avaliação de Lampreia, porém, a mensagem de Obama era um
incentivo, mas não uma autorização para negociar em nome dos Estados
Unidos.
O erro de interpretação da diplomacia brasileira resultou em um acordo
no qual o Irã não aceitou incluir garantias reais para convencer as
grandes potências de que não construiria um arsenal nuclear. Resultou
também na constrangedora cena de Lula erguendo o braço do então
presidente do Irã, Mahmoud Ahmadinejad, "como um campeão de luta",
conforme escreveu Lampreia, gerando repercussão negativa nos países que
lutavam para enquadrar o Irã.
Pouco depois dessa cena em Teerã, que deveria servir como a imagem do
triunfo pessoal de Lula, o Conselho de Segurança da ONU ignorou
olimpicamente o acordo costurado por Brasil e Turquia e aprovou uma nova
e dura rodada de sanções contra o Irã. O Itamaraty não podia dizer que
não tinha sido avisado - o próprio governo da Rússia informara a Lula
que a adoção de sanções era muito provável e teria o apoio de Moscou,
que até então se alinhava a Teerã.
Para Lampreia, o "coração do problema" é que nenhum acordo como o
oferecido pelo Brasil e a Turquia ao Irã seria suficiente para frear o
programa nuclear - ao contrário, serviria apenas para que os iranianos
ganhassem tempo. Os Estados Unidos, a Rússia e a China sabiam disso, e o
Brasil deveria saber também, antes de embarcar nessa aventura
embaraçosa, fruto de graves erros de percepção.
Lampreia considera que a principal lição desse caso é que a diplomacia
brasileira deve considerar seus limites e buscar protagonismo somente
nos setores em que o País é forte, como meio ambiente. Quando quer
mostrar "que somos mais capazes do que as grandes potências de resolver
importantes impasses internacionais", como escreve o ex-chanceler, a
diplomacia lulopetista fracassa - e a úbris é punida com a nêmesis,
castigo que recoloca o prepotente em seu devido lugar.
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