Novo conceito de cultura
Affonso Romano de Sant'Anna - O Estado de S.Paulo
Os Estados Unidos não têm ministério da
cultura. E a cultura americana está entre as maiores exportações daquele
país. Lá a cultura está vinculada ao comércio, aos produtos. Da
Coca-Cola ao pintor Rauschenberg, seus símbolos estão em todo o mundo.
Iludem-se aqueles que pensam que, numa sociedade mercantilista, livros,
filmes, discos, etc., têm circulação graças (apenas) ao seu valor
artístico. Vejam os livros How America Stole the Idea of Modernism
(Serge Guilbaut), explicando como os Estados Unidos tomaram o lugar da
França culturalmente depois da 2.ª Guerra, e Quem Pagou a Conta?
(Frances Saunders), no qual se analisa a intervenção do Departamento de
Estado e da CIA na Bienal de Veneza e a criação de uma "Otan cultural"
durante a guerra fria. Assim acabam com nossa ingenuidade neste assunto.
Portanto, a menos que se tenha uma ideia de cultura que extrapole o
nicho do Ministério da Cultura, não se entenderá histórica,
antropológica e sociologicamente o que a cultura pode significar num
país. No Brasil, estima-se que pelo menos 10 milhões de pessoas
trabalhem na área da cultura. São formadores de opinião. É um
contingente capaz de mudar qualquer eleição. Isso equivale à população
da Suécia. Perto desse número a quantidade de operários em nossa
indústria automobilística é ridícula. E, no entanto, não só aqueles 10
milhões produzem cultura. Os 202 milhões de brasileiros são produtores
(inconscientes) de cultura.
É disso que se trata quando se pensa num plano cultural para o País e
quando se fala de "um novo conceito de cultura". Consumidores e
produtores se confundem. E mais: "cultura" não é só o que sabidamente se
chama de cultura. Temos de redefinir essa palavra. Recentemente,
descobriu-se que a "periferia" tem uma cultura própria. Descobriu-se que
"centro" e "periferia" têm de ser redefinidos. Cultura é tanto a "dança
do passinho" quanto um concerto sinfônico. E mais: o "tráfico" e as
"milícias" são uma maneira de nossa cultura se manifestar. Em outros
termos: nossos hábitos alimentares são cultura - e temos de estudar
isso. Apoderar-se de papel higiênico e das tramelas nos banheiros dos
aeroportos, assaltar e depredar as residências do programa Minha Casa,
Minha Vida são também gestos culturais. Deixar as casas e os
apartamentos no reboco e cuidar apenas da parte interna da residência,
isso é algo que encontramos tanto aqui quanto no Egito, e é igualmente
um sintoma cultural. Ultrapassar pela pista de acostamento é um gesto
cultural tanto quando clonar placas de automóveis.
Conhece-se um país pelo lixo que produz. Lixo é cultura. Ler o lixo,
interpretar o lixo, compreender o desperdício e os que vivem nos lixões.
Por que o dinheiro do governo não chega ao ponto extremo destinado?
Entender isso é entender nossa cultura. Por que somos incapazes de
follow up, de continuidade? Por que não completamos as jogadas? Por que
destruímos a arquitetura colonial e enfeamos nossas cidades com
monstrengos arquitetônicos? Igualmente, a noção de que aquilo que é
"público" é algo que não tem dono e pode ser surrupiado é um danoso dado
cultural.
Setorialmente, será preciso integrar mais o Ministério da Educação (MEC)
e o Ministério da Cultura (MinC). Se fosse uma secretaria do MEC, o
MinC teria hoje uns R$ 10 bilhões de orçamento. No entanto, tem só cerca
de R$ 2 bilhões, aproximadamente 0,128% do Orçamento da União. E há dez
anos arrasta-se no Congresso Nacional um projeto medíocre (e
revolucionário) que prevê 2% para o MinC, mas em quatro anos.
A solução, então, é acabar com o MinC? Nunca. A melhor solução é, para
começar, quadruplicar o orçamento do MinC - 90% do problemas, do
patrimônio histórico à política do livro, seriam resolvidos com essa
medida. A Lei Rouanet tem de ser melhorada e os empresários têm de botar
dinheiro - o dinheiro deles, e não o do governo - na cultura. Como
disse alguém, se você acha que a educação é cara, experimente a
ignorância.
Além de uma associação permanente com o MEC, é urgente entender que a
cultura atravessa todos os ministérios e as ações culturais devem ser
desencadeadas tanto nos quartéis, com o apoio da Forças Armadas, quanto
nas cadeias, com participação do Ministério da Justiça. Igualmente os
"agentes de saúde" do Ministério da Saúde seriam convertidos em "agentes
da cultura" - assim saúde e cultura se dariam as mãos e o Plano
Nacional do Livro e da Leitura seria mais impactante.
O Brasil, além de descobrir um novo conceito de cultura, precisa
descobrir o mundo. Só o provinciano olha o mundo a partir de seu umbigo.
É sintomático que digamos "lá fora" quando nos referimos ao exterior.
Estamos "por fora". Por isso o livreiro de La Hune, em Paris, quando lhe
cobrei a ausência de autores brasileiros nas estantes, me disse,
seguro: "Vocês não têm autores suficientes para uma estante". Enfim,
qual o nosso projeto internacional?
Nessa linha, nunca demos a devida importância à Comunidade dos Povos de
Língua Portuguesa (CPLP), apesar de sermos a quinta língua mais falada
no mundo. Por que não temos uma televisão multilíngue que sirva como
exportação de nossa cultura? Por que deixamos desamparados os
"leitorados" no exterior? Por que não modificamos a lei de depósito
legal e não mandamos para os carentes países africanos da CPLP cópia dos
50 mil livros que publicamos anualmente.
Termino com uma parábola verdadeira: o marechal Rondon saiu colocando
postes de telégrafo com fio pelo País. Quando fincou o último poste na
fronteira da Bolívia, recebeu a notícia de que Marconi havia acabado de
descobrir o telégrafo sem fio.
O que isso tem que ver com os iPhones e iPads - verdadeiras bibliotecas
virtuais que poderiam suprir o que não fizemos em 500 anos?
Há países que têm petróleo e são pobres. Há países que não têm petróleo e
são ricos. A cultura é o nosso pré-sal. E ela não está a milhares de
metros abaixo do solo, basta abrir os olhos, ver. E fazer.
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