quarta-feira, 30 de novembro de 2011

PRIMAVERA ÁRABE OU O INÍCIO DO INVERNO PARA A LIBERDADE DAS MULHERES?

Mulheres árabes temem retrocesso dos poucos direitos que tinham na ditadura
Mathieu Von Rohr - Der Spiegel
A primavera árabe parecia anunciar uma nova era de emancipação para as mulheres no mundo árabe. Mas os islâmicos estão em ascensão na Tunísia e no Egito e há relatos preocupantes de ataques sexuais nas manifestações na praça Tahrir, no Cairo. Muitas mulheres na região temem um retrocesso dos poucos direitos que tinham na ditadura.
Ela parece séria no retrato que postou na Internet. Ela também está nua: uma jovem egípcia mostrando seu corpo ao seu país. Aliaa Magda Elmahdy, estudante de artes de 20 anos da Universidade Americana no Cairo, queria protestar contra a opressão das mulheres e o conservadorismo em seu país. Para alcançar isso, fez algo quase inédito.
“Tire a roupa, fique diante de um espelho e queime seu corpo que você tanto despreza e livre-se para sempre de seus complexos sexuais”, escreveu em seu blog. Em um país onde os casais não podem se beijar em público, seu ato foi um choque.
Desde que causou escândalo há duas semanas, a egípcia teve que se esconder do ódio dos conservadores religiosos, e até os egípcios seculares se distanciaram dela. Eles não querem estar associados com seu ato e têm medo de ser caracterizados como mundanos, libertinos e imorais.
Há muito em jogo para os jovens no Egito, que estão novamente protestando na praça Tahrir, desta vez contra o controle militar do país, como se a revolução de janeiro e fevereiro nunca tivesse acontecido. Não é mais apenas uma questão se o país vai alcançar a transição para a democracia, mas também que tipo de sociedade o Egito quer e qual será o status das mulheres nesta sociedade.
Houve inúmeros relatos na última semana de ataques sexuais contra as mulheres na praça Tahrir, ataques envolvendo tanto as forças de segurança quanto manifestantes. A jornalista egípcio-americana Mona Eltahawy, que tomou parte nos protestos na praça, ficou horas presa, vendada. Policiais a agarraram e quebraram seu braço e sua mão. “Eles me agarraram e tocaram nos meus seios, apertaram minha região genital e perdi a conta de quantas mãos tentaram entrar nas minhas calças”, escreveu no Twitter. “Eles são cães, e seus chefes são cães”.
Confusão sobre o papel feminino
O Ocidente está confuso. Em janeiro e fevereiro, muitos ficaram entusiasmados com os levantes na Tunísia e no Egito, particularmente pelo papel das mulheres. Elas protestaram ao lado dos homens na avenida Habib Bourguiba, na Tunísia, e na praça Tahrir, no Cairo. Seu envolvimento transmitiu uma nova imagem do jovem árabe e das mulheres árabes. Muitos fotógrafos ocidentais no Cairo e em Túnis enviaram imagens aos seus escritórios de mulheres atraentes tomando parte na revolução.
Os ocidentais se reconheceram nos rostos das jovens manifestantes e ficaram contentes que as pessoas nesses países não eram tão diferentes quanto muitos acreditavam. A certeza que os árabes eram incompatíveis com a democracia foi destruída, assim como o clichê da mulher árabe como um ser oprimido e passivo.
Nenhum dos levantes nos países árabes teria sido possível sem a participação das mulheres. Elas estavam entre os primeiros a protestar na praça Pearl no Bahrein, elas organizaram protestos na Síria, fizeram parte do levante na Líbia desde o início e uma ativista iemenita foi uma das vencedoras do Prêmio Nobel da Paz deste ano.
Medo de perder direitos
Tudo isso explica porque tantas pessoas ficaram desapontadas com as notícias das últimas semanas. Na Tunísia, onde a Primavera Árabe começou e onde as mulheres apreciam maiores liberdades do que em qualquer parte do mundo árabe, os islâmicos surgiram nas recentes eleições como os mais fortes. O mesmo deve acontecer no Egito, que está em período eleitoral. E nem uma única mulher foi nomeada para o conselho que será responsável pela redação da constituição.
No Egito, não foram apenas os islâmicos os responsáveis pelos ataques contra as mulheres desde então. Foram também os membros dos regimes antigo e novo. Em março, houve relatos que o exército estava fazendo “testes de virgindade” nas manifestantes, um procedimento que muitas entenderam como estupro.
Elas tiveram que ficar nuas diante de soldados em festa, que usaram seus celulares para filmar os exames da genitália das mulheres. Um general depois anunciou que as mulheres não eram como nossas filhas ou a dele. Mais recentemente, atos de violência sexual estão sendo perpetrados contra as mulheres na praça novamente.
Será que as mulheres árabes lutaram por sua liberdade somente para então perder os direitos que tinham antes, na ditadura?
Um projeto da elite
Há muito existe uma classe urbana educada, de mulheres profissionais na Tunísia e no Egito. Os direitos da mulher, porém, eram um projeto da elite. Para déspotas como o ex-presidente da Tunísia Zine el Abidine Ben Ali ou o ex-presidente do Egito Hosni Mubarak também era um meio para um fim. Eles defendiam os direitos das mulheres para levar o Ocidente a crer que seus regimes eram progressistas.
Mas a realidade deixava muito a desejar. De fato, o famoso Relatório do Desenvolvimento Humano Árabe da Organização das Nações Unidas de 2002 citou o pobre estado dos direitos das mulheres no mundo árabe como uma das três razões porque essa parte do mundo permanecia tão subdesenvolvida.
No Egito, ironicamente, foi Suzanne Mubarak, hoje a odiada mulher do ex-presidente, que defendeu os direitos das mulheres e combateu a horrível prática de mutilação genital feminina. Apesar de ter feito algum progresso, muitas das suas conquistas em nome das mulheres hoje estão associadas ao seu nome.
Não é de surpreender que um contra-modelo islâmico agora esteja ganhando força, após a derrubada de regimes que se fingiam ocidentais e seculares. Particularmente na Tunísia, a elite secular sempre se acreditou mais europeia do que árabe, imitando o estilo de vida do antigo poder colonial, a França. Nos subúrbios ricos de Túnis, não era incomum ver mulheres usando saias curtas, e as feministas se orgulhavam disso.
Quase igualdade
Na Tunísia, as mulheres estão em condições similares aos homens na maior parte das áreas. Elas podem se divorciar, a poligamia é proibida, e o aborto é legal. Os efeitos dessa política se refletem em dois índices. Enquanto metade de todas as mulheres já estavam casadas aos 20 anos em 1960, em 2004 somente 3% das mulheres entre 15 e 19 anos estavam casadas. Esse status das mulheres pode ser atribuído a Habib Bourguiba, fundador secular da República da Tunísia, que muitas vezes é tido como similar tunisiano do primeiro presidente da Turquia, Mustafa Kemal Atatürk. Entretanto, continua sendo um fenômeno primariamente urbano. Como a Turquia, a Tunísia era em grande parte secular por este ser o desejo das elites. No interior do país, as pessoas são conservadoras.
Foi um erro acreditar que o mundo árabe ia se tornar mais ocidentalizado após as revoluções. Pelo contrário, em muitos locais, os moradores estão voltando aos seus próprios valores.
Nas ruas de Túnis, mulheres usando lenço na cabeça ainda eram a exceção em janeiro, mas em junho parecia que cerca de metade das mulheres já estavam usando o lenço. Algumas o faziam simplesmente por motivos religiosos, mas para muitos o hijab é uma expressão de uma identidade recém descoberta. Antes das revoluções, era quase visto como estigma ser árabe. Mas desde a derrubada de Ben Ali, um renovado orgulho nacional e identidade árabe são evidentes na Tunísia.
Sana Ben Achour, principal feminista da Tunísia, não esconde sua decepção diante das mudanças. Ela não gosta da impressão gerada que o corpo da mulher é algo que deve ser coberto. Ela salienta, contudo, que há jovens vestindo jeans apertados e véu, deixando claro que nada está sendo de fato coberto. Achour acha que isso é moda, mas ainda assim não gosta.
Renascimento conservador
No Egito, por outro lado, durante anos poucas mulheres se aventuravam nas ruas sem um véu. É um sinal de uma sociedade conservadora que parece muito mais removida da Europa do que a Tunísia.
Mulheres com véus já tomaram as ruas em protesto contra os britânicos mesmo em 1919. Após Gamal Abdel Nasser assumir o poder em 1954, o país passou por um despertar social, e as mulheres foram estimuladas a tomar parte na vida profissional. Ainda assim, houve uma forte retomada no conservadorismo desde os anos 80, com as mulheres sendo empurradas de volta aos seus papeis tradicionais.
Muitas feministas árabes olham para o Iraque com preocupação, onde a derrubada de um tirano secular não ajudou as mulheres e onde quatro quintos de todas as estudantes pararam de frequentar a escola desde então.
Um novo modelo de islâmicas
Uma mulher atraente e sorridente apareceu diante dos jornalistas ocidentais para falar em nome dos vencedores na noite após a vitória eleitoral islâmica em Túnis. Ninguém será forçado a vestir o lenço na nova Tunísia, disse ela. Ela estava maquiada e usava um lenço colorido enrolado firmemente em torno do rosto. Ela parecia confiante e inteligente, e quando perguntada o que a vitória islâmica significaria para as mulheres, ela disse que não via contradição entre o islã e o direito da mulher.
Esta era Soumaya Ghannouchi, filha de Rachid Ghannouchi, líder do partido islâmico Ennahda e o novo homem forte do país. Ela foi criada em Londres, onde o pai morou no exílio por 20 anos, e onde ela era jornalista, escrevendo para o “Guardian” entre outras publicações. Ela é politicamente engajada, muçulmana independente que defende o movimento do pai, como faz a irmã Intissar, que é advogada em Londres.
As quatro filhas de Ghannouchi não se encaixam nas noções ocidentais da mulher árabe oprimida. É assim que devem ser as islâmicas?
As filhas de Ghannouchi, que se tornaram exemplos para algumas jovens na Tunísia, não são a única evidência que é possível ser uma mulher muçulmana, vestir lenço na cabeça e ainda ser forte. Por anos, as redes de televisão via satélite árabes na região do Golfo também popularizaram o ideal de pura beleza feminina por todo o mundo árabe.
Emancipação muçulmana
Mulheres determinadas não necessariamente têm que se parecer como na fantasia ocidental. Anos atrás, pesquisadores do centro de estudos para Paz Internacional Carnegie Endowment, de Washington, identificou um movimento que seria caracterizado como emancipação muçulmana dentro de tais organizações como a Irmandade Muçulmana egípcia. Mesmo este grupo de mulheres conservadoras muçulmanas envolve uma nova geração de ativistas confiantes e educadas, que exigem seus direitos e insistem em ser ouvidas dentro de suas organizações.
Muitas delas estavam à frente das marchas de protesto no último inverno e agora estão lá novamente, lado a lado com as manifestantes seculares. Juntas, estão enfrentando um confronto com o pior adversário das mulheres egípcias: os militares. Durante a revolução na praça Tahrir, muitas jovens egípcias vivenciaram a igualdade de gêneros pela primeira vez. Elas protestaram junto com os homens e foram igualmente importantes na derrubada de Mubarak, e não houve ataques sexuais naquele período.
Desde então, têm sido primordialmente as forças de segurança e o conselho militar do Egito que procuraram colocar as mulheres em seus lugares por meio da violência –e não os islâmicos.
Ao mesmo tempo, os salafistas radicais se tornaram cada vez mais influentes no Egito. Os salafistas são muçulmanos fundamentalistas que querem que as mulheres fiquem em casa e cubram seus corpos da cabeça aos pés. Os cartazes de campanha do partido salafista Nour mostram sete candidatos barbudos. Não há foto da oitava candidata, somente a imagem de uma rosa.
Mas os salafistas não são a maioria no Egito. A Irmandade Muçulmana, que também é islâmica e provavelmente vencerá as eleições, é mais pragmática em sua posição em relação às mulheres. São conservadores, mas não se deve esperar deles uma interpretação da lei islâmica baseada no modelo misógino saudita.
Notícias preocupantes
Na Tunísia, os islâmicos sob Rachid Ghannouchi alegam ser mais favoráveis às mulheres do que em qualquer outra parte. Na campanha eleitoral, eles insistiram que não iam procurar reduzir os direitos e que não estão interessados na poligamia ou em tornar obrigatório as mulheres usarem lenço na cabeça. Eles citam como modelo o partido governante islâmico moderado na Turquia, o AKP.






Muitos conservadores, porém, sentiram-se fortalecidos por sua vitória eleitoral e há notícias preocupantes vindo de Túnis. As mulheres informam que foram criticadas em público por suas roupas. Na universidade, estudantes impediram as palestrantes de entrarem na sala por estarem vestidas sem modéstia.
Ainda assim, não se deve esperar que a forte posição das mulheres na Tunísia mude rapidamente, pois está muito firmemente estabelecida, especialmente nas cidades. No Egito, por outro lado, as mulheres não são forçadas apenas a defenderem seus direitos contra os radicais islâmicos, mas também contra uma aliança de machistas de linhas ideológicas totalmente diferentes.
Após os ataques da semana passada, a jovem ativista Lara El Gibaly escreveu no Twitter: “Sob o risco de parecer feminista, hoje em particular estou realmente enojada com a sociedade patriarcal movida a testosterona em que vivo. O Egito é um lugar horrível para as mulheres.”
Tradução: Deborah Weinberg

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