Roger Cohen - TINYT
Reprodução
Estado Islâmico divulgou vídeo em que jornalista americano é decapitado
Uma época de fraqueza e ódio, desorientação e dúvida, em que ninguém sabe qual é a desgraça que surgirá.
Foi uma época de desintegração. Muito tempo depois, em meio às ruínas, as pessoas se perguntaram: como isso pôde acontecer?
Foi uma época de decapitações. Com um movimento da mão esquerda, diante
de uma paisagem desértica, em plena luz do dia, um muçulmano com
sotaque britânico cortou as cabeças de dois jornalistas norte-americanos
e de um funcionário de ajuda britânico. O jihadista parecia à vontade
em seu trabalho, sem pressa. Suas vítimas estavam subjugadas. O terror é
teatro. Arranha-céus incendiados, cabeças cortadas: o terrorista toma
imagens de cinema de uma leviandade insuportável e dá a elas peso
suficiente para incrustá-las na psique.
Foi uma época de
agressão. O líder da maior nação da terra declarou seu país cercado, até
mesmo humilhado. Ele anexou parte de um país vizinho, na primeira ação
do tipo que aconteceu na Europa desde 1945, e desencadeou uma guerra por
mais terras que cobiçava. Seus aliados derrubaram um avião civil de
passageiros. As vítimas, muitas delas europeias, foram deixadas
apodrecendo ao sol por dias. Ele negou qualquer papel na violência, como
um titereiro que nega que os movimentos de suas marionetes tenham
qualquer ligação com os seus. Ele invocou a lei apenas para pisoteá-la.
Ele invocou a história apenas para transformá-la em farsa. Ele lembrou à
humanidade que o idioma que o fascismo conhece melhor é uma inverdade
tão grotesca a ponto de gerar a irracionalidade.
Foi uma época
de rompimento. A união mais bem sucedida da história, forjada em uma
ilha do Mar do Norte em 1707, caminhava para uma possível dissolução -
não porque tivesse fracassado (refugiados vindos de outros mares ainda
clamavam para entrar), nem por causa do ódio entre seus povos. Os
cidadãos mais ao norte estavam entediados. Eles estavam desapontados.
Eles estavam enfastiados, de uma forma insidiosa, com o sul e sua
capital endinheirada, um emblema, para eles, da globalização e da
desigualdade. Eles imaginaram que tinham de controlar seu Serviço de
Saúde Nacional para salvá-lo muito embora já o controlassem através da
devolução e pudessem ter bem menos dinheiro para sua preservação (não
que ele estivesse ameaçado, para início de conversa) ao se tornarem um
estado independente. O fato de que a moeda, a dívida, a arrecadação, a
defesa, a solvência e a participação na União Europeia de um estado tão
jovem estivessem todos em dúvida, não pareceram pesar muito sobre uma
decisão tomada pela emoção, pela ansiedade, por um desejo de ter voz na
cacofonia moderna - dane-se o dia seguinte. Se tudo mais fracassasse, o
petróleo chegaria para resgatá-los (a menos que ele pertencesse a outro
ou simplesmente acabasse).
Foi uma época de fraqueza. A nação mais poderosa da terra estava
cansada de guerras distantes, sua vontade e tesouro estavam exauridos
pela ausência de vitória. Um mundo ingrato poderia muito bem policiar a
si mesmo. A nação tinha pontes a construir e sistemas educacionais a
reformar. As guerras civis entre árabes podiam se inflamar. Os inimigos
podiam até mesmo matar outros inimigos, seria uma vitória de baixo
custo. As fronteiras no Oriente Médio podiam desaparecer; elas eram
linhas coloniais artificiais desenhadas sobre o mapa. Os xiitas podiam
lutar contra sunitas, e os xiitas contra os sunitas, nada os impediria. O
líder da nação zombou ironicamente de sua própria abordagem "abatida,
tímida, professoral" em relação ao mundo, implicando que ele não era
nenhuma dessas coisas, ainda que aparentasse. Ele estabeleceu objetivos
para os quais não tinha plano. Ele assumiu compromissos que não cumpriu.
Da forma como estava o mundo, isso foi percebido. Inimigos sondaram.
Aliados foram negligenciados, até que foram necessários para enfrentar
os decapitadores que falavam em califado e se autodenominavam um estado.
Palavras como "força" e "determinação" voltaram ao vocabulário do
líder. Mas o mundo já estava à deriva, sem âncora por causa da retirada
de seu poder ordenador. O livro de regras tinha sido rasgado.
Foi um tempo de ódio. Slogans antissemitas foram ouvidos na terra que
inventou o assassínio em massa industrializado para os judeus da Europa.
Judeus europeus amedrontados retiraram os mezuzás de suas casas.
Muçulmanos europeus sentiram a repercussão terrível da perversidade dos
decapitadores, que eram adeptos de veicular sua mensagem pelo Facebook. O
tecido da sociedade se rasgou. A democracia parecia estranha ou
ultrapassada em comparação com os novos autoritarismos. Políticos,
assombrados pela sua incapacidade, jogaram com o medo da população, que
estava distraída com dispositivos eletrônicos ou sofrendo de estresse
por causa desses últimos. A distopia era uma palavra em voga, como a
utopia no século 20. As grandes nações populosas em ascensão seguravam o
destino do mundo em suas mãos, mas mal pareciam se importar.
Foi uma época de febre. As pessoas no oeste da África sangravam pelos olhos.
Foi uma época de desorientação. Ninguém ligou os pontos ou leu Kipling
sobre as poucas certezas da vida: "O Cão retorna ao seu Vômito e a Porca
ao Lodo / E o dedo queimado do tolo retorna trêmulo ao Fogo."
Até que foi tarde demais e as pessoas puderam enxergar a verdadeira natureza da Grande Desintegração e suas consequências.
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