quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A COREIA QUE O PORCO CEVADO HERDOU

Filho de Kim Jong-il herda uma Coreia do Norte na qual muitos sonham com a prosperidade
Manfred Ertel, Mathieu Von Rohr, Sandra Schulz e Wieland Wagner - Der Spiegel
O que a ascensão de Kim Jong Un significará para as futuras relações com a vizinha Coreia do Sul e os países mais distantes?
Era uma noite gelada, com temperaturas abaixo de zero e, ainda assim, não havia dúvidas que eles iam tirar seus casacos antes de se aproximarem da estátua de Kim Il Sung. Foi isso que aprenderam como sinal de respeito, e foi isso exatamente o que fizeram na segunda-feira (19/12), após um âncora de televisão, engasgando com o choro, anunciar que o “Querido Líder” estava morto.
Mães com bebês, estudantes, funcionários, operários –milhares subiram os amplos degraus até a estátua em Pyongyang, muitos levando crisântemos brancos nas mãos. Alguns dos que prestavam suas homenagens tinham vindo diretamente de seus empregos em coletivos, e ainda estavam carregando as pequenas mochilas e sacolas quando subiram os degraus.
Os cidadãos em luto formaram uma corrente silenciosa ao longo da escadaria. Eles não deram as mãos, simplesmente ficaram ali, alguns com o rosto molhado de lágrimas.
Ali perto, um estrangeiro observava a cena. Ele trabalhava na Coreia do Norte há vários anos, mas naquela noite, sentiu-se mais estrangeiro do que nunca, segundo conta.
O caos que os especialistas estrangeiros previram por anos não se materializou. Era quase como se o “Querido Líder” ainda estivesse vivo; como se o ex-governante da Coreia do Norte, uma figura endeusada, estivesse também dirigindo o teatro do velório na capital Pyongyang, que sempre parece um set irreal de um filme de propaganda.
O regime manteve o país firmemente sob controle, incluindo as lágrimas de seus cidadãos. Qualquer um que não estivesse chorando na Coreia do Norte podia incorrer na ira das autoridades. Dois empresários chineses relataram na Internet que foram expulsos de um trem porque não tinham vertido lágrimas.
As imagens de Pyongyang se encaixaram, nos mínimos detalhes, ao ritual de velório que o “Querido Líder” tinha organizado em 1994 após a morte do pai, o fundador do país, Kim Il Sung. A grande cerimônia de funeral na quarta-feira seguinte provavelmente seguiria um padrão similar. Pyongyang logo anunciou que as delegações estrangeiras não são bem vindas.
Uma nova virada em uma Guerra Fria
Ainda assim, o mundo vai observar a cerimônia com certa trepidação. A Guerra Fria continua ao longo do 38º paralelo Norte, que divide o reino de Kim da democrática e economicamente próspera Coreia do Sul. Um frágil cessar-fogo entrou em vigor desde o final da Guerra das Coreias (1950 a 1953). Cada teste de mísseis no Norte aterroriza o mundo, e cada incidente no mar Amarelo, onde a fronteira marítima continua em disputa, repetidamente provoca baixas dos dois lados. O teste de armas nucleares feito sob a liderança de Kim Jong Il transmitiu ao mundo uma imagem de senhor de guerra, e ele foi chamado de “um louco com uma bomba”.
Desde que a Coreia do Sul, cansada das provocações, colocou fim à sua abordagem conciliatória ao Norte, a Guerra Fria tornou-se ainda mais fria. Há apenas um ano, em novembro de 2010, o Norte bombardeou a ilha na fronteira da Coreia do Sul de Yeonpyeong. Antes disso, em março de 2010, um torpedo norte-coreano alegadamente afundou o navio de guerra sul-coreano Cheonan, matando 46 marinheiros sul-coreanos.
Apenas 90 minutos após a notícia da morte de Kim Jong Il, o presidente dos EUA, Barack Obama, ligou para o presidente da Coreia do Sul e instou-o a exercitar cautela em lidar com Pyongyang. Os EUA queriam dissuadir seu aliado de tomar qualquer medida dura.
Os americanos acham possível que haja provocações militares por parte do Norte, como forma de demonstração de força e resolução. A Coreia do Norte testou outro míssil de curto alcance na segunda-feira (19/12). No mesmo dia, os preços nos mercados de ações de Tóquio e Seul mergulharam em reação à notícia da morte de Kim.
Pouco se sabe sobre o “Grande Sucessor”
O homem que agora sucederá o “Grande Líder” nunca havia feito declarações públicas até o dia 19. O resto do mundo nem sabe se ele tem 27, 28 ou 29 anos de idade.
Há muita especulação se o novo líder vai continuar o curso do pai e preservar o culto à personalidade, ou se ele vai reformar o país, aproximando-o do modelo econômico chinês ou até perseguindo uma branda abertura para o Ocidente.
Nos últimos meses, o filho de Kim, Jong Un, proclamado “Grande Sucessor” da mais jovem nação nuclear do mundo no dia 19, foi cuidadosamente introduzido à consciência coletiva, em parte por aparições na televisão. A rede estatal de televisão mostrou-o consistentemente na companhia do pai durante as inspeções pessoais de Kim Jong Il às empresas. Nas últimas semanas, contudo, Kim Jong Un também foi ocasionalmente mostrado sem o pai.
O filho mais jovem de Kim Jong Il, produto de seu relacionamento com sua terceira companheira, uma dançarina nascida no Japão, passou algum tempo no Ocidente. Aparentemente, ele frequentou uma escola na Suíça, perto de Berna. Apesar da Embaixada da Coreia do Norte negar isso, alguns ex-colegas afirmam reconhecê-lo nas fotos.
João Micaelo, 28, hoje chefe de cozinha em Viena, diz que se sentava ao lado de Kim Jon Un na sala de aula, jogava basquete com ele e era seu amigo. “Jong Un era um garoto quieto”, que usava tênis Nike e calças da Adidas e tinha motorista, disse Micaelo à revista suíça “L’illustré”.
Um dia, Jong Un mostrou a Micaelo uma foto e disse: “Este é meu pai. Ele é o presidente da Coreia do Norte”. Mas Micaelo não acreditou. O inglês de Jong Un era muito bom e o jovem filho do ditador norte-coreano também gostava muito de cultura popular, desenhava quadrinhos e assistia filmes de artes marciais ou de Jean-Claude Van Damme.
Um primeiro vislumbre do futuro líder
Esses detalhes foram escondidos da população inocente da Coreia do Norte, que só tomou consciência de Jong Un há três anos. Estudantes das escolas norte-coreanas gradualmente começaram a cantar uma canção antes desconhecida: “Pam, pam, pam, seguindo os passos de nosso general Kim”. Kim Jong Il encomendou-a para o nono aniversário do filho, diz Kenji Fujimoto, japonês que foi “sushi-man” do ex-ditador. De acordo com Fujimoto, o pai tinha reconhecido alguns dos próprios traços no determinado Jong Un.
O retrato que o chefe de cozinha japonês pinta do futuro líder da Coreia do Norte também é muito ocidentalizado. Fujimoto conta que Jong Un muitas vezes filava cigarros dele (ele fuma a marca de Yves Saing Laurent), bebia muita vodca e se preocupava com o atraso da Coreia do Norte. “Nosso país está tecnologicamente atrasado em relação ao resto da Ásia”. Jong Un teria dito em uma viagem de trem de Wonsan, no Sudeste, para Pyongyang: “Só podemos ter orgulho de nossos depósitos de urânio”.
No ano passado, tornou-se cada vez mais aparente que Jong Un seria nomeado para suceder o pai. No dia 8 de janeiro de 2010, seu aniversário foi declarado feriado nacional. Em dezembro, ele foi promovido a general de quatro estrelas e aceito no Comitê Central do Partido dos Trabalhadores. Foi nessa época que os norte-coreanos viram seu futuro governante pela primeira vez.
O homem de rosto redondo sentado na primeira fileira, vestindo um terno escuro ao estilo Mao, parecia o avô, Kim Il Sung. Jong Un foi nomeado vice-diretor da comissão militar, uma posição importante. O pequeno país tem 1,2 milhão de soldados, um dos maiores exércitos do mundo.
Ainda assim, a autonomia política de Jong Un era e continua limitada. A irmã do pai, Kim Kyung Hee, 65, e seu marido, Chang Song Taek, 65, tornaram-se assessores de Jong Un. Chang é vice-diretor da Comissão de Defesa Nacional e diretor do banco de desenvolvimento estatal. Sua mulher, Kim, também foi promovida a general de quatro estrelas em setembro. Os dois são considerados fortes, poderosos figuras dentro do sistema. Jong Un vai depender do conselho deles, e possivelmente de suas decisões também.
Ri Yong Ho, comandante das forças armadas, deve garantir a lealdade dos militares ao novo líder. Membro do politburo, Ri também pode ter um papel importante na nova estrutura de poder.
Pistas sobre o futuro do país podem surgir em breve
Com menos de 30 anos, o “Grande Sucessor” é o novo líder de um país com 24 milhões de pessoas e recursos naturais, mas que só pode sobreviver economicamente com a ajuda de sua poderosa vizinha, a China. A desnutrição e a fome prevalecem em grande parte da Coreia do Norte. A oferta de alimentos é pouca e o fornecimento de energia consegue estar pior do que no ano passado. Se uma pessoa caminha pelas ruas da capital à noite, vê grandes seções da cidade mergulhadas em completa escuridão. Os sistemas de aquecimento muitas vezes não funcionam porque não há pressão suficiente para bombear a água para os andares superiores dos prédios.
A melancolia do reinado de Kim fica ainda mais evidente na região ao longo da fronteira com a China, no Norte do país. Na cidade fronteiriça de Tumen, o rio divide dois mundos. A vida do lado chinês é colorida e volumosa, cheia dos sons das buzinas e música dos alto-falantes, enquanto os turistas tiram fotos pelas ruas. À noite, o lado norte-coreano mergulha no frio e na escuridão e não se houve um pio das cabanas esquálidas.
Um país em transição
Mas Kim Jong Un também presidirá um país que mudou nos últimos anos. As coisas estão sendo construídas, há carros nas ruas e até as mulheres em Pyongyang subitamente estão diferentes, usando brincos e salto alto. Acontece que as coreanas também adoram salto alto e calças pretas com brilhos nos bolsos.
Os rapazes da capital estão constantemente falando em seus celulares. Alguns programam para receber suas chamadas com a música “Arirang”, enquanto outros usam uma música que se tornou popular no ano passado. Parece uma canção pop, sobre mães e esposas. Não há menção de política na canção.
Os norte-coreanos já expandiram sua visão de mundo, antes formatada apenas pela propaganda, assistindo novos filmes: DVDs de séries de televisão sul-coreanas, que eles compram ilegalmente na China. Agora que podem assistir esses filmes, estão subitamente sendo expostos ao luxo inaudito que seus irmãos no Sul apreciam.
Os sul-coreanos, de sua parte, se distanciaram cada vez mais da perspectiva de reaproximação com o Norte. Hoje, apenas 56% dos sul-coreanos favorecem a reunificação, comparados com mais de 80% nos anos 90. O número cai ainda mais, para 20%, entre as pessoas com menos de 20. Eles temem que a reunificação possa privá-los da prosperidade que obtiveram com tanto esforço e disciplina.
Festividades comemorativas até abril
A Coreia do Norte também queria abrir “o grande portão para um país poderoso e próspero” em 2012, quando o regime celebra o 100º aniversário de Kim Il Sung. O ano simbólico gerou uma pequena expansão imobiliária em Pyongyang. Prédios residenciais e arranha-céus foram construídos em honra ao “Grande Líder”. Agora, Kim Jong Un será o anfitrião das festividades no dia 15 de abril. Antes disso, talvez já no início do ano, ele provavelmente dará uma primeira noção da nova estrutura de poder, quando transmitir a tradicional mensagem do Ano Novo, na qual os dirigentes do partido e os lemas para o ano novo são anunciados.
Em sua primeira semana, ele ficou ao lado do corpo do pai, velado em um caixão de vidro, e recebeu diplomatas, enquanto uma banda tocava músicas militares solenes. Ele foi cercado pelas elites políticas, em uma cena que lembrava um abrigo de idosos da liderança comunista. Ao lado deles, este menino com cara de bebê apertava as mãos dos diplomatas, nenhum dos quais sabe que curso ele vai escolher e quanto poder de fato terá.
Jong Un está absolutamente interessado em ter melhores relações com os EUA, diz o antigo “sushi-man” do pai. Líderes comunistas que passaram ao menos parte de sua infância no Ocidente tendem a exibir mais abertura, diz o porta-voz ex do Departamento de Estado, James Rubin.
Alguns acreditam que os militares podem em breve assumir o poder, enquanto outros estão convencidos que a estratégia de longo prazo da China é usar o declínio da Coreia do Norte para expandir sua própria influência.
O país mais isolado do mundo está ainda mais intrigante e o fato da máquina de propaganda do governo, em gesto impotente, estar pretendendo que o novo líder é mais velho não está ajudando. De acordo com as declarações emitidas em Pyongyang, Kim Jong Un logo fará 30 anos.
Traduzido do alemão por Christopher Sultan e do inglês por Deborah Weinberg
Tradução: Deborah Weinberg

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