sábado, 27 de setembro de 2014

Damasco quer tirar vantagem do combate ao Estado Islâmico
Benjamin Barthe - Le Monde
Senior Airman Matues Bruch/ US Air Force/ DVIDS/ AFP
Foto divulgada nesta sexta-feira (26) pelo Comando Central da Força Aérea dos Estados Unidos mostra um avião americano voando sobre o norte do Iraque no início da manhã da terça-feira (23), após realizar ataques aéreos na Síria Foto divulgada nesta sexta-feira (26) pelo Comando Central da Força Aérea dos Estados Unidos mostra um avião americano voando sobre o norte do Iraque no início da manhã da terça-feira (23), após realizar ataques aéreos na Síria
A mudança de cenário é evidente. Há pouco mais de um ano, em represália ao bombardeio de gás sarin nos subúrbios de Damasco, os Estados Unidos e a França se preparavam para atacar o regime sírio. Bashar al-Assad, acuado, só havia conseguido se restabelecer graças a uma iniciativa diplomática de última hora de seu aliado russo, que envolvia o desmantelamento de seu arsenal químico. Hoje, esgotados por três anos e meio de guerra civil, o ditador sírio e seus opositores estão assistindo impotentes a uma intervenção de americanos e franceses – com a adesão de seus aliados árabes – desta vez bem real, dirigida contra seu inimigo comum, o EI (Estado Islâmico).
Excepcionalmente os representantes dos dois lados aplaudiram em conjunto, na terça-feira (23), o início dos ataques, com todos se dizendo convictos de que um enfraquecimento dos jihadistas poderia ser vantajoso para si. Mas essa aprovação de fachada esconde muitas segundas intenções. Começou a corrida para tirar vantagem da nova configuração gerada pela ofensiva anti-EI.

"Uma coisa boa para a humanidade"

A reação de Bashar al-Assad veio através de um comunicado da agência oficial SANA. Sem mencionar especificamente os bombardeios, o presidente sírio declarou que ele apoiava "qualquer esforço internacional antiterrorista". O regime de Damasco, que por muito tempo foi complacente em relação aos jihadistas, cujo extremismo prejudicava a imagem da revolução, decidiu combatê-los a partir do mês de agosto, quando eles se tornaram os inimigos prioritários da comunidade internacional. A guerra contra o EI dá um novo respiro à sua propaganda, que sempre se esforçou para pintar os insurgentes como islamitas sanguinários.
"Com um único míssil Tomahawk, o exército americano reduziu a pó o quartel-general do Daech [acrônimo árabe do Estado Islâmico] em Rakka, que nossos aviões vinham tentando destruir há dias", comemora o editor de um jornal próximo do governo. "É uma coisa boa para a humanidade e também um bom negócio para o Estado sírio."
Preocupado em aparecer como um parceiro da coalizão formada sob a autoridade de Washington para dessa forma romper o ostracismo que ele sofre no Ocidente, o presidente sírio confiou a seu Ministério das Relações Exteriores o cuidado de afirmar que a Síria havia sido avisada sobre a iminência dos ataques. Damasco garante que seu representante nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, havia sido informado sobre os detalhes e que mensagens dos Estados Unidos lhe haviam sido transmitidas através do ministro iraquiano das Relações Exteriores.

Desmentido de Washington

"No nível político, não há contato e o governo sírio não tem interesse em fazer as pazes com Washington", afirma o jornalista sírio. "Mas no nível das agências de inteligência, existe uma verdadeira parceria. Elas não se falam, mas seus radares se enxergam". O argumento também pretende atenuar,  junto à base do regime, a afronta que é a violação do espaço aéreo sírio pela aviação "imperialista" americana. E justifica que, ao contrário das ameaças proferidas há algumas semanas, a defesa antiaérea síria não entrou em ação.
Mas todos esses esforços oratórios foram ignorados por Washington. "Não pedimos  pela permissão do regime. Não coordenamos nossas ações com o governo sírio. Não demos aviso prévio aos sírios, nem indicação sobre o momento dos ataques nem sobre os alvos específicos", disse Jennifer Psaki, a porta-voz do departamento do Estado. Se Jaafari foi contactado, explicou a diplomata americana, foi para dissuadir a Síria de "atacar um avião americano". "Ninguém nos Estados Unidos tem intenção de conversar com esse regime", alega um especialista na questão síria, em Washington. "Alguns serviços secretos ocidentais procuraram seus homólogos sírios nos últimos meses, mas eles viram que isso não servia para nada. Não podemos salvar esse regime, ele está se autodestruindo independentemente do que se faça. Como ele poderia trazer uma solução para a radicalização dos sunitas?"

Jogo de espelhos paradoxal

Entre a oposição, o esclarecimento do departamento do Estado foi recebido com alívio. Em um paradoxal jogo de espelhos com o regime, a CNS (Coalizão Nacional Síria), vitrine política da rebelião, comemorou que a comunidade internacional tenha "se juntado ao combate contra o Daech". "É um grande avanço", afirma Monzer Akbik, um oficial da CNS. "O regime por muito tempo aproveitou a presença dos jihadistas para sujar nossa causa."
No entanto, na prática o ceticismo predomina. Um dos grupos armados mais moderados, o movimento Hazm, a quem os Estados Unidos entregaram mísseis antitanque, afirmou que os ataques "prejudicariam a revolução síria". Em seu perfil do Twitter, esse grupo, que é afiliado ao ESL (Exército Sírio Livre), alega que "o único a ganhar com essas ingerências estrangeiras na Síria é o regime, particularmente porque falta uma verdadeira estratégia para derrubá-lo".
Os combatentes do ESL, exauridos por meses de combates em duas frentes, estão preocupados com o impacto que as falhas que a aviação americana inevitavelmente cometerá terão sobre a opinião pública síria. Cerca de dez civis já teriam morrido nos bombardeios de terça-feira, bem como 70 a 120 jihadistas, segundo fontes. Os insurgentes temem também que a ampliação do leque dos alvos de formações aparentadas do EI contribua para jogar inúmeras brigadas nos braços deste.
Na terça-feira (23), os Estados Unidos bombardearam posições de Khorasan, um grupo membro da Frente Al-Nusra, o braço sírio da Al-Qaeda. "Existe uma verdadeira paranoia entre os insurgentes, que temem se encontrar na mira dos Estados Unidos", conta um diplomata ocidental que tem contato com os meios da oposição.
Os dois lados estão agora afiando suas armas pensando na próxima rodada, que é a recuperação dos territórios controlados pelo EI. Prevendo ataques americanos, os homens do EI já haviam dispersado suas forças e evacuado suas bases mais visíveis. Nos próximos dias eles poderão ser obrigados a entrar na clandestinidade e, portanto, reduzir sua influência local. Será que o ESL conseguirá aproveitar essa oportunidade para avançar sua estratégia? A sobrevivência da revolução síria depende disso.

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