"Não conseguimos cumprir a nossa missão", diz ministro alemão sobre o Afeganistão
Matthias Gebauer - Der Spiegel
O ministro da Defesa da Alemanha, Thomas de Maizière, afirma durante uma visita ao Afeganistão: “Em algum momento, nós teremos que tirar as rodinhas para aprendizado dessa bicicleta”.
O ministro da Defesa da Alemanha acredita que os próximos dois anos serão difíceis para os soldados alemães estacionados no Afeganistão. Em uma entrevista a “Spiegel Online”, Thomas de Maizière faz uma avaliação algo negativa da missão de dez anos da Bundeswehr (forças armadas da Alemanha) no Afeganistão.
Spiegel Online: Ministro de Maizière, a missão da Força Internacional de Assistência para Segurança (FIAS) da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão teve início há exatamente dez anos. Agora, a Otan está implementando medidas para uma futura retirada das suas tropas do país. Quais foram as realizações dessa missão até o momento?
Thomas de Maizière: A questão referente às metas alcançadas depende de qual foram as metas estabelecidas. No contexto do atual debate sobre esse assunto, eu me lembrei do debate no Bundestag (o parlamento federal alemão) do outono de 2001. Os mais ardentes defensores dessa missão naquele momento foram políticos como Christian Ströbele, deputado do Partido Verde, e a então ministra do Desenvolvimento, e integrante do Partido Social-Democrata, Heidemarie Wieczorek-Zeul. Eles, assim como outros, apresentaram uma proposta, baseada fundamentalmente em preocupações relativas aos direitos humanos, de criação de uma democracia livre no Afeganistão segundo o modelo alemão, com o auxílio da Bundeswehr, as forças armadas da Alemanha. Se nós assumirmos que essa era a nossa meta original, teremos que afirmar honestamente que não conseguimos cumprir a nossa missão.
Essa é uma avaliação meio negativa.
De Maizière: Sem dúvida foi negativo, e para muitos de nós também doloroso, ter que reformular os nossos objetivos. Mas foi necessário. Não fazia sentido alimentar ilusões. E se avaliarmos o que conseguimos realizar no que se refere a essas metas mais modestas, sem dúvida conseguimos fazer alguma coisa no Afeganistão. O país possui mais escolas agora do que na época do Taleban, o sistema de saúde é melhor e as pessoas contam com maior liberdade de opinião. Ainda que nem sempre estejamos satisfeitos com o grau de sucesso obtido, nós devemos reconhecer essas realizações. Mas, ao mesmo tempo, é importante afirmar sem rodeios que o Afeganistão ainda não tem uma democracia verdadeira, e talvez jamais venha a ter.
Você poderia definir essas metas mais modestas de forma mais precisa?
De Maizière: Desde o princípio, o nosso objetivo era fazer com que o Afeganistão não voltasse a se tornar uma base de operações e um esconderijo para o terrorismo internacional, conforme ocorria antes de 11 de setembro de 2011. Atualmente nós podemos garantir que essa mudança ocorreu. O segundo objetivo era fazer com que uma parcela apropriada das medidas de segurança fosse implementada pela liderança afegã, o que significava que teríamos que treinar e construir o exército afegão. Quanto a isso, nós estamos trilhando o caminho certo. Mesmo assim, eu recomendaria cautela a quem estiver muito otimista quanto aos anos que antecedem uma retirada das nossas tropas em 2014.
Por que isso?
De Maizière: Porque haverá percalços; eu tenho certeza disso. A missão está longe de ser concluída. Nós delegaremos cada vez mais responsabilidades às forças armada afegãs, conforme temos mesmo que fazer, mas nem tudo correrá tranquilamente. Eu gosto de comparar isso a uma criança que está aprendendo a andar de bicicleta. Em algum momento, é necessário retirar as rodinhas de aprendizado e assumir o risco de que a criança poderá cair. No caso do Afeganistão, é claro que equívocos e irregularidades cometidos pelo novo exército poderiam ter consequências mais graves do que alguns arranhões e um joelho machucado, tanto para a Bundeswehr quanto para os afegãos.
O atual debate público concentra-se principalmente na retirada das tropas, algo que conta com o apoio da maioria dos eleitores. E sem dúvida está havendo uma redução notável do número de soldados no Afeganistão. Mas a retirada, que estava planejada para ter início em 2012, não está começando meio prematuramente?
De Maizière: A decisão que o governo tomou se constitui em um acordo militarmente justificável e em algo que a população pode apoiar. Sob o ponto de vista político, tanto o governo quanto a maior parte da oposição concorda com essa fórmula. Militarmente, o plano atual é justificável, já que ele também remete uma mensagem clara aos líderes afegãos: eles precisam fazer mais do que fizeram até o momento no sentido de assumir a responsabilidade sobre o seu país. Em minha opinião, a assistência fornecida pelas tropas internacionais por tempo excessivo, e que foi inicialmente disponibilizada por um período limitado, teve um efeito quase que soporífero sobre as pessoas no Afeganistão. Sem esse plano não ambíguo para a retirada, ainda que ele seja bastante ambicioso, jamais teria sido possível motivar o governo afegão a finalmente fazer algo mais com o objetivo de criar o seu próprio exército e um sistema de serviços e trabalhos administrativos.
Mas a retirada não parece estar mais tão vinculada assim à criação e fortalecimento das forças de segurança ou do governo do Afeganistão. Ela parece estar mais ligada ao fato de os países membros da Otan estarem desejando se retirar.
De Maizière: Nós não permitiremos políticas irresponsáveis. Nós tentaremos reduzir o número de tropas de uma maneira responsável. No ano que vem, com o novo mandato, nós reduziremos os efetivos em todas as áreas militares e deixaremos de aplicar aquelas capacidades bélicas que não estão sendo muito utilizadas. E também removeremos as tropas de reserva que temos mantido até agora no Afeganistão. Mas, por favor, não me entenda mal. Nós não reduziremos o poder de combate das nossas tropas no ano que vem, porque nós ainda necessitamos de uma parte considerável delas nas regiões instáveis que se encontram sob o nosso comando. A Bundeswehr ainda será capaz de reagir decisivamente a situações perigosas em 2012 e em anos seguintes.
Você está se referindo às regiões mais precárias no norte do país, tais como redutos do Taleban próximos a Kunduz e a Baghlan. Comandantes militares têm afirmado de forma bem aberta que acham que uma retirada, mesmo após dois anos adicionais de luta contra os insurgentes, não é uma perspectiva realista.
De Maizière: É evidente que eu não tenho como prever o futuro, mas eu entendo essas preocupações. Nos últimos dois anos, nós obtivemos grandes resultados nas regiões que você mencionou. Travamos batalhas difíceis e sofremos baixas. Nós daremos continuidade a essa estratégia dura para derrotar os insurgentes nos próximos dois anos, mas as regiões de Kunduz e de Baghlan sem dúvida permanecerão estáveis. Elas têm uma grande importância tática, tanto para nós quanto para os insurgentes, até mesmo devido à rota de suprimentos que a corta em direção ao norte. Uma retirada de lá seria sem dúvida difícil, mas, como ministro da Defesa, eu não permitirei que haja um vácuo nas questões de segurança, nem nas áreas que você mencionou nem em nenhuma outra área do norte do Afeganistão. Eu só retirarei tropas naquelas regiões nas quais as forças afegãs sejam realmente capazes de assumir a responsabilidade pela defesa. Agir de outra forma seria loucura.
Tendo em vista as diversas dúvidas quanto à efetividade do exército afegão, isso que você acaba de dizer soa mais como um otimismo resultante do simples fato de não haver nenhuma outra opção.
De Maizière: Eu estou decidindo conscientemente não fazer promessas, e sim me orientar pela situação concreta atual. Os atuais relatórios indicam que faz sentido ter uma confiança comedida. Nos últimos meses, nós nos concentramos em aumentar o contingente do exército afegão. Agora precisamos prestar atenção à qualidade desse exército. Ainda temos muito trabalho pela frente. Precisamos treinar melhor oficiais supervisores, e na reunião da Otan em Chicago, em maio de 2012, nós saberemos quais dos países envolvidos com o Afeganistão desejam financiar a manutenção do exército afegão no futuro, e decidiremos qual é a melhor maneira de equipar esse exército.
O exército afegão é sem dúvida uma peça importante da base para a estabilidade no país, mas o governo afegão é ainda mais importante. Recentemente, o presidente Hamid Karzai, que está no poder desde 2001, prometeu mais uma vez à comunidade internacional que implementará reformas para criar uma melhor governança, estabelecer mais igualdade e combater decisivamente a corrupção. Você ainda acredita nessas promessas?
De Maizière: Ele deveria ter dito uma coisa de forma bem clara: o processo político no Afeganistão está muito atrasado em relação àquilo que nós podemos atingir e já atingimos no campo militar. Isso é algo que nós temos que repetir incessantemente para os indivíduos mais importantes da política afegã, e também para as várias regiões do país. Karzai terá que provar nos próximos meses que está levando as suas declarações a sério, caso contrário ele correrá o risco de perder a credibilidade.
Você poderia ter aproveitado a oportunidade para dizer isso a ele pessoalmente durante a recente conferência sobre o Afeganistão, realizada em Bonn.
De Maizière: O meu papel não é ensinar política externa nem passar dever de casa para os outros. Mas, ao mesmo tempo, todos sabemos que nós ainda estamos nos deparando com muitas tarefas difíceis, que vão desde o processo político para que se tenha uma governança mais tolerável em Cabul até ao extremamente complexo processo de reconciliação com o Taleban. O fato de o progresso militar ser no momento maior do que o progresso político pode não ser algo de ideal, mas, falando como ministro da Defesa, isso certamente não prejudica a imagem dos meus soldados, que estão fazendo um trabalho excelente.
Deixemos de lado por um momento os detalhes relativos à missão, e falemos sobre os significados dela para a Otan e a Alemanha. Como foi que a missão da ISAF modificou a Otan?
De Maizière: A missão no Afeganistão transcendeu bastante a Otan, tendo contado com o envolvimento de muitos países que não são membros dessa organização militar. Eu creio que essa missão colocou integralmente à prova, pela primeira vez, a cooperação no seio da Otan, e a organização se saiu bem. Atualmente, quando vamos ao Afeganistão, vemos os alemães trabalhando em conjunto com soldados norte-americanos ou britânicos, ou mesmo com os seus colegas da Mongólia, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Nós superamos enormemente muitas das nossas reservas e profissionalizamos a forma como administramos as operações. Isso é uma coisa que não é possível praticar em treinamentos, já que é algo que só ocorre em missões reais. Sem isso, talvez nós jamais tivéssemos sido capazes de executar operações como a da Líbia. Com todos os comentários a respeito de uma crise na Otan, é importante observar que os membros da organização nunca cooperaram tão intensamente entre si, e nós continuaremos a fazer isso após a conclusão da operação no Hindu Kush. Não se pode voltar ao passado.
Mas, ao mesmo tempo, agora é improvável que qualquer país membro da Otan se arrisque em outra missão ofensiva terrestre como essa no Afeganistão, não é mesmo?
De Maizière: A mim parece que nenhuma nação da Otan tem interesse em intervenções por meio de invasões. Mas esse ponto de vista tem as suas vantagens: supostamente, no futuro, ninguém tentará executar ações unilaterais. Em vez disso, a opção será por uma união de forças e, até mesmo, como no caso da Líbia, por operações dotadas de um mandato legítimo das Nações Unidas. Isso serve para reduzir as suspeitas de que nações individuais possam executar tais missões apenas por interesse próprio.
A Alemanha teve a honra de ser solicitada diversas vezes a participar de tais missões conjuntas, conforme ocorreu na Líbia. O país está pronto para novas aventuras militares?
De Maizière: Não é uma questão de aventuras. A missão no Afeganistão provocou amplas mudanças não só para a Bundeswehr, mas também para a Alemanha como um todo. Com essa missão, por mais polêmica que ela tivesse sido e que ainda seja, a Alemanha provou para si própria que é um membro integral e capaz da Otan. Antes da missão ISAF, a maioria dos nossos parceiros provavelmente sequer acreditava que soldados alemães eram capazes de combater, ou que os nossos líderes ousariam dar ordens de combate. Nós provamos que somos de fato capazes de fazer isso tudo, e que estamos dispostos a fazer sacrifícios. Nós acabamos com aquela imagem do médico militar e do observador de eleições, e nos tornamos um exército integral que é respeitado pelos nossos parceiros. A campanha no Afeganistão e a ampla mobilização do nosso exército transformaram tanto a Bundeswehr quanto a Alemanha, e isso foi uma conquista permanente para nós.
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