domingo, 11 de dezembro de 2011

RÚSSIA II

Fortalecimento do PC mostra insatisfação na atual Rússia
Com um discurso que prega a volta da URSS, comunistas começam a incomodar
Vivian Oswald - O Globo
MOSCOU - Um mês antes da eleição que fez o Partido Comunista da Federação Russa (KPRF, em russo) praticamente ressurgir das cinzas, a tradicional Praça Pushkin, na capital, amanheceu cercada de policiais. Eles vigiavam a manifestação marcada para aquele sábado frio, em que os comunistas iam se aglomerando e, aos poucos, pareciam fazer a praça viajar no tempo. A julgar pelas 300 pessoas ali reunidas, ninguém imaginaria que 20 anos após a desintegração da União Soviética, os velhos comunistas voltariam a se destacar nas urnas, conquistando, na semana passada, 20% dos votos para a Câmara baixa e se tornando a principal força opositora ao poderoso primeiro-ministro Vladimir Putin. Os comunistas, a nostalgia e a insatisfação que cercam a Rússia atual são o tema da primeira reportagem de uma série que O GLOBO publica nesta semana mostrando os desafios enfrentados pelo país duas décadas depois do anúncio, em 25 de dezembro de 1991, de que a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS, não existia mais.
Os comunistas surpreenderam os institutos de pesquisa de opinião e o próprio Kremlin, que sempre tratou o partido como uma espécie de oposição domesticada e inofensiva. Mas com um discurso que prega a volta da URSS, eles começam a incomodar. Mais do que num projeto de retorno ao passado, no entanto, os russos votaram nos comunistas em um sinal de protesto.
- Eu e todos os meus amigos votamos neles. São os únicos que ainda conseguem juntar um número significativo de votos. É a nossa forma de dizer não ao que está aí - disse ao GLOBO o professor universitário Boris Andreevitch.
O público jovem na praça ainda era minguado. Russos de mais idade, soviéticos pela maneira de pensar e de vestir, carregavam medalhas e condecorações da época do regime. A grande bandeira vermelha com a foice e o martelo só não convencia o transeunte de uma volta ao passado por destoar dos anúncios capitalistas.
Até as eleições de 4 de dezembro, os comunistas eram praticamente o único grupo a receber a permissão para realizar os seus encontros nas praças mais importantes da cidade. Resta saber que tratamento terão a partir de agora. Depois do resultado da semana passada, o pleito para presidente, em março próximo, promete um pouco mais de emoção, embora todos considerem que já esteja ganho por Putin.
Mais uma vez, o eterno líder do PC, Gennady Andreevitch Ziuganov, disputará as eleições presidenciais. Será a sua quarta tentativa. Mas aos 67 anos, Ziuganov não soube se reinventar. Com um discurso antiquado, esse ex-professor de matemática é considerado pouco carismático e pouco espontâneo ao falar em público - características que não lhe favorecem. O candidato, no entanto, desta vez pode se beneficiar do descontentamento das ruas.
- Eu e meus amigos vamos votar nele para protestar, mas ele não tem a cara da Rússia. Todos sabem que não vai conseguir - admitiu a escritora Maria Polytaeva.
Os comunistas tomam o microfone e interrompem as velhas marchas para se queixar da atual situação econômica. O fato é que o fim da União Soviética desperta sentimentos contraditórios. Enquanto uns acreditam que há motivos para comemorar sua desintegração, outros não escondem o desânimo e admitem sentir falta da velha URSS, ou, pelo menos, das garantias que o Estado socialista oferecia, ainda que o preço a se pagar pelo benefício tenha sido alto. Cerca de 28% da população gostariam de voltar atrás e reconstruir a União Soviética, segundo a pesquisa do instituto VTsIOM.
- Há muita nostalgia, mas todos sabem que não é possível voltar atrás. Os mais novos nem sabem o que era. A juventude é alienada e apolítica. Só quer saber de ganhar dinheiro. Antes, os jovens queriam ser astronautas, sociólogos, físicos. Hoje, só querem ser businessmen, banqueiros e financistas - disse Igor Fescinenko, 79 anos, repórter de TV na União Soviética, hoje consultor e professor universitário.
A insatisfação está relacionada ao fato de que a economia e a vida política passaram a andar em círculos. Nem mesmo após uma década crescendo a uma média de 7% ao ano, o país conseguiu reduzir a sua dependência do petróleo.
Para o último ex-vice-premier da URSS, Vladimir Scherbakov, hoje presidente da União dos Industriais da Rússia, o país mudou para melhor.
-A Rússia entrou para a economia global. Podemos encontrar de tudo aqui. Se compararmos a evolução do salário médio na Rússia e nas outras ex-repúblicas, vemos que houve um incremento importante, praticamente dobrou - disse Scherbakov.
Outros afirmam que os ganhos limitam-se ao consumo.
- O que adianta ter tudo, se não tenho dinheiro para comprar nada? - reclama a funcionária pública Natalia Borisovna.
Boa parte dos russos vê naquele 25 de dezembro de 1991 o mesmo que Putin chamou de "uma grande catástrofe geopolítica". Da União Soviética à atual Rússia, há uma diferença de cinco milhões de quilômetros quadrados - território dos outros 14 países que nasceram pós-desintegração - o equivalente a duas Argentinas. A sensação geral é de perda de território, a maior da História contemporânea.
Poucos comemoram a data. A agência Itar-Tass faz uma silenciosa homenagem com fotos na entrada do prédio, atraindo um ou outro pedestre. Na Biblioteca Lênin, escondida em um corredor do terceiro andar, há uma exibição com fotos-legendas que contam a história da instituição no período de 1917 a 1991.
Desigualdades e na lanterna dos Brics
Em geral, só os oposicionistas falam abertamente no assunto. No site do PC, há um manifesto e um cartaz sobre os "20 anos sem a URSS". Em um dos textos, o grupo diz que estas duas décadas foram, para a Rússia, "um caminho de dificuldades sem fim". "Agora, às nossas dificuldades se soma a crise econômica mundial. Quanto tempo a Rússia ainda vai precisar para resolver os seus profundos problemas?", pergunta o texto.
A estabilidade econômica pós-década de 90 é o que vem sustentando a situação. Mas os salários dos aposentados não acompanharam a bonança. Tampouco o fizeram a saúde e a educação, que perderam em qualidade e têm obrigado os russos a desembolsar cada vez mais por algo que supostamente deveria ser gratuito. Em 2008, logo após a crise financeira global, o país ainda conseguiu crescer 5,2%, mas despencou 7,9% em 2009, ficando na lanterna dos Brics (os emergentes Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Voltou a crescer 4% em 2010, mas continuou sem se modernizar.
As desigualdades nesse país que tanto pregou o socialismo também vêm crescendo. Os 120 mil milionários estão cada vez mais distantes da camada mais pobre da população. Tudo isso justifica o clima de insatisfação, manifestado nas urnas no último domingo, com a redução do apoio ao partido Rússia Unida, de Putin, e o indício de que a campanha para sua volta à Presidência não será tão tranquila.

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