A Suprema Corte dos Estados Unidos, sediada em Washington, decidiu que a Lei do Direito ao Voto, de 1965, que tinha como objetivo combater a restrição de direitos relacionada a afro-americanos, não é mais válida. Eles argumentaram que o racismo flagrante é uma coisa do passado nos EUA. Mas a experiência diária nos conta uma história diferente.
A Suprema Corte dos EUA falou. A mais alta corte dos Estados Unidos decidiu, basicamente, que o racismo é uma coisa do passado para os norte-americanos. Foi-se o tempo em que os negros eram caçados e linchados, o tempo em que o Congresso norte-americano tinha que garantir proteção legal aos afro-americanos, como a Lei do Direito ao Voto, a maior conquista do movimento pelos direitos civis dos EUA.
"Quase 50 anos depois, as coisas mudaram drasticamente", escreveu o tribunal em sua decisão de terça-feira passada, derrubando a principal cláusula da histórica Lei do Direito ao Voto, que foi aprovada em 1965 para ajudar a garantir que os afro-americanos dos Estados do sul dos EUA tivessem os mesmos direitos eleitorais que os concedidos aos afro-americanos dos Estados do norte.
Os juízes da Suprema Corte argumentaram que "subterfúgios flagrantemente discriminatórios e contrários aos decretos federais são raros" e que "hoje em dia, candidatos provenientes de minorias têm sido eleitos em quantidades sem precedentes". Eles disseram ainda que a linha que separava o sul racista do norte de mente aberta desapareceu.
"Nossa nação tem feito grandes progressos", escreveu na sentença John Roberts, presidente da Suprema Corte, que nasceu em Buffalo, no Estado de Nova York. A decisão foi aprovada pela maioria dos juízes.
Mas será que realmente fizemos grandes progressos? Certamente. Hoje, a situação está longe de ser tão ruim quanto era durante as sangrentas décadas de 1950 e 1960. E essa afirmação pode ser considerada verdadeira há muito tempo. É óbvio que essa situação se tornou ainda mais evidente com a eleição de Barack Obama como presidente em 2008, um avanço que foi anunciado por muitos como o início de uma era "pós-racial".
Uma dose de racismo diário
A verdade, porém, é que os Estados Unidos ainda estão às voltas com os problemas do racismo, da discriminação e das consequências de longo prazo causadas pela escravidão no país. Hoje o racismo pode ser menos "flagrante", como pressupõe a Suprema Corte, mas ele permanece latente --e é isso que faz leis como a Lei do Direito ao Voto tão importantes.Aqui estão apenas alguns exemplos do tipo de racismo cotidiano vivido nos Estados Unidos --e vários casos como esses têm sido registrados recentemente no país.
Na Flórida, o julgamento de George Zimmerman, acusado pelo assassinato a tiros do adolescente afro-americano Trayvon Martin, ocorrido em 2012, teve início recentemente. A justificativa do autor dos disparos para o assassinato: Martin pareceu suspeito ao entrar no condomínio fechado onde Zimmerman morava. O que isso realmente significa, porém, é que uma pessoa negra não pertence àquele lugar, e que Martin só poderia estar ali para causar problemas. "Esses idiotas, eles sempre conseguem fugir", Zimmerman teria dito à polícia.
E a chefe de cozinha e celebridade Paula Deen, natural da Geórgia, conhecida por sua condimentada culinária sulista, recentemente saiu do armário e revelou ser uma "racista inconsciente". Ela admitiu que a palavra "preto" ("nigger", em inglês) já fez parte de seu vocabulário casual e foi acusada de ter sugerido a realização de um casamento no estilo "E o vento levou", que incluiria "um monte de pretinhos" como criados. "Deen tem o tipo de mentalidade que é capaz de olhar para o Holocausto ocorrido nos Estados Unidos e não ver nada além de bailes e saias rodadas", publicou em editorial a revista online Slate.
Enquanto isso, em Nova York, a metrópole mais progressista e diversificada dos EUA, uma grande disputa irrompeu em relação à discriminação racial detectada nas revistas feitas pela polícia. O controverso programa "pare-e-reviste" ("stop-and-frisk", em inglês), que permite que a polícia realize revistas no meio da rua, geralmente é uma prática discriminatória. Durante os últimos dez anos, 88% das pessoas paradas e revistadas pela polícia eram negras ou latinas.
Será que esses exemplos devem ser considerados exceções ou simplesmente fatos secundários? De maneira nenhuma. A discriminação se mantém enraizada de forma profunda e sistêmica na sociedade norte-americana. E esse fato é revelado pelos dados.
Os afro-americanos e latinos compõem uma parcela desproporcional da população carcerária e dos condenados que se encontram no corredor da morte. Os afro-americanos têm uma chance em 15 de ir parar atrás das grades, enquanto que a chance dos caucasianos de ir para a cadeia é de uma em 106. As penas de prisão para os negros também são geralmente mais duras do que as dos brancos, mesmo em relação a crimes semelhantes, especialmente quando se trata de condenações relacionadas a drogas.
Os afro-americanos também estão em desvantagem econômica, ganhando, em média, menos do que as pessoas brancas. Cerca de 27% dos afro-americanos vivem abaixo da linha de pobreza, em comparação com apenas 10% das pessoas de origem caucasiana.
O progresso chegou lentamente, mas a Lei do Direito ao Voto constituiu um salto adiante monumental. Mesmo assim, essa lei não foi capaz de impedir políticos locais de usar todos os truques disponíveis para coibir os direitos eleitorais dos afro-americanos --eles foram retirados das listas de eleitores registrados, os horários de funcionamento das seções eleitorais foram reduzidos, o número de locais disponíveis para votar foi drasticamente cortado em alguns distritos e os eleitores passaram a ser obrigados a apresentar título de eleitor.
"A discriminação eleitoral ainda existe", alertou na terça-feira passada um Obama "profundamente decepcionado". A decisão da Suprema Corte pode agora dar margem a esse tipo de trapaça. Os republicanos do Texas já anunciaram que vão tentar aprovar rapidamente uma lei draconiana para a apresentação obrigatória do título de eleitor nas eleições, que teria um impacto muito mais negativo para os pobres e as minorias.
As leis de proteção permanecem indispensáveis nos Estados Unidos, mesmo que o princípio da ação afirmativa esteja lentamente começando a parecer démodé. Mesmo nos EUA dos dias de hoje, vai levar algum tempo antes que o racismo realmente se torne uma coisa do passado.
Tradutor: Cláudia Gonçalves
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