Instituído na gestão Haddad há treze meses, o programa De Braços Abertos não conseguiu reduzir consumo de crack no centro de São Paulo
Eduardo Gonçalves - VEJA
Mais de um ano depois de ser lançado como o maior projeto da história da prefeitura de São Paulo para resolver o drama da região da Cracolândia, no Centro da cidade, o programa De Braços Abertos já consumiu 10 milhões de reais, mas a administração municipal tem dificuldade para mostrar seus resultados. O chamado "fluxo", nome dado à aglomeração de viciados que se apinham para comprar e vender drogas, voltou a crescer. A "favelinha" desmontada na rua Dino Bueno agora ocupa o cruzamento da Alameda Cleveland com a Rua Helvétia. E um exemplo claro de que o projeto não deu certo é a situação precária dos hotéis escolhidos pela gestão Fernando Haddad (PT) para abrigar os dependentes químicos.
Com problemas que vão desde alvarás irregulares à infestação de ratos, as estruturas antigas dos hotéis estão longe de ser consideradas “moradia digna”, conforme pontuou a prefeitura como uma de suas prioridades no programa. E elas ainda ficaram piores com os frequentes furtos de fios, canos, chuveiros, torneiras, fechaduras, cometido por alguns viciados, que trocam os objetos por drogas. A situação chamou a atenção do Ministério Público do Estado de São Paulo, que, por meio de uma vistoria feita pela área técnica do órgão, elencou uma série de irregularidades nas hospedagens: falta de banheiros, infiltrações, cômodos com pouca ventilação e iluminação, fiação exposta, sujeira e ausência de hidrantes e extintores de incêndio. Em suas conclusões gerais, o relatório informa que os “imóveis não dispõem de condições adequadas para oferecer hospedagem, sendo visíveis as condições de funcionamento que podem atestar a insalubridade e insegurança dos locais". O documento obtido pelo site de VEJA foi anexado ao inquérito que apura a situação dos hotéis desde julho de 2014.
/VEJA
Para o promotor de Habitação e Urbanismo responsável pela
investigação, Mário Augusto Vicente Malaquias, a situação “mais grave” é
o fato de os estabelecimentos não possuírem o AVCB, documento emitido
pelo Corpo de Bombeiros para atestar a existência de um esquema de
segurança contra incêndio. “Os espaços não são adequados. E se não são
adequados não podem ser usados. Agora, eu reconheço que a não existência
desse espaço vai trazer uma situação grave, porque os usuários serão
colocados na rua. Mas não posso permitir que eles fiquem em lugares
irregulares”, disse Malaquias. O promotor ainda afirmou que pedirá a
atualização da vistoria, realizada em setembro do ano passado, e que,
caso nenhuma providência seja tomada, recomendará à Justiça a interdição
dos hotéis.Ao longo da semana, a reportagem do site de VEJA visitou os sete hotéis conveniados, conversou com beneficiários do programa e com donos dos estabelecimentos. A constatação é que os problemas persistem. Detalhe: no início do programa, eram oito hotéis – um deles, o Hotel do Cícero, foi descredenciado em outubro do ano passado por estar em péssimas condições.
A preocupação com o perigo de ocorrer uma tragédia não é despropositada. Em dezembro do ano passado, um incêndio aconteceu no último andar do Hotel Seoul, credenciado no programa, conforme mostra um vídeo gravado por um dos moradores da região. Como há uma base do Corpo de Bombeiros em frente ao estabelecimento, o fogo foi combatido e ninguém ficou ferido. Procurados, os Bombeiros que atenderam a ocorrência afirmaram que não foi possível determinar a causa exata do incêndio. Porém, segundo eles, a maior probabilidade é que tenha sido provocado por um cachimbo de crack aceso em cima de um colchão.
O consumo de drogas dentro dos hotéis não é a principal dor de cabeça dos donos dos estabelecimentos. Segundo Manoel de Costa Souza, administrador do Hotel Seoul, da Pensão Azul e do Hotel do Cícero, usuários de crack roubam o que veem pela frente. “Eles pegam de tudo: cano, fio, fechadura, torneira. Alguns parecem ratos, arranham as paredes, arrancam as coisas. Se na rua eles pegam tudo, imagine lá dentro”, disse.
A proprietária do Hotel Kelly, que quis se identificar apenas como Sheila, confirmou a ocorrência de roubos em seu estabelecimento. A dona do Hotel Laid, Alaíde dos Santos, afirmou que “quem roubou já foi dispensado”.
Os próprios beneficiários do programa relatam problemas com furtos constantes. “Não dá para bobear. Deixar roupa no varal, nem pensar”, afirma Sueli Costa do Nascimento, de 54 anos. Ela é uma das vinte pessoas selecionadas por bom comportamento para fazer trabalhos de jardinagem. Sueli relata que já usou crack, mas não gostou. “O meu vício mesmo é o álcool e o cigarro”, diz. Com o dinheiro que recebe dos programas Braços Abertos e Renda Cidadã – este do governo do Estado –, ela comprou a fechadura e a lâmpada do quarto apertado onde foi alocada, no hotel na Rua Barão de Piracicaba. “Como não tinha nada, eu tive que dar um jeito. Precisava trancar a porta por segurança”. Também adquiriu por conta própria o papel higiênico e o sabonete, que estão sempre em falta no lugar, além de uma lata de inseticida e um saco de naftalina para espantar ratos e baratas. “Às vezes aparece uns ‘calungão’. Até trago umas arrudas lá da jardinagem para espantar esses bichos”, disse. As paredes do seu quarto tinham enormes manchas de mofo e infiltração. Não havia nenhuma janela ou saída de ar e um grande buraco na parede havia sido tampado com uma placa de metal.
“Tem que ficar esperto porque aqui só tem viciado e alguns deles têm maldade no coração”, diz o beneficiário Adriano dos Santos, de 30 anos, alojado no Hotel Lucas, referindo-se à incidência de roubos dentro dos quartos. Há quatro meses no programa, ele disse que tem conseguido diminuir o consumo de crack, mas não esconde que usa parte do salário recebido da prefeitura para alimentar o vício. “Eu estou fumando menos, mas ainda pego o dinheiro para fumar. Não tem como. É muito complicado para nós, viciados”, admitiu Santos, com os olhos baixos.
A prefeitura de São Paulo informou, com base em números da Polícia Militar, que a incidência de furtos a pessoas caiu 33% no ano passado e que houve 319 prisões em 2014. O presidente do Conseg (Conselho Comunitário de Segurança) de Santa Cecília, Fábio Fortes, contestou esse número, dizendo que os moradores da região "têm medo de relatar os casos porque os suspeitos voltam às ruas".
Teto – Apesar dos problemas visíveis, muitos beneficiários não se queixam da situação: entre morar na rua ou ter um teto, obviamente preferem a segunda opção. "A ausência desse tipo de reclamação pelos beneficiários não deve ser considerada como algo positivo, visto que se justifica pelo fato de os beneficiários viverem anteriormente em situação de rua e vulnerabilidade, com vínculos familiares rompidos ou fragilizados, excluídos da sociedade, sem acesso a bens e serviços públicos. Portanto, sem referência de moradia com o mínimo de dignidade", concluiu o Ministério Público no inquérito.
A prefeitura de São Paulo informou em nota enviada que "está ciente dos problemas nos hotéis conveniados e repactuou os contratos". Segundo a administração municipal, a responsável pelo gerenciamento dos hotéria é a ONG Adesaf, contratada em setembro do ano passado por chamamento público – o contrato de 9,7 milhões de reais tem validade de um ano. A prefeitura também queixou-se do Hotel Pensão Azul que, afirmou, registra "situação precária" – devido às fortes chuvas desta semana, foram detectados alagamento, sujeira e condições insalubres.
A Adesaf é a segunda associação escolhida para tocar o programa. A primeira, a ONG União Social Brasil Gigante, contratada sem licitação por 5 milhões de reais, desentendeu-se com donos dos hoteis e foi afastada.
Neste ano, uma das primeiras medidas tomadas pela prefeitura foi elevar o preço pago pela hospedagem – de 480 reais a 500 reais por beneficiário. O objetivo é arcar com eventuais despesas provenientes dos roubos dentro dos locais. Além disso, os 453 dependentes cadastrados recebem 115 reais semanais por serviços prestados, como varrição de ruas e jardinagem.
“Fluxo” – Para os moradores e comerciantes da região, o programa não alterou em nada a presença de viciados e traficantes na região. O vendedor Robério Aguiar, de 32 anos, que trabalha em uma loja de instalações próxima ao "fluxo", avaliou que o projeto só “enxugou gelo”. “A cada dia só aumenta o número de drogados. Não adiantou nada. Os clientes, quando aparecem, entram aqui com cara de que saíram de uma zona de guerra”, afirmou ele, dizendo que a loja sobrevive de encomendas feitas por telefone. “Se for depender de cliente de porta, vamos quebrar”. Segundo ele, o estabelecimento já foi alvo de pelo menos dez furtos nos cinco anos em que trabalha no local.
Morador da região desde 1980, Armando Pereira dos Santos, de 62 anos, também ressaltou que o "fluxo" voltou a crescer nos últimos meses. Acostumado ao movimento de viciados no bairro, disse ter apenas um receio: “Só peço a Deus que eles não voltem a ficar na minha porta. Eu quase me mudei daqui porque eles nos ameaçavam com faca”.
O prefeito Fernando Haddad responsabilizou a Polícia Militar pelo aumento de viciados. "Cobram da União a fiscalização de 17 mil quilômetros de fronteiras contra a droga, mas as polícias locais não controlam um quarteirão da Luz", disse, em novembro. Nos dias em que a reportagem visitou a região, havia pelo menos três grupos da PM e três da Guarda Civil Metropolitana no local. A presença das autoridades, no entanto, não intimida os traficantes.
Um ano depois, nada mudou na Cracolândia. Para o prefeito Fernando Haddad, o programa Braços Abertos é um sucesso.