segunda-feira, 25 de junho de 2012

Paraguai – o golpe que não houve
Fábio Ostermann - OL
Na noite de 28 de março de 1979, James Callaghan, chefe do poder executivo no Reino Unido, foi destituído de seu cargo após votação na Casa dos Comuns. Por uma diferença de apenas um voto (311 a 310), a derrota do governo trabalhista levou à convocação das eleições gerais que levaram ao poder o Partido Conservador, encabeçado por Margaret Thatcher.
Golpe? Claro que não. O procedimento conhecido como voto de desconfiança (vote of no confidence) é uma das bases da alternância de poder no país onde se criou a ideia (e a prática) de governo representativo subordinado a um Estado de Direito. No sistema parlamentarista o governo é formado pelo partido ou pela coalizão que conquista a maioria e não há como o governo manter-se sem o apoio da maioria do parlamento. Assim, quando o voto de confiança é negado, cai o Primeiro Ministro e seu gabinete.
A necessidade do executivo em contar com a maioria do apoio do legislativo para sobreviver no poder foi uma das inovações institucionais inglesas que mais impressionaram a Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu. Quando seu clássico “O Espírito das Leis” foi publicado (1748), a Inglaterra representava a exceção à regra absolutista que vigia na Europa.
A experiência inglesa demonstrou a Montesquieu as vantagens de freios institucionais à atuação de cada poder:
"A experiência constante demonstra que todo homem investido de poder está apto a dele abusar, e a levar sua autoridade quão longe lhe seja permitido… Para evitar tais abusos, é necessário pela própria natureza das coisas que o poder seja um freio ao próprio poder.”
Tais freios só poderiam funcionar adequadamente na vigência de poderes políticos separados, como era o caso na Inglaterra:
“quando o poder legislativo e o executivo estão unidos na mesma pessoa, ou no mesmo corpo de magistrados, não pode haver liberdade.”
A separação dos poderes é tida hoje como um dos primados da moderna engenharia institucional. É simplesmente impensável a existência de um regime político minimamente inclusivo e protetor de liberdades individuais sem que haja um nível razoável de separação de poderes.
Alguns países mais jovens, que, como o Brasil e o Paraguai, não tiveram a “sorte” de terem suas instituições políticas baseadas em tradições historicamente exitosas e, por conta disso, buscaram a institucionalização de princípios da democracia representativa por meio de constituições escritas (algo que a Inglaterra até hoje parece prescindir). Nos regimes presidencialistas latino-americanos, onde o poder executivo é muito mais poderoso do que em monarquias parlamentaristas tradicionais, buscou-se limitar a histórica prevalência dos super-presidentes sobre legislativos fracos e dependentes. A possibilidade de destituir um presidente devido atos atos contrários à lei ou à conveniência nacional de acordo com o julgamento político do parlamento é um destes mecanismos.
Aí é que entra a última polêmica na instável história política latino-americana: o suposto golpe contra o Presidente Fernando Lugo. O nada insuspeito rol de defensores de Lugo já deveria ser o suficiente para levantar sérias dúvidas a respeito da hipótese de golpe (destaque para a infalível aplicação da “Lei de Chávez”– segundo a qual bastaria analisar onde se situa o líder venezuelano em meio a uma controvérsia internacional para saber de que lado não se posicionar). Mas o fato é que a destituição de Lugo, ainda que desagrade a alguns, deu-se em acordo com os ritos previstos pela Constituição Paraguaia.
O artigo 225 da Constituição Paraguaia estabelece que o Presidente pode ser submetido a juízo político por delitos cometidos no exercício de seu cargo. Lugo é acusado de negligência e má-gestão de conflitos envolvendo a questão agrária e por ligações nebulosos com grupos terroristas, como o Ejercito del Pueblo Paraguayo (EPP).
Além disso, diferentemente do caso Britânico referido anteriormente (instado a convocar novas eleições após uma derrota por um voto), Lugo caiu devido a uma derrota acachapante. O processo de impeachment (juicio político, no texto do art. 225 da Constituição Paraguaia) foi instaurado pelo voto de 76 dos 77 deputados presentes. Dos 45 membros do senado paraguaio, apenas 4 votaram contra o juízo político que destituiu o Presidente Fernando Lugo.
O processo pode não ter se dado da maneira mais perfeita e clara aos olhos de quem vê de fora a crise institucional paraguaia. Deu-se, no entanto, do modo adequado ao desenrolar dos fatos, e sem que fosse cerceado qualquer direito do acusado (que contou com advogados e espaço no plenário do Senado para fazer sua defesa). De qualquer forma, dada a ampla margem de votos em favor da destituição, é de se questionar que diferença fariam em favor de Lugo mais 24 ou 48 horas para elaborar sua defesa. Por outro lado, caso o julgamento tardasse em sua conclusão as consequências poderiam ser trágicas. Segundo o advogado paraguaio Hugo Nelson Veras, “a principal fundamentação para a celeridade do juízo foi precisamente a ameaça dos apoiadores de Lugo de ocuparem a capital, estando a caminho cerca de 50 mil camponeses. O temor de uma verdadeira quebra institucional ou um massacre em grande escala serviram de fundamento, ainda mais que a própria norma, que é negligente neste sentido [de estabelecer claramente prazos para julgamentos políticos]”
Se Lugo sofreu golpe, como têm afirmado alguns defensores casuístas de uma suposta legalidade (alguns deles, infelizmente, chefes de Estado de nações sul-americanos), precisamos rever também um capítulo importante da história brasileira. Afinal, o processo de impeachment que derrubou o presidente Fernando Collor de Mello e uniu a opinião pública brasileira ocorreu sem que houvesse qualquer sentença judicial transitada em julgado. Não só isso: Collor e seus comparsas foram inocentados dois anos depois quando foi julgada no STF a Ação Penal 307. Mas o julgamento político do processo de impeachment se manteve, condenando Collor à perda de direitos políticos por 8 anos. E somente alguém que não entenda conceitos fundamentais como Estado de Direito, legalidade e Constituição, e tenha uma visão muito deturpada sobre a separação de poderes e a importância prática dos freios à atuação de cada um deles, poderia sugerir que Collor tenha sofrido um golpe.
Justamente por tratarem-se de juízos políticos, e não jurídicos, não faz sentido falar-se em respeito a todas as garantias processuais regulares em casos similares. No caso brasileiro, são os artigos 85 e 86 da Constituição que regulam o impeachment presidencial, estabelecendo ritos distintos para os crimes de responsabilidade (juízo político, pelo Congresso) e os crimes comuns (juízo penal, pelo STF).
O oxímoro do “golpe branco” ou “golpe institucional” serve apenas aos legalistas de ocasião, que não perdem uma oportunidade de defender como legítimas medidas que levam à destruição da democracia por meios (supostamente) democráticos perpetrados por governos como o de Chávez (Venezuela) e Correa (Equador) – ao mesmo tempo em que bradam e denunciam como golpe uma legítima manifestação de um poder político (legislativo) em resposta às ações atrapalhadas de um chefe do executivo que, por arrogância, ingenuidade ou determinação autoritária, foi pouco hábil ao lidar com um parlamento hostil.
Rupturas institucionais trazem seus custos. O impeachment de Collor em 1992 foi um marco e uma encruzilhada na história política brasileira. O ex-governador de Alagoas havia chegado ao poder com um discurso notadamente salvacionista, ancorado na imagem de jovem, arrojado e “caçador de marajás”. Acabou durando pouco mais de 2 anos e meio no cargo.
A destituição do primeiro presidente eleito pelo voto direto desde Jânio Quadros (eleito em 1960) em meio a um ambiente de instabilidade econômica (confisco de poupanças, inflação acumulada de mais de 1.000% ao ano) foi um grande baque para as instituições brasileiras. A crise institucional causou uma inédita queda nos índices de preferência pela democracia em relação à alternativa autoritária no ano de 1993 (Moisés, 2010). Mas a adesão da sociedade civil, da mídia, e também da classe política aos valores democráticos prevaleceu (calcada em boa parte na estabilidade econômica proporcionada pelo Plano Real).
Em síntese: não houve golpe no Paraguai. O quanto antes a imprensa internacional tomar ciência dos fatos e os democratas de ocasião da UNASUL voltarem suas atenções para suas próprias mazelas institucionais, melhor. A crise institucional pela qual passa o Paraguai representa um risco, mas pode servir como uma oportunidade para o fortalecimento da democracia, da separação dos poderes e do Estado de Direito, afastando-o do populismo bolivariano promovido (ainda que em versão mais light) por Fernando Lugo.
Sobre o Autor
Fábio Ostermann é bacharel em Direito (UFRGS), graduado em Liderança para a Competitivdade Global (Georgetown University) e mestrando em Ciência Política (PUCRS). É consultor, associado do IEE (Instituto de Estudos Empresariais) e gerente de relações institucionais do Ordem Livre.

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