Arquivos sobre mortes na ditadura somem em Petrópolis
Boletins de delegacia e IML poderiam elucidar crimes em centro de tortura
Chico Otavio/Juliana Dal PivaMarcelo Remígio - O Globo
Imóvel em Petrópolis foi usada como aparelho da repressão militar na ditadura e ficou conhecido como “Casa da Morte” O Globo / Custódio Coimbra
RIO - Boletins de ocorrência envolvendo mortes violentas entre 1973 e 1978, nos quais poderiam constar informações sobre militantes políticos que passaram pela Casa da Morte de Petrópolis — aparelho clandestino montado pelo Centro de Informações do Exército (CIE) — desapareceram dos arquivos da extinta 67ª DP (Centro de Petrópolis). Os livros do Instituto Médico-Legal (IML) do município, com registros de óbitos e enterros nos cemitérios do Centro e do distrito de Itaipava entre 1970 e 1974, tiveram o mesmo destino.
A falta de documentação nos arquivos da 67ª DP foi identificada por uma equipe de pesquisadores da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que promoveu uma inspeção recente no material. O grupo também constatou escassez de documentos sobre mortes violentas referentes ao período de 1970 a 1972, e aos anos de 1979 e 1980.
O pouco que sobrou do acervo da 67ª DP foi entregue ao Museu Imperial e está reunido em 80 caixas de documentos, parte proveniente do Serviço Nacional de Informações (SNI) e com dados sobre militantes políticos. Há ainda boletins de fichamentos de suspeitos de crimes contra a segurança nacional e um livro com relação de nomes de comunistas. Segundo pesquisadores da comissão, há vestígios de queima de documentos.
Polícia saberia de aparelho clandestino
O relatório produzido pelos pesquisadores da Secretaria Nacional de Direitos Humanos ainda aponta uma possível ligação entre ramificações da estrutura policial da época com aparelhos de repressão existentes em Petrópolis e em outros municípios fluminenses. Um organograma montado pela equipe mostra uma suposta rede de comunicação entre a 11ª Região Policial (com sede na época em Petrópolis), os departamentos autônomos de Ordem Política e Social (Dops) do Estado do Rio e da Guanabara, as delegacias de Petrópolis, Teresópolis e Niterói, e unidades das Forças Armadas.
De acordo com o levantamento dos pesquisadores, há, entre a documentação da 67ª DP, uma solicitação de certidão de ocorrência de laudos de necropsia e fotografia do local da perícia por parte do Quartel General da 3ª Zona Aérea. O pedido é feito por meio de um bilhete com o nome do major Sylvio Monteiro, que era lotado nesse quartel. Há relatos de torturas de presos políticos no QG da 3 Zona Aérea, junto ao Aeroporto Santos Dumont, segundo os pesquisadores. Também estão no acervo referências ao antigo 1º Batalhão de Caçadores, atual 32º Batalhão de Infantaria Motorizada (Batalhão D. Pedro II), em Petrópolis.
A suposta ligação entre a estrutura policial e o aparelho de repressão montado em Petrópolis vai ao encontro do depoimento da ex-militante da VAR-Palmares e VPR Inês Etienne Romeu — que teria sido a única sobrevivente da Casa da Morte —, encaminhado à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 1979, em que ela cita um comissário de polícia de Petrópolis que atendia por Laurindo. Etienne revelou que, do aparelho da repressão, telefonavam para uma delegacia perguntando por Luís ou Luizinho, posteriormente identificado como o comissário da Polícia Federal Luís Cláudio Azeredo Viana, citado como um dos agentes da repressão que atuaram na Serra.
Vítimas enterradas com nomes falsos
Já o sumiço de livros do IML com registros de óbitos e enterros em dois cemitérios de Petrópolis foi apontado pelo Ministério Público Federal (MPF), que há dois anos abriu inquérito para investigar sepultamentos ocorridos no município entre 1970 e 1975. Com base em denúncias feitas pelo Grupo Tortura Nunca Mais, o MPF apura se pelo menos 22 mortos em situação de violência na cidade estariam ligados à Casa da Morte, e se eles constariam da lista de desaparecidos políticos.
Entre os casos violentos denunciados pelo Tortura Nunca Mais estariam mortes por hemorragia interna, omissão de socorro e traumatismos, causas características de torturas praticadas em aparelhos de repressão. As informações sobre os corpos e a causa das mortes são confrontadas pelo MPF com relatos sobre militantes políticos desaparecidos e supostamente torturados após passagem pela Casa da Morte.
As vítimas da Casa da Morte teriam sido enterradas como indigentes ou identificadas com nomes falsos nos cemitérios do Centro e de Itaipava. Há ainda a hipótese de sepultamentos em cemitérios da zona rural de Petrópolis nos bairros de Rio Bonito, Brejal e Vale das Videiras.
Para localizar o paradeiro dos livros de sepultamentos do IML do município, a Procuradoria da República abriu procedimento investigatório e solicitou informações ao IML da capital e aos arquivos Nacional e Público do Estado do Rio.
A prefeitura de Petrópolis disponibilizou uma relação dos nomes de pessoas enterradas na década de 1970 no primeiro e segundo distritos. O material está microfilmado e guardado no acervo do Arquivo Público Municipal. No entanto, faltam dados sobre o motivo das mortes. A lista, por estar em ordem alfabética, dificulta a identificação do ano do enterro. Livros do município com registros dos sepultamentos, que funcionariam como cópias do arquivo do IML, foram destruídos. Somente foram preservadas as listagens de enterros ocorridos até 1969.
Desde domingo, O GLOBO tem revelado como funcionava o aparelho clandestino da repressão montado pelo CIE em Petrópolis, a partir de relatos do tenente-coronel reformado do Exército Paulo Malhães, de 74 anos, o “doutor Pablo”. Malhães também relatou que cinco filhotes de jacaré e uma jiboia, capturados no Rio Araguaia, chegaram a ser usados para torturar presos políticos no Pelotão de Investigações Criminais, na Tijuca.
Procurado, o Comando do Exército disse apenas que as declarações de Malhães são de responsabilidade dele.
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