Reino Unido e União Europeia, um divórcio caro demais
Walter Oppenheimer - El País
Apesar da cúpula do euro, Londres e Bruxelas estão condenadas a manter seu casamento de conveniência
O jornal eurocético "Daily Mail" vê a União Europeia como "estatista, super-regulamentada, antidemocrática e corrupta". Os federalistas europeus veem os britânicos como arrogantes, fanfarrões, agressivos, ignorantes e, sobretudo, embusteiros quando falam da Europa. Hoje há quem também os considere chantagistas, por tentar fazer do euro refém para garantir pelo séculos dos séculos a hegemonia de Londres como praça financeira.
Entretanto, britânicos e continentais parecem condenados a se entender. É um casamento de conveniência, e o divórcio sairia muito caro. "A UE perderia muito sem o Reino Unido", admite um discreto alto funcionário europeu. "Tive momentos terríveis com os britânicos. Tornaram minha vida impossível muitas vezes, mas são um elemento de enorme equilíbrio, sobretudo diante dos alemães", sintetiza.
Os britânicos perderiam ainda mais. Sua economia se ressentiria e o país seria menos influente: se evaporaria essa ponte transatlântica que muitos já consideram imaginária e "se apagariam suas aspirações de ser uma voz global na medida em que a UE já não atuaria como amplificador", afirma Ian Bremmer, fundador e presidente da consultoria política global Eurasia Group.
"A Grã-Bretanha sofreria se abandonasse a UE", opina o deputado trabalhista Denis MacShane, um europeísta ardente. "Cinquenta por cento de seu comércio são com a UE. Além disso, nos últimos 20 anos levou a parte do leão de investimento estrangeiro direto procedente da América do Norte e da Ásia como plataforma de entrada no maior mercado do mundo. Não pode se desconectar da Europa."
"Se o Partido Conservador, que não tem representação na Escócia, decidisse deixar a UE, aceleraria o movimento escocês para a independência", alerta MacShane, porque a Escócia é muito mais pró-europeia do que a Inglaterra. "Também teria sérias implicações nas relações com a Irlanda. E colocaria interrogações sobre a vida de 2 milhões de britânicos que, graças à norma de livre circulação de pessoas, residem em outros países da UE, centenas de milhares na Espanha", afirma. "Infelizmente, nossa imprensa e nossos políticos antieuropeus não pensaram em tudo isso", lamenta.
Bremmer, um americano sem as afiliações políticas e sentimentais de MacShane, esclarece de saída: "É muito improvável que o Reino Unido abandone a UE, porque teria um enorme impacto negativo nas duas partes". "Para a UE seria perder uma voz sensata, que ajudou a transferir o debate sobre crescimento econômico da integração interna para a globalização e pressionou para transformar a ampliação na nave-mãe da UE. A UE perderia influência internacional porque o Reino Unido deixaria de representá-la em assuntos globais."
"O Reino Unido também sofreria. Teria um papel mais modesto em assuntos como mudança climática e migração. O impacto econômico seria ainda mais preocupante. Uma vez fora, poderia perder o acesso às vantagens econômicas ou pagaria um preço para mantê-las. Em política interna veríamos um entorno mais divisor, com um Partido Conservador fraturado", explica.
Simon Tilford é economista-chefe do Centro para Reforma Europeia (CER na sigla em inglês), um centro de estudos com uma visão muito britânica do europeísmo: mais eficácia e menos utopia federal. Concorda em que abandonar a UE deixaria o Reino Unido isolado politicamente, tanto da Europa como dos EUA. "Uma das coisas que os EUA valorizam na Grã-Bretanha é seu interesse comum na UE. E estando fora não seria capaz de fazer sua função de ponte, que não é que agora seja muito bem sucedida." "Em economia não é que o país vá ficar sem luz e parar de funcionar, mas teria grandes implicações", acrescenta. "Não estar no euro não foi um grande problema. Mas não estar na UE sim, seria. Muitas empresas estão no Reino Unido para servir ao mercado europeu, e não está claro o que aconteceria com esses investimentos", enfatiza.
A Europa também perderia, adverte Tilford. "O Reino Unido foi de certa maneira muito bom e muito ruim para a UE. Ajudou a romper barreiras no mercado interno. E é um contrapeso para a capacidade de alemães e franceses dominarem a Europa. Os nórdicos, holandeses, italianos, espanhóis e europeus do leste sentiriam sua falta. Não posso ver nenhuma vantagem em que saia. Apesar das tensões, a relação tem benefícios mútuos."
O maior problema que se coloca é como sair da UE. Não é um problema legal: se o Reino Unido quiser sair, sai. E, embora fosse um trauma político, do ponto de vista institucional seria inclusive uma bênção, porque desapareceria o parceiro mais complicado, com cláusulas que o excluem de áreas chaves. O euro e os controles de viajantes nas fronteiras são as mais conhecidas, mas suas exclusões na área de Justiça e Interior são as mais delicadas. O problema para Londres é para onde ir. O espaço econômico europeu com Noruega x e islã de a? Um acordo bilateral como a Suíça? Integrar se em uma área de livre comércio junto com os EUA?
A opção norueguesa é em princípio a mais fácil. Soa bem: continuar desfrutando do mercado interno comunitário, mas de fora. A música é bonita, mas a letra é amarga. "Se quiser fazer como a Noruega, terá de aceitar a maior parte da norma de Bruxelas, mas não terá uma voz na mesa", adverte Mats Persson, diretor da Open Europe, um centro de estudos com escritórios em Londres e Bruxelas que acredita no mercado interno mas não na Europa federal.
Para a Noruega, com uma população pequena e enormes recursos naturais como gás e petróleo, acatar as regulamentações do mercado interno sem opinar não é um problema. Para os britânicos, com interesses em todos os setores, seria um problema enorme. "Teria que aceitar que a City fosse regulamentada por uma organização que não tem por que lhe fazer nenhum favor", salienta Persson. "A UE faz demais, regulamenta demais, interfere demais, mas ao mesmo tempo as corporações europeias têm acesso ao mercado interno. Se você sai, tem mais controle sobre sua própria normativa, mas perde oportunidades na Europa."
Tony Greenham, da New Economics Foundation (NEF), acredita que o Reino Unido tentaria negociar uma exceção para serviços financeiros, "mas resta ver se os demais aceitariam, dado o impacto que pode ter em suas economias o negócio financeiro global que se realiza através de Londres". Há setores, por sua vez, que hoje estão submetidos a Bruxelas mas deixariam de estar, como pesca, agricultura ou política social, observam Aniol Esteban e Anna Coote, também do NEF. "Voltariam a ter soberania sobre suas águas, e isso implicaria a saída de barcos espanhóis e franceses das 12 milhas náuticas e potencialmente até 200 milhas em algumas áreas. Isso poderia reduzir a pressão sobre alguns pesqueiros", observa Esteban. Mas criaria graves problemas para a frota espanhola. Os barcos europeus também poderiam ser expulsos das ilhas Malvinas.
"O Reino Unido é um dos países da UE com mais desigualdades sociais, e se daria um passo atrás se o governo decidisse não manter as diretrizes sobre tempo de trabalho e sobre igualdade, que foram de grande ajuda", sintetiza Coote.
O fato de ter de continuar aceitando as normas do mercado interno sem poder moldá-las não é o único inconveniente: também continuariam submetidos à instituição comunitária que mais desprezam, o Tribunal de Luxemburgo. Negociar um acordo bilateral, como fez a Suíça, parece a alternativa natural para superar essas limitações. Mas isso não é tão fácil.
"O modelo suíço seria muito melhor para o Reino Unido, porque teria mais controle sobre os acordos, mas a Suíça está há décadas trabalhando suas relações bilaterais com a UE, e é muito difícil imaginar que a Grã-Bretanha possa fazer o mesmo de um dia para o outro", adverte Persson. A Suíça, como a Noruega, tem interesses em poucos setores e muito concretos, como transporte aéreo e energia. Além disso, tem um trunfo de negociação que a Grã-Bretanha não tem: é o lugar onde todos põem o dinheiro. E os acordos entre UE e Suíça são um bloco de sete pacotes ligados entre si: se um cai, caem todos de forma automática.
Há uma terceira alternativa: buscar outros horizontes. Formar uma área de livre comércio com os EUA e transformar-se em um novo México, por exemplo. E negociar acordos bilaterais com países emergentes, como China, Índia ou Brasil, ou com os da Commonwealth. Alguns veem isso como um suicídio, mas Gwain Taylor, do Partido pela Independência do Reino Unido (UKIP na sigla em inglês), não está entre os que duvidam: "Teríamos de cumprir os critérios do mercado interno, assim como faz hoje uma firma americana ou chinesa ou de qualquer lugar. Não é tão complicado e é perfeitamente factível".
Mas admite que no início seria duro. "Para a Grã-Bretanha haveria custos, não seria grátis, a liberdade nunca é grátis, mas tem mais a ver com liberdade e independência que com economia. Há um argumento moral, democrático. Podemos demitir o chefe? Podemos despedir o primeiro-ministro?", defende.
Taylor acredita que a Europa está ferida desde que a Holanda rejeitou a Constituição Europeia. "Provocou uma comoção em Bruxelas. Acabou com a confiança cega em que a UE duraria para sempre. O sistema continua funcionando, se legisla, a Croácia ingressa, mas essa confiança idealista acabou. E se um país sai, e não um país qualquer mas de grande peso, essa confiança ficará despedaçada." "E se outros países virem que pelo fato de deixar a UE o Reino Unido consegue uma vantagem competitiva no mercado global, países como Finlândia, os escandinavos, alguns da Europa do Leste poderiam pensar que talvez seja o que lhes convém. E isso mudaria o centro de gravidade da UE", prevê Gwain Taylor.
Em um provocador artigo em "The Wall Street Journal" reproduzido pelo "Sunday Times" de Londres, o historiador britânico e professor em Harvard Niall Ferguson afirmou há alguns dias que dentro de dez anos a UE terá desaparecido. Em seu lugar estarão o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda (quer dizer, a Irlanda unificada mas dentro do Reino Unido), a Liga Nórdica (com Dinamarca, Finlândia, Suécia e Noruega) e os Estados Unidos da Europa, com Viena como capital e os países do sul com índices de desemprego crônicos de 20% e vivendo das transferências de riqueza do norte.
Disparatada ou visionária, sua opinião reflete outra contribuição britânica: o estímulo intelectual que surge de suas universidades, ao qual se referia há alguns dias neste jornal o professor Jordi Vaquer: "Sem a Grã-Bretanha, a UE não só perde peso militar, acadêmico e financeiro, mas também um país que demonstrou capacidade de inovar em políticas públicas e organização administrativa muito acima de seus sócios continentais. E em que posição global ficaria o Espaço Europeu de Educação Superior se lhe tirarmos Oxford, Cambridge e as demais universidades britânicas? A Grã-Bretanha é um país de eurocéticos, mas também de alguns dos mais brilhantes, apaixonados e eficazes defensores da UE."
Divórcio à vista? Parece muito caro.
O perigo da debandada
A Irlanda é o único país que poderia deixar a UE seguindo a Grã-Bretanha. A saída britânica poderia provocar uma debandada? "Creio que não, porque o europeísmo dos demais não tem a peculiaridade britânica de estar no Conselho de Segurança da ONU e ter armas nucleares. O Reino Unido ainda pode julgar que é alguém no mundo", reflete José Ignacio Torreblanca, diretor do escritório em Madri do Conselho Europeu de Relações Exteriores.
Torreblanca acredita que um aspecto muito interessante da crise atual é que "nem os escandinavos nem os do leste foram subservientes aos britânicos, pelo contrário". "Os britânicos, que sempre jogaram um pouco com o subentendido de que não estão sós, que no fundo são os líderes da parte sã, a parte não enferma do continente, veem que isso desta vez lhes caiu. O fato de ninguém ter movido um dedo por eles os deixou bastante preocupados. E especialmente a Polônia quebrou um pouco o espelho britânico: perceberam que isso do Reino Unido é totalmente tático", afirma.
Mas, se a crise parece ter distanciado Londres desses países, teve o efeito contrário na Irlanda. Antes um exemplo de país europeísta como nenhum, hoje duvida. Apesar de seu histórico de conflitos com a Grã-Bretanha, os vínculos são enormes e a crise financeira e a do euro não fizeram mais que salientá-los. A Irlanda poderia abandonar a UE se a Grã-Bretanha o fizer? "Se me tivessem feito essa pergunta há apenas dois anos eu teria dito que não, que de forma alguma. Mas hoje não estou tão seguro... não sei", admite Paul Bew, historiador norte-irlandês e membro independente da Câmara dos Lordes.
A Irlanda não pôde entrar antes na UE porque seu vínculo econômico com o Reino Unido era tão grande que teve de esperar até que o vizinho se decidisse a ingressar, em 1973. Depois, o milagre do Tigre Celta lhes deu tal confiança que se atreveram a adotar o euro, embora a libra tenha ficado fora. Tudo isso foi para o buraco.
A Irlanda olhava para a França da Revolução e de Napoleão no final do século 18 e a Alemanha das duas guerras mundiais no século 20, explica Bew. "A visão dos alemães como aliados está hoje completamente morta em Dublin, completamente morta. Isso significa que tudo é imprevisível."
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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