Dois mundos entram em confronto na Rússia
Maxim Trudolyubov* /Eloise De Vylder - Herald Tribune
Eu percebi que algo estava diferente quando uma amiga próxima, Katya Vladyshevskaya, mãe de uma linda criança de quatro anos, ligou para mim há um mês e perguntou se fazia algum sentido se tornar uma monitora eleitoral. Bem, sim, eu disse. "Por que não? Deve ser uma coisa boa".
Mas enquanto conversávamos, fiquei surpresa com a ideia de que uma pessoa jovem -não um jornalista ou ativista civil, nenhum dos que costumam fazer isso– ficasse ativamente interessada no processo eleitoral.
E não era apenas conversa. Ela passou 15 horas no domingo numa seção eleitoral de Moscou, onde presenciou fraudes descaradas por parte do chefe de seção e tentou apresentar uma queixa formal. Ela mostrou aos oficiais a lei eleitoral russa e pediu para que eles comparassem o número de pessoas que votaram com o número de cédulas nas urnas. Eles responderam chamando a polícia.
Nós esperamos do lado de fora da delegacia enquanto ela relatava o episódio. Eles a soltaram por falta de provas de sua "conduta inapropriada". Naquela noite ela entrou com uma queixa contra as autoridades. Katya contou que nunca imaginou que podia sentir tanta raiva.
Os russos já tiveram raiva antes. Mas eu tenho dificuldades para lembrar de uma época em que meus conterrâneos, especialmente os jovens, ficaram tão irritados com um voto roubado. E o protesto não foi tão silencioso e contido, como costuma ser; ele ganhou as ruas.
Na segunda-feira, um dia depois das eleições, até 10 mil pessoas se manifestaram em Chistye Prudy, um boulevard de Moscou. Mais de 300 foram detidas pela polícia. Na noite de terça-feira, uma pequena multidão foi para a Triumphalnaya, e desta vez a polícia reagiu fortemente: mais de 560 foram detidas com brutalidade e total desrespeito à lei. Em São Petesburgo, depois de uma manifestação semelhante, 300 pessoas foram detidas.
O blogueiro e ativista Aleksei Navalny, 35, o jovem político Ilya Yashin, 28, e muitos outros líderes da atividade de protesto espontânea foram logo sentenciados a 15 dias de prisão por desobedecer policiais. Navalny e Yashin negaram qualquer resistência às autoridades.
A manhã da segunda-feira, quando os resultados da votação foram anunciados, com seus números inflados para a Rússia Unida, o partido dominante, transformou-se num marco. Até ativistas políticos experientes não esperavam que a situação explodisse – cédulas fraudadas e mortos votando não são novidade na Rússia.
Mas na segunda-feira, descobrimos que há um limite para a fraude eleitoral. Num sentido mais amplo, descobrimos que há um limite para a manipulação política.
Durante anos, os engenheiros políticos do Kremlin vinham suprimindo os movimentos de base e criando estruturas gerenciáveis de cima para baixo. Eles cimentaram o total controle sobre os canais de televisão do país, e sua pesada censura criou um muro entre a maioria silenciosa que assiste a TV e uma minoria mais vocal, versada na internet. Âncoras de TV de renome nem sequer mencionaram os protestos ou a repressão.
O Kremlim controla o sistema político, os tribunais e todo o sistema de aplicação da lei, bem como as finanças regionais e grandes indústrias. Partidos políticos obedientes e organizações de jovens costumam ser usados para fazer demonstrações de “apoio da base”.
Uma solução imediata para a crise atual seria uma nova eleição nas regiões que foram especialmente afetadas pela fraude. Mas Vladimir Putin vê qualquer concessão política como um sinal de fraqueza.
Mas apesar de todo o poder do Kremlin, o chão está escorregando sob o sistema. Os protestos, ainda relativamente modestos em escala, ainda podem definhar com a pressão. Mas a raiva deflagrada pela eleição de domingo não desaparecerá. Os métodos manipulativos do Kremlin não funcionarão como antes. As prisões até ajudaram a oposição a resolver seu problema de liderança. Navalny, que fez seu nome como um destemido fiscal anti-corrupção, adquiriu um apelo mais amplo. Seu blog se tornou um veículo de mídia por iniciativa própria.
Mais importante que isso, pessoas como Katya, a monitora eleitoral, engajaram-se. Sua idade, o fato de não terem nenhuma experiência prévia de vida sob um regime totalitário, o crescimento explosivo das redes sociais e outras novas mídias, juntaram-se para ajudá-los a confrontar forças com as quais os seus pais haviam se acostumado. A corrupção onipresente, os funcionários que abertamente confundem o orçamento estatal com seus bolsos, a negligência cínica com a coisa pública definitivamente também ajudaram.
Dito isso, é preciso lembrar que os jovens que expressaram seu descontentamento ainda são uma minúscula minoria num vasto país. Há outras correntes sociais poderosas na sociedade russa. Olga Borovkova, juiz que sentenciou Navalny e Yashin, tem 26 anos de idade. Os muitos participantes de movimentos organizados pelo Kremlin são mais jovens ainda. A década de Putin produziu toda uma camada de jovens ansiosos para voltar os recursos do estado para vantagem própria.
Putin afinou seu sistema politico para criar altos benefícios para as elites, que por sua vez usam os procedimentos para consolidar o sistema político e construir um estilo de vida esnobe fora da Rússia. Esses são modelos atraentes.
Pesquisas de opinião (feitas antes das eleições) mostraram consistentemente uma mentalidade amplamente difundida de viver de lucros e uma preferência entre os jovens por empregos na Gazprom e Rosneft, os monopólios estatais de recursos naturais. Esses jovens, funcionários e aspirantes a chefes, podem bem ver os manifestantes como rivais ou inimigos interferindo em seu futuro lucrativo.
Não foram só o partido que vive de rendas e apoia o estado e os manifestantes quixotescos e desorganizados que colidiram em Moscou. As visões de mundo e duas imagens do futuro do país estão desencontradas. Não há nenhuma saída fácil do beco sem saída em que a sociedade russa se encontra.
Graças a todos aqueles anos de políticas falsas e construção de partido à Potemkin, a Rússia não tem uma alternativa pronta para substituir o partido de Putin. Mas Putin e seu partido não são mais tão poderosos quanto eram antes de 4 de dezembro. Embora com uma maioria no papel, eles não podem mais agir em nome do povo.
O próximo grande teste deve acontecer num protesto em massa no sábado. As redes sociais estão divulgando-o ativamente – e também instruindo as pessoas em como se comportar para não provocar as autoridades, e caso sejam presas. A possibilidade de protestos de massa é alta: as autoridades deram uma permissão para 300 manifestantes, e muitos milhares são esperados.
* Maxim Trudolyubov é editora da página de editorial do jornal russo Vedomosti.
Tradução: Em Moscou (Rússia)
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