Populismo é marca em berço dos Kirchner
Na Patagônia, ex-presidente argentino Néstor e sua mulher, Cristina, que busca reeleger-se no domingo, são cultuados
Província de Santa Cruz é a base do apoio ao casal, que domina a política argentina desde o início da década
LUCAS FERRAZ - FSP
O cenário é praticamente o mesmo de rincões conhecidos no Brasil: o nome do chefe local batiza ruas, avenidas, escolas e praças; a política ainda gira em torno dele, e a família e amigos são donos de inúmeros e milionários negócios, muitos sob suspeita.
Ele é o ex-presidente Néstor Kirchner, morto há um ano, e a província em questão é Santa Cruz, na Patagônia, que foi o laboratório do kirchnerismo, no poder na Argentina desde 2003. Cristina Kirchner, que sucedeu o marido na Presidência do país, deverá ser reeleita no próximo domingo.
Diferentemente de Néstor, ela não nasceu em Río Gallegos, capital de Santa Cruz, mas fez de lá o seu "lugar no mundo". Em 1970, recém-casada, trocou La Plata, capital da província de Buenos Aires, pela Patagônia, onde iniciou sua carreira política.
A pobreza em Santa Cruz não se equipara aos piores índices brasileiros, mas é gerida de modo semelhante: a política é populista, clientelista e personalista, há muitas denúncias de corrupção e pouca transparência.
Esse modelo começou a ser formado em 1987, quando Néstor foi eleito prefeito de Río Gallegos e se expandiu a partir de 1991, quando ele se torna governador -foram 12 anos no cargo, até a eleição presidencial de 2003.
Em Santa Cruz, Néstor alterou a Constituição duas vezes (a última para reeleger-se indefinidamente); fortaleceu o poder do Estado, empregando mais de 50 mil entre os 273 mil habitantes da província; criou uma teia de órgãos de mídia favoráveis ao seu governo e travou duro embate com a oposição -que seria uma de suas marcas.
"Sempre achei que era impossível repetir no país o que fizeram aqui", afirma o deputado em Santa Cruz Omar Hallar, da oposicionista UCR (União Cívica Radical).
Apesar das fortes reações despertadas na população local por "Ele e Ela" (como são denominados Néstor e Cristina em Santa Cruz), há certa paranoia em Río Gallegos quando o assunto são eles.
Muitos moradores não quiseram falar à Folha, temendo que o repórter fosse um agente da Side (a agência de serviço secreto argentino), conforme relato posterior de dois habitantes do local.
"Isso virou uma fazenda com o nome do capataz por todos os lados", diz o empresário Juan José Anglesio, 70. Desde a morte do ex-presidente, vítima de infarto, em outubro de 2010, Santa Cruz vive em comoção quase permanente, inaugurando obras e parques com seu nome.
Agora, abrindo nova polêmica, querem trocar na praça central a estátua de Julio Roca, que foi presidente no século 19, por uma de Néstor.
"Éramos um povo esquecido, isso aqui não era nada. Néstor levantou a província, deu infraestrutura e condições mais dignas, colocou Santa Cruz no mapa da Argentina", diz o amigo Pablo González, chefe de gabinete do governo local e candidato ao Senado nessas eleições.
"Apesar de ele ter me dito uma vez que não gostaria que seu nome ficasse batizando ruas e avenidas, ele merece toda a veneração."
Crescimento de patrimônio do casal gera suspeita
El Calafate, antes um povoado perdido no meio de lindas pedras glaciais da cordilheira dos Andes, transformou-se graças ao kirchnerismo num movimentado polo de turismo, com redes de hotéis de luxo e voos diretos de Buenos Aires.
A pequena cidade na província de Santa Cruz cresceu, assim como o emprego e a arrecadação. Para os Kirchner, a "nova" El Calafate foi também uma boa oportunidade de fazer negócios.
A família tem na cidade, conforme declaração de bens apresentada à Justiça Eleitoral, participação em dois luxuosos hotéis. O local também é o reduto preferido da presidente, onde ela costuma passar os fins de semana -e foi onde Néstor morreu. Além de El Calafate, outras cidades da província de Santa Cruz abrigam o milionário patrimônio declarado do casal Kirchner.
Está concentrado sobretudo em casas, lotes, apartamentos, empresas de investimentos e hotéis. Cristina e Néstor -morto em 2010- multiplicaram por quase 1.000% o patrimônio total da família desde que ele chegou à Casa Rosada, no ano de 2003.
Naquele ano, o casal declarou bens no valor de 6,8 milhões de pesos (R$ 2,8 milhões). Agora, a cifra chega a 70,4 milhões de pesos (cerca de R$ 29 milhões) -um incremento de 928%.
O atual responsável por administrar os bens da família é Máximo Kirchner, primogênito do casal. Ele vive em Río Gallegos, com a namorada, numa modesta casa próxima do cemitério local.
SUSPEITA
Discreto, Máximo geralmente é visto só na imobiliária que possui com dois sócios na avenida Néstor Kirchner, no centro. Na semana passada ele estava fora da cidade, segundo disseram no local.
Perto dali fica uma casa vendida pelos Kirchner por 3 milhões de pesos (cerca de R$ 1,23 milhão). A Justiça argentina chegou a investigar o crescimento do patrimônio de Néstor e Cristina, suspeitos de enriquecimento ilícito, mas o processo foi arquivado.
Dois empresários locais foram apontados como testas de ferro dos Kirchner em outros negócios. Eles negam acusação, porém.
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