Ações de neonazistas na Alemanha destruíram a vida não só das vítimas, mas também de seus parentes
Der Spiegel
Andrea Brandt, Jürgen Dahlkamp, Maximilian Popp e Ufuk Ucta
A maior parte das vítimas da célula terrorista de Zwickau eram pequenos comerciantes de origem turca. Por anos, suas famílias tiveram que combater as suspeitas que as vítimas de assassinato estavam envolvidas no crime organizado, simplesmente porque eram turcas. Os rumores e acusações destruíram as vidas de muitos parentes, alguns dos quais planejam deixar a Alemanha.
Os parentes disseram a Demiya Simsek que seu pai estava doente, que ele tinha tido uma briga com os clientes e agora estava hospitalizado. Ela não pôde acreditar neles. Seu pai era um bom homem e nunca discutia com ninguém. Além disso, disse ela, o pai também era um homem forte e nunca ficava doente.
Simsek lembra-se do dia em que, aos 14 anos, caminhou pelos corredores de um hospital em Nuremberg em busca do pai, que estava em uma unidade de tratamento intensivo. Ele estava inconsciente, após ter levado um tiro na cabeça de dois estranhos, poucas horas antes. Um policial segurou Simsek, dizendo a ela que não poderia ver o pai naquele momento e que ela teria que responder algumas perguntas primeiro. "Seu pai estava sendo ameaçado?", perguntou. "Ele possuía armas?" Simsek abanou a cabeça. Ele tinha uma faca para cortar as flores, e nunca teve inimigos, disse ela.
Enquanto isso, a mãe de Semiya, Adile Simsek, estava sendo interrogada por várias horas na delegacia de polícia. Os policiais queriam saber se ela tivera uma briga com o marido, se ela sabia alguma coisa sobre uma possível amante. A mulher começou a chorar. Seu marido estava morrendo, mas os policiais se recusavam a deixá-la vê-lo porque suspeitavam dela. Eles alegaram que ela e um tio tinham atirado contra o marido por ganância. Imagina, logo ela, que tinha passado a vida toda ao lado deste homem, que ainda amava tanto quanto quando se conheceram em uma aldeia no Sul da Turquia.
"Todos vocês nos condenaram"
Semiya Simsek, que hoje é uma jovem mulher, está sentada na cozinha de seu apartamento em Friedberg, uma cidade ao Norte de Frankfurt. Onze anos se passaram desde que seu pai foi executado. Também levaram 11 anos até que a polícia acidentalmente encontrasse os verdadeiros assassinos, cinco anos atrás. A esposa afinal não o havia matado, nem tampouco um traficante de drogas turco, como a polícia especulara por algum tempo. Enver Simsek, florista pai de dois filhos, foi vítima de uma gangue de neonazistas no dia 9 de setembro de 2000. Ele tinha 38 anos no momento de sua morte.
Por anos, os terroristas de extrema direita Uwe Bohnhardt e Uwe Mundlos executaram pessoas em torno da Alemanha e conseguiram escapar das autoridades. Enver Simsek foi sua primeira vítima. Nove outros se seguiram antes dos dois neonazistas tirarem suas próprias vidas, no dia 4 de novembro de 2011. Desde então, a Alemanha ouviu falar muito sobre os assassinos, mas sabe muito pouco sobre suas vítimas.
As mãos de Semiya Simsek estão tremendo. “Todos vocês –a polícia, a mídia, a sociedade- nos declararam culpados”, diz ela. A polícia tratou a mãe de Semiya como suspeita por um ano e meio. Eles questionaram os vizinhos e parentes. Os parentes da vítima, suspeitando da nora, cortaram laços com a família.
Dois outros turcos foram assassinados em junho de 2001, um em Nuremberg e outro em Hamburgo. Eles foram assassinados com uma pistola Ceska, do mesmo tipo usado no primeiro ataque, o que levou os investigadores a concluírem que os assassinatos estavam conectados. Eles especularam que outros membros da comunidade imigrante turca pudessem ter cometido os homicídios.
A polícia buscou armas no apartamento de Simsek. Enver Simsek comprava flores na Holanda todas as semanas. Suspeitando que isso fosse uma forma de acobertar o contrabando de drogas, a polícia trouxe cães farejadores. Os vizinhos começaram a fofocar sobre a família. Na escola, Semiya foi acusada de ser filha de traficante. “A polícia não tem a menor ideia do que fez com a minha família”, diz ela hoje.
Havia poucas razões para suspeitar de qualquer conexão entre algumas das vítimas e o submundo turco. Teriam os investigadores sido influenciados pelos preconceitos em relação aos imigrantes turcos? As organizações da mídia, inclusive o “Spiegel”, suspeitaram que criminosos turcos estivessem por trás das mortes.
Se os alemães estiveram com a impressão que os turcos são um povo tão bárbaro que eles simplesmente sairiam se matando pelo mundo e que até matariam um vendedor de kebabs , esse preconceito é muito mais perigoso do que qualquer grupo terrorista, disse o ministro de relações exteriores turco, Ahmet Davutoglu, em uma entrevista ao “Spiegel”.
Mancha preta no chão
Ali Tasköprü estava na Turquia, no leito de morte da mãe, quando chegou a notícia muito esperada: foram os neonazistas que mataram seu filho Süleyman em uma mercearia de Hamburgo no dia 27 de junho de 2001. O crime acontecera 10 anos antes, mas só hoje ele ficou sabendo a verdade. Contudo, quando ouviu a notícia, as lembranças começaram a voltar: de como a família tinha tentado se defender contra os boatos e como tinha vivido sob uma nuvem escura por tanto tempo. Agora, a nuvem estava finalmente se dissipando. Foram os neonazistas. Quando Tasköprü contou à mãe a notícia, ela sorriu e morreu duas horas depois.
Os três tiros que mataram Süleyman destruíram a vida de Ali, permeando-a de desconfiança, medo e desapontamento. No dia do assassinato, um policial de patrulha entrou na loja. Ele bebeu uma xícara de café com Süleyman e depois disse a ele que ele tinha que mudar o carro de lugar, que estava estacionado em zona proibida. O pai, que tinha que fazer algumas coisas na rua, saiu de carro por 20 ou 30 minutos.
Havia uma mancha preta no chão quando ele voltou. Talvez uma jarra tivesse caído no chão, pensou. Aí ele viu Süleyman e entendeu que a mancha preta era uma poça de sangue. Tasköprü pressionou seu filho contra o peito. Süleyman ainda estava vivo e tentou dizer algo ao pai, mas ele não podia mais falar. Ele morreu pouco tempo depois, aos 31 anos.
Tasköprü estava em estado de choque e ainda assim foi levado para a delegacia de polícia e questionado por horas. Mais tarde, os policiais quiseram saber se o filho estava envolvido em atividades criminosas. Tasköprü se sentiu duplamente vitimizado. Primeiro ele tinha perdido o filho e agora a honra da família estava sendo enlameada.
Outros turcos, inclusive bons amigos da família, ficavam fazendo perguntas. Talvez Süleyman estivesse envolvido em algo, afinal ele estava em todos os jornais. Eventualmente, Tasköprü se cansou e rompeu as amizades. “Essas pessoas nunca acreditaram em mim”, diz ele. “Por esta razão, eu nunca vou me sentar à mesa com elas novamente e nunca falarei com elas de novo”.
As revelações sobre os assassinatos neonazistas criaram novas suspeitas. “Há tantas perguntas sem resposta”, diz Semiya Simsek, a filha da primeira vítima. Quando ela ligou para o Escritório Federal de Polícia criminal, eles responderam que ela lesse os jornais.
“Nos sentimos como criminosos”
O Escritório Federal de Proteção Civil e Assistência ao Desastre ao menos prometeu às famílias aconselhamento psicológico. Simsek, que é professora em Frankfurt, planeja se mudar para a Turquia no verão para ficar com a mãe. Ela disse que não se sente mais confortável na Alemanha. Apesar dos conhecidos terem se desculpado por suspeitar da família, ela diz que há poucas pessoas com quem ela pode compartilhar seus sentimentos.
Ela muitas vezes fala ao telefone com Gamze Kubasik, uma estudante de farmácia em Dortmund, na Alemanha Ocidental. As duas mulheres mal se conhecem, mas há uma coisa que elas têm em comum: o pai de Kubasik, Mehmet, também foi morto pelos neonazistas de Zwickau. E ela também teve que conviver com acusações falsas por anos. Kubasik foi questionada por oito ou nove horas no dia seguinte ao assassinato. Ela e seus irmãos tiveram que tirar as digitais e amostras de saliva. “Nos sentimos como criminosos”, diz ela.
A mãe, Elif, que mora no mesmo prédio que a filha, ainda não superou a tragédia que assolou a família. Desde que as imagens dos verdadeiros assassinos começaram aparecer na televisão, ela só consegue dormir com a ajuda de remédios. Ela tenta pensar em outras coisas limpando o apartamento –constantemente. Ela esfrega o chão e lustra as luminárias. Mas ela não consegue apagar seus pensamentos negros como se fossem pó.
Ela acredita que seu marido ainda estaria vivo s e a polícia tivesse investigado os grupos de extrema direita com mais cuidado. “A Alemanha matou meu marido”, diz ela.
Tradução: Deborah Weinberg
Nenhum comentário:
Postar um comentário