Qual o tamanho ideal e a função adequada do estado?
Detlev Schlichter - IMB
Trata-se de um tema muito grande e muito complexo, e provavelmente ambicioso demais para ser abordado em um único ensaio. Embora o que virá a seguir possa ser um tanto longo, ainda assim não tem como ser uma abordagem completa. Várias perguntas ficarão sem respostas e várias objeções — inclusive as várias que já posso antecipar — não serão discutidas. Mas, ainda assim, espero que o leitor considere válido o esforço.
Durante muito tempo me considerei um liberal clássico — assim como Ludwig von Mises, que inspirou a maior parte do meu trabalho. Mas hoje eu não mais considero que tal posição seja logicamente consistente. A ideologia liberal clássica, embora defenda um estado muito menor do que aquele que o consenso político atual preconiza, ainda assim atribui poderes excessivos ao estado. Não obstante, ela oferece um bom ponto de partida para a discussão. Portanto, comecemos por ela.
Argumentos utilitaristas para o estado estritamente limitado
A posição liberal clássica acerca do papel do estado pode ser descrita aproximadamente da seguinte forma: o estado deve ficar completamente de fora da economia. Não há funções para o estado exercer no setor industrial, no setor bancário ou no setor monetário. O dinheiro é o ouro ou qualquer outra commodity livremente escolhida pelo público para efetuar suas trocas de mercado. A oferta monetária está, portanto, totalmente fora do controle político, e o sistema bancário e financeiro são entidades que operam em um mercado totalmente livre e desimpedido, sem usufruir nenhum tipo de auxílio estatal, nenhuma garantia e nenhum amparo explícito ou implícito.
Adicionalmente, todos os meios de produção são propriedade privada, e a maneira como eles são empregados é guiada pelo sistema de preços do mercado, sempre se buscando oportunidades de lucros e procurando se evitar prejuízos. Lucros e prejuízos são os sinais essenciais por meio dos quais os consumidores direcionam as atividades das empresas privadas, de modo que elas sempre estejam se esforçando ao máximo para satisfazer os desejos do público consumidor.
O estado não está envolvido na educação, na saúde, na previdência ou em quaisquer outros "serviços sociais". Todas estas atividades são organizadas privadamente, pelo simples motivo de que todas elas requerem o uso de recursos escassos, inclusive mão-de-obra; e qualquer alocação racional de recursos escassos requer preços de livre mercado. O planejamento econômico racional só é possível quando tem como base preços de mercado. Somente preços de mercado transmitem a urgência que o público atribui aos vários e concorrentes fins para os quais os recursos escassos devem ser empregados.
Porém, preços de mercado só podem ser determinados se os recursos forem propriedade privada e se eles puderem ser livremente comercializados no mercado. A propriedade privada é, portanto, a ferramenta essencial para uma ampla cooperação social. A propriedade privada permite o comércio e, consequentemente, a formação de preços de mercado. Isto, por sua vez, permite que empreendedores empreguem estes recursos de maneira racional e eficiente. Este processo é o único logicamente possível para se facilitar uma vasta divisão do trabalho e a constante acumulação do capital empregado em empresas privadas. É a ampla divisão do trabalho e a constante acumulação de capital o que possibilitam que nosso padrão de vida cresça continuamente.
Um exemplo
Peguemos como exemplo um sistema de saúde estatal. Não importa que seja de um país pobre ou de um país rico: ele jamais poderá realizar um serviço satisfatório. E não é porque as pessoas que nele trabalham sejam incompetentes ou preguiçosas. Elas podem muito bem ser as pessoas mais motivadas, dedicadas e bem intencionadas do planeta, e ainda assim irão entregar apenas resultados sub-ótimos, e a custos consideráveis. Por quê? Porque um sistema de saúde estatal tem de fornecer serviços de saúde para toda uma nação sem o auxílio de genuínos preços de mercado e, consequentemente, sem poder calcular corretamente seus lucros e prejuízos. Gostem ou não, são estas as ferramentas capitalistas que permitem que o setor privado tome decisões corretas e fundamentadas sobre quais são os melhores recursos a serem utilizados — 'corretas e fundamentadas' porque refletem as preferências e desejos dos clientes, os consumidores.
Não obstante o poderoso apelo sentimental gerado por um sistema público de saúde e seu superficialmente atraente lema de fornecer serviços de saúde "gratuitos" (algo que obviamente não é verdade para a maioria dos cidadãos), as fundamentais deficiências de qualquer serviço organizado segundo moldes socialistas já deveriam estar patentemente óbvias para qualquer um: ao passo que o setor de telefonia celular — empreendimento privado que, na maioria dos países, ainda é relativamente pouco regulado — fornece as últimas novidades em tecnologia para todas as pessoas distribuídas ao longo de todo o espectro social a uma velocidade notável e a preços declinantes, a burocracia estatal dos serviços de saúde faz com que as pessoas tenham de esperar em longas filas até mesmo para procedimentos básicos e de rotina; e, pior ainda, fornecem tais serviços lastimáveis a custos espantosamente crescentes para os pagadores de impostos.
Que serviços de saúde e de educação sejam considerados importantes demais para serem deixados a cargo do mercado privado é um clichê que inverte completamente a lógica econômica: é justamente por serem muito importantes é que deveriam ser entregues aos auspícios do mercado privado.
Mas, e quanto àquelas pessoas que são pobres demais ou que por qualquer motivo são incapazes de obter a renda necessária para garantirem a si próprias até mesmo um mínimo destes serviços? Não irei me esquivar desta pergunta. Voltarei a ela daqui a pouco.
Até agora, qual a implicação de toda esta argumentação para o tamanho e a função do estado? O estado seria, é claro, muito pequeno para os padrões de hoje. Ele teria apenas uma função: proteger a propriedade privada, a qual inclui necessariamente a propriedade sobre nós mesmos. O papel do estado seria o de proteger cada indivíduo e sua propriedade contra agressões, seja tal agressão originada dentro do país ou fora do país. O estado seria reduzido àquilo que os social-democratas alemães do final do século XIX pejorativamente, mas ainda assim corretamente, chamavam de "estado vigia noturno". O estado forneceria serviços de segurança, incluindo-se aí polícia, exército, tribunais e outros serviços relacionados. Sua única função seria fornecer segurança e proteção. Aqueles cidadãos que não violassem a propriedade ou a pessoa de outros indivíduos, ou que não fossem igualmente agredidos, muito dificilmente teriam qualquer contato com o estado e seus representantes. Seria de fato um estado mínimo.
Até aqui os argumentos foram feitos tendo por base considerações utilitaristas. Uma sociedade próspera requer um alto grau de divisão do trabalho e um eficiente uso de recursos (naturalmente escassos), o que por sua vez requer preços de mercado, o que por sua vez requer propriedade privada. Sob o utilitarismo, a propriedade privada é acima de tudo uma convenção social, um meio para se atingir um fim. E a função do estado é assegurar este meio: a propriedade privada, a existência de um domínio privado inviolável para todo e qualquer indivíduo, é a base para a cooperação voluntária contratual e para o crescimento espontâneo da sociedade.
Argumentos éticos para o estado estritamente limitado
Este estado mínimo pode, no entanto, também ser erigido sobre bases éticas e seguindo considerações de justiça. Todo estado é uma instituição que se baseia na compulsão e na coerção. O estado pode ser visto como uma instituição que detém o monopólio legitimado, institucionalizado e regulado da violência ou da ameaça do uso da violência. No entanto, qual tipo de violência é eticamente defensável e que, portanto, pode servir de fundamento aceitável para justificar a violência institucionalizada? Apenas a violência defensiva satisfaz este requisito.
Para responder a perguntas sobre ética é necessário começar considerando o indivíduo que age. Em uma sociedade normalmente pacífica e cooperativa, a partir de que ponto estaria eu justificado a utilizar de violência ou ameaçar utilizar de violência contra outras pessoas? Apenas se e quando estas pessoas ameaçassem minha vida, minha saúde ou minha propriedade. Isto não significa que qualquer tipo de resposta violenta seria justificável em tais situações; porém, resta óbvio que, se a força e a violência podem ser justificadas, elas somente o serão em situações de autodefesa, as quais incluem a defesa da propriedade. Se posso justificadamente me defender de um ataque, também tenho de poder defender aqueles bens materiais que adquiri por meio do meu trabalho honesto, no qual utilizei meu próprio corpo e minha própria mente. Caso contrário, caso outros indivíduos tivessem a permissão de se servirem livremente dos frutos do meu trabalho, simplesmente tomando-os de mim quando quisessem, isso significaria que eles poderiam viver totalmente à custa do meu trabalho e, com isso, praticamente me escravizarem, o que seria o equivalente a um ataque à minha pessoa.
Ao se transferir o direito individual à autoproteção e à autodefesa da vida e da propriedade a uma organização especializada com a missão de zelar igualitariamente por esses direitos de todos os membros da sociedade, nenhum novo direito foi criado. Não se está dando ao estado nenhum direito ou poder que o próprio indivíduo já não possua. Com efeito, a força legitimada do estado teria sua origem em um conceito de direitos naturais que se originam do indivíduo e os quais o indivíduo teria mesmo em uma sociedade sem estado (embora em tal sociedade ele teria de impingir estes direitos por conta própria ou por meio de uma cooperação voluntária com outros). O estado talvez possa ser visto como um agrupamento destes direitos individuais com o intuito de gerar a mais organizada e padronizada — e, portanto, mais previsível — proteção.
O argumento utilitarista contra o estado assistencialista
Podemos agora abordar a questão da oferta de serviços para indivíduos pobres ou para aqueles que por algum motivo sejam incapazes de adequadamente se sustentarem. Embora possam ser feitos bons argumentos afirmando que aqueles indivíduos mais abonados têm a obrigação moral de auxiliar os membros mais frágeis da sociedade, tal raciocínio deixa claro que o estado não deve forçar e impingir tais auxílios. Repetindo: o estado é uma organização que opera por meio da compulsão e da coerção. Ao assumir responsabilidades 'sociais', o estado terá de redistribuir renda e propriedade de maneira contínua, sempre recorrendo à força ou à ameaça de força, desta forma incorrendo em permanente violação de sua missão original, a qual era proteger a propriedade honestamente adquirida contra qualquer interferência violenta. Dado que a função do estado é justamente defender a instituição da propriedade privada — a qual identificamos como sendo absolutamente essencial para qualquer sociedade civilizada —, uma função social, que exige redistribuição de renda e propriedade, estaria em flagrante contradição com sua missão precípua. O estado não pode simplesmente acrescentar uma função redistributiva à sua função de proteção da propriedade — a primeira sempre irá violar a última. Ambas as função estão em conflito lógico. Ou o estado é um protetor da propriedade ou ele é um redistribuidor e realocador de propriedade. Ele não pode ser ambos ao mesmo tempo.
No conceito original do estado, em que sua função é atuar como força organizada para o fornecimento de segurança, um indivíduo que honestamente obteve sua propriedade por meio da produção ou de trocas voluntárias com outros membros da sociedade deveria poder confiar no estado para que este protegesse sua propriedade de qualquer violação perpetrada por terceiros. Porém, no momento em que o estado assume a responsabilidade da 'justiça social' ou da 'justiça redistributiva', ele acabou de se tornar ele próprio um violador da propriedade privada, de modo que todo e qualquer indivíduo deve agora temer que partes da sua renda e da sua propriedade — embora legalmente obtidas — sejam confiscadas à força pelo estado e realocadas para outros membros da sociedade.
Resta claro que, sob um estado que assume responsabilidades 'sociais', qualquer direito de propriedade se torna totalmente condicional. Os direitos de propriedade serão protegidos pelo estado somente enquanto ele não considerar que há outras pessoas mais necessitadas e mais moralmente dignas de serem as proprietárias da propriedade em questão. Cada fatia de propriedade em tal sociedade estará, portanto, sob uma nuvem de incerteza, e isso está em total contradição com a missão original do estado. O elemento incerteza é amplificado pelo fato de que, embora seja possível especificar regras claras e universais sobre como a propriedade pode ser honesta e legalmente adquirida — desta forma fornecendo a cada membro da sociedade regras claras, conhecidas antes do ato de produção e comércio, sobre o que constitui obtenção correta e o que constitui obtenção ilícita de propriedade —, qualquer noção explicitada após o ato de produção e comércio sobre o que constitui 'justiça distributiva' será necessariamente arbitrária e estará sujeita a consideráveis mudanças ao longo do tempo.
Não é nada surpreendente que todos os estados tenham expandido enormemente a variedade e a amplitude de políticas redistributivas, legislações sociais e regulamentações ao longo das últimas décadas. Uma vez que o estado se encarregou de buscar o logicamente indefinível objetivo da igualdade e da justiça social, ele passou a exigir poderes cada vez mais amplos. A consequência é que a ideia de um estado mínimo já se tornou hoje completamente irrealista.
Em contrapartida, qualquer redistribuição de propriedade ou de renda por meio de atos de caridade não apresenta conflito algum com a instituição da propriedade privada. O doador e o recebedor da caridade sabem quem é o proprietário de direito da propriedade doada. O recebedor está ciente de que ele está sendo sustentado pela generosidade de outros. O doador também decide quem ele quer ajudar e até que ponto ele quer ajudar tal pessoa. Tudo isso muda quando o estado, detendo o monopólio legal da coerção, se torna o intermediário. O recebedor não mais se considera dependente do sucesso econômico e da caridade de outros. Ao contrário: ele agora reivindica o 'direito' de ser sustentado pelo estado — receber auxílios se torna um direito legalmente exigível pela pessoa. Tendo agora pelo menos uma renda mínima garantida, os incentivos para que esta pessoa mude seu comportamento e readquira independência econômica são diluídos. Enquanto isso, o proprietário original da propriedade não mais controla para onde seu dinheiro vai, e provavelmente irá perder qualquer interesse pela situação dolorosa daqueles que necessitam de auxílios. Uma vez que ele já foi tributado pelo estado, ele considera que todos os seus deveres morais para com os membros mais fracos da sociedade já estão devidamente cumpridos.
Os defensores do estado assistencialista irão argumentar que é mais justo introduzir um elemento de incerteza nas vidas dos indivíduos economicamente independentes do que manter os membros mais frágeis da sociedade sujeitos à completa incerteza que a pobreza e a dependência da caridade inevitavelmente acarretam. Embora este seja um argumento emocionalmente atraente — e provavelmente seja um sentimento amplamente compartilhado —, ele não dispersa a questão do conflito fundamental entre a proteção da propriedade privada e a persistente redistribuição da propriedade privada.
Um estado assistencialista é, fundamental e conceitualmente, uma ameaça persistente à noção de propriedade privada; e a propriedade privada é inegavelmente a fundação econômica de qualquer sociedade. Adicionalmente, qualquer conceito de 'justiça social' é, por definição, arbitrário e será fonte de enormes conflitos sempre que for utilizado para nortear políticas práticas. No que mais, um estado que se preocupe com a distribuição de renda e de propriedade entre seus cidadãos jamais será um estado pequeno, ou mesmo limitado.
O argumento ético contra o estado assistencialista
Até aqui, o argumento se baseou em considerações utilitaristas. Mas podemos também baseá-lo em teorias sobre ética e justiça. Já foi argumentado que um estado que se restringe à proteção da pessoa e da propriedade de seus cidadãos contra atos espontâneos de agressão baseia este seu direito à legítima força nos direitos que os membros individuais desta sociedade têm de utilizar esta mesma força. O estado não assume nenhuma posição privilegiada; ele simplesmente exerce os direitos que cada cidadão individual já possui, mas que considera ser mais bem assegurado e exercido por uma organização estatal. Esta visão, no entanto, deixa de ser defensável quando o estado implementa a redistribuição da renda e da propriedade.
Embora possamos dizer que, em termos de princípios de justiça, seja amplamente aceito que eu utilize de violência em medidas proporcionais para impedir que meu vizinho roube ou danifique minha propriedade, ou que ele inflija lesões a mim ou a qualquer membro da minha família, certamente será algo que estará fora das estabelecidas normas de justiça caso eu decida forçar meu vizinho a sustentar terceiros, escolhidos por mim, os quais eu julgo serem dignos da caridade deste meu vizinho. Ao fazer da 'justiça social' o seu objetivo, o estado reivindica o direito ao uso de uma força que nenhum outro indivíduo possui. O estado agora se tornou uma lei própria, uma entidade 'superior e suprema' cujos padrões de certo e errado não mais correspondem aos dos cidadãos da sociedade. Qualquer noção de que o estado poderia simplesmente representar um agrupamento conveniente e eficiente dos direitos individuais dos cidadãos, com o único propósito de melhor organizar e padronizar sua proteção, se torna insustentável. O estado pode fazer e faz o que ninguém mais fora do estado pode fazer. O estado, enquanto estado, define suas próprias noções de moralidade e as impõe forçosamente sobre seus cidadãos.
Até agora, explicamos por que um estado que assume responsabilidades maiores do que aquelas preconizadas por um estado mínimo — a saber, articular, esclarecer e proteger os direitos de seus cidadãos à sua vida e propriedade — incorre em inevitável violação do direito de seus cidadãos à vida e à propriedade, e não mais poderá justificar sua existência tomando por base qualquer tipo de 'contrato social', uma vez que tal contrato pode abranger somente aqueles direitos que os indivíduos já possuem, e os quais eles podem voluntariamente transferir para o estado caso tenham aceitado tal contrato. Vimos também que um estado que se envolve na distribuição de renda e de propriedade entre seus cidadãos irá inevitavelmente solapar a instituição da propriedade privada, a qual é essencial para a cooperação humana em uma economia de mercado e é a base para qualquer sociedade próspera.
Do liberalismo clássico ao anarco-libertarianismo
Embora tal estado mínimo — um puro protetor da vida e da propriedade de seus cidadãos, um executor das leis e um provedor de tribunais para facilitar a resolução de conflitos — seja um melhor garantidor da liberdade individual e da cooperação pacífica do que o estado pesadamente intervencionista e crescentemente autoritário de hoje, e embora a maioria dos libertários ficasse feliz de ver um retorno a esta visão liberal clássica do estado mínimo, mesmo este conceito ainda continuará extremamente falho enquanto a organização que se autodenomina estado reivindicar o monopólio territorial do fornecimento de serviços de proteção e segurança e o monopólio da tomada suprema de decisões dentro deste território (esta é, na realidade, uma ótima definição do estado feita por Hans-Hermann Hoppe).
Se o estado não apenas utiliza a violência legitimada para proteger a vida e a propriedade de seus cidadãos, mas também — como presentemente o fazem todos os estados — utiliza a força para impedir que os cidadãos abdiquem voluntariamente das estruturas do estado e estabeleçam ou se juntem a diferentes e concorrentes arranjos dentro deste mesmo território, então temos também de rejeitar este estado mínimo com base na análise acima.
Primeiro, novamente, as considerações utilitaristas. Fornecer serviços de segurança também requer o uso de recursos escassos. Quantos recursos devem ser alocados para o fornecimento de segurança, quais recursos devem ser utilizados e em que grau, são questões essenciais. Sem propriedade privada, preços de mercado e liberdade de entrada no mercado da oferta de segurança, os resultados serão, como explicado, longe do ótimo. Mesmo na área da oferta de segurança, soluções de mercado são indubitavelmente superiores. Este importante argumento foi inicialmente desenvolvido pelo economista belga do século XIX, Gustave de Molinari.
Segundo, temos considerações de ética e de justiça. Se o estado alega que sua legitimidade do uso da força advém do direito do cidadão de utilizar a força para defender sua própria vida e propriedade, isto significa que os direitos do indivíduo são a origem dos direitos do estado, e que este último jamais pode substituir o primeiro. Colocando de maneira diferente, um estado que reivindica o monopólio territorial da oferta de segurança e da resolução de conflitos tem de argumentar que o indivíduo que tinha o direito de utilizar de violência para defender a vida e a propriedade decidiu, ao entregar estes direitos a uma organização estatal, abrir mão destes direitos para sempre, e que ele não mais pode recuperar estes direitos e aplicá-los por meios alternativos. Esta, logicamente, é uma posição insustentável.
Parece correto assumir que as leis e a oferta de segurança têm muito em comum com o dinheiro no sentido de que elas, também, estão sujeitas a efeitos de rede. Assim como a coexistência de várias moedas paralelas é algo sub-ótimo, a coexistência de várias estruturas legais e de vários arranjos de segurança também é ineficiente. Porém, isso não significa que indivíduos não possuam o direito de criar arranjos alternativos caso julguem que os arranjos atuais sejam insuficientes ou até mesmo uma ameaça para suas próprias vidas e propriedades. Podemos concluir que, no mínimo, o estado mínimo deve reconhecer o direito universal e inviolável de cada indivíduo ou grupo de indivíduos de se separar a qualquer momento do monopólio estatal.
Muito do que argumentei acima pode parecer uma fútil teoria libertária com pouca relevância para a atual realidade política. Porém, uma crise do atual sistema de papel-moeda fiduciário de curso forçado já se tornou inevitável. Esta crise faz parte de uma crise mais ampla, que é a crise do estado de bem-estar social e, com efeito, da própria democracia. À medida que estas crises vão se desdobrando, as pessoas irão novamente revisitar algumas questões fundamentais sobre o tamanho e o papel do estado e sua relação com o indivíduo. Sob esta perspectiva, discussões como esta poderão se tornar de fato muito relevantes. À medida que os estados ao redor do mundo forem quebrando, à medida que as promessas de assistencialismo estatal do berço ao túmulo forem sendo descumpridas, e à medida que os políticos forem perdendo o controle sobre seus impérios construídos com dinheiro de papel, os cidadãos irão considerar novas e mais adequadas alternativas aos atuais aparatos estatais.
Finalizarei este ensaio com um pequeno excerto do sensacional panfleto No Treason, NO II, de Lysander Spooner, escrito em 1867, no qual ele faz uma fascinante interpretação da constituição americana e que é uma excelente apresentação dos pontos que tentei abordar ao final da análise acima. Eis Spooner:
A Constituição diz:
Nós, o povo dos Estados Unidos, com o intuito de formar uma união mais perfeita, estabelecer a justiça, garantir a tranquilidade doméstica, prover a defesa comum, promover o bem-estar geral e garantir as bênçãos da liberdade para nós mesmos e para nossa posteridade, ordenamos e estabelecemos esta Constituição para os Estados Unidos da América.
O significado disto é simplesmente: Nós, o povo, agindo livremente e voluntariamente como indivíduos, consentimos e concordamos que iremos cooperar mutuamente para sustentar o governo na forma como ele foi descrito nesta Constituição.
A necessidade do consentimento do "povo" está implícita nesta declaração. Toda a autoridade da Constituição depende disto. Se o povo não consentir, ela não terá validade. É claro que ela só teve validade entre aqueles que de fato consentiram com ela. Nenhum consentimento poderia ser presumido para um indivíduo sem que ele de fato o expressasse, assim como ocorre com qualquer outro contrato que envolva o pagamento de dinheiro ou a prestação de algum serviço. E para tornar a constituição vinculante sobre qualquer indivíduo, sua assinatura, ou outra evidência positiva de consentimento, era tão necessária quanto no caso de qualquer outro contrato. Se o instrumento tinha a intenção de dizer que qualquer indivíduo que pertencesse ao "povo dos Estados Unidos" estaria vinculado a ele, sem ter seu consentimento, isto seria uma usurpação e uma mentira. O máximo que pode ser inferido da frase "Nós, o povo" é que tal documento oferecia filiação para todo "o povo dos Estados Unidos", deixando para os indivíduos a opção de aceitar ou recusar, como bem entendessem.
O acordo é simples, como qualquer outro acordo. É o mesmo que um acordo que diga: Nós, o povo da cidade X, concordamos em manter uma igreja, uma escola, um hospital, ou um teatro, para nós mesmos e para nossos filhos.
Tal acordo claramente só teria validade entre aqueles que de fato consentiram com ele. Se apenas uma fatia do "povo da cidade X" consentisse com este contrato, e daí obrigassem aqueles indivíduos que não consentiram a contribuir com dinheiro ou com serviços, tais pessoas seriam meros assaltantes, e mereceriam ser tratadas como tal.
Nem a conduta e nem os direitos destes signatários seriam aprimorados caso eles virassem para os dissidentes e dissessem: "Oferecemos a vocês direitos iguais aos nossos em relação aos benefícios da igreja, da escola, do hospital ou do teatro que propomos construir, e um igual poder de controle sobre tal instituição". Seria uma resposta suficiente caso os outros dissessem: "Não queremos nenhuma participação nos benefícios, e nenhum controle sobre sua instituição; e não faremos nada para sustentá-la."
Detlev Schlichter é formado em administração e economia. Trabalhou 19 anos no mercado financeiro, como corretor de derivativos e, mais tarde, como gerente de portfolio. Nesse meio tempo, conheceu a Escola Austríaca de Economia e, desde então, dedicou seus últimos 20 anos ao estudo autônomo da mesma. Foi apenas após conhecer a Escola Austríaca que ele percebeu o quão mais profundas e satisfatórias eram as teorias austríacas para explicar os fenômenos econômicos que ele observava diariamente em seu trabalho.
Tradução de Leandro Roque
Nenhum comentário:
Postar um comentário