A visita do papa a Cuba
O Estado de S.Paulo - Editorial
O papa Bento XVI se fez preceder em Cuba por um comentário com o qual hão de concordar, decerto apenas em conversa com os seus travesseiros, as mentes mais lúcidas que se presume existir em setores do em geral esclerosado regime de Havana. Perguntado pelos jornalistas que o acompanhavam sobre a situação na ilha que visitaria em seguida ao México, ele deu uma resposta comedida, típica do intelectual que é, mas nem por isso menos desprovida de sentido político imediato. "Hoje é evidente que a ideologia marxista, do modo como foi concebida, deixou de corresponder à realidade" - e conclamou os cubanos a "buscar novos modelos".
O modelo a que aspiram os 11,5 milhões de habitantes do país não é diferente daquele dos seus vizinhos no Continente, que combina acesso crescente às oportunidades de desenvolvimento pessoal, participação também crescente na sociedade de consumo, proteção social, direito de ir e vir - e a "liberdade negativa" de que falava o pensador Isaiah Berlin: não ter medo do Estado. Já o modelo que a elite dirigente cubana tem em vista é o do transplante para o Caribe da fórmula chinesa de economia aberta com ditadura política. A marcha do comunismo cubano para o sistema de mercado, iniciada por Raúl Castro, não passa pela transferência de poder do Partido (e do Exército) para a sociedade, mediante liberdade de imprensa e de organização de eleições reais - o óbvio ululante das democracias.
Em Cuba, onde apenas metade da população se diz católica e não mais de 10% costumam ir à missa, a Igreja percorre uma linha fina entre a defesa dos direitos humanos e a convivência com o regime que os sonega. As condições necessárias para o seu ativismo - a legitimidade no exercício da sua missão pastoral e o reconhecimento como interlocutora do Estado - começaram a ser construídas há 14 anos, com a visita do papa João Paulo II. Naquele 1998, um decênio depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento do "socialismo real" no Leste Europeu - para o que a contribuição de Karol Wojtyla foi extraordinária -, Fidel era já um anacronismo. Ao lhe suceder, em 2006, Raúl entendeu que o regime já tinha problemas demais para manter uma atitude hostil à Igreja. E o Vaticano entendeu que, para ter alguma influência na ilha, precisaria admitir a legitimidade da Revolução.
Com isso, a principal autoridade eclesiástica no país, o cardeal Jaime Ortega, conseguiu negociar em 2010 com Raúl a libertação de dezenas de prisioneiros políticos, mandados - a maioria, a contragosto - para a Espanha. Ortega não esconde que "encorajar as reformas que o governo iniciou", como afirma o seu porta-voz Orlando Márquez, é a sua prioridade política. "É possível dizer que as mudanças têm sido lentas, insuficientes ou limitadas", reconhece o auxiliar. "Mas elas começaram." A estratégia de avançar (nas reformas) para consolidar (o papel institucional do catolicismo) não é isenta de contradições. Cubanos que ocuparam uma igreja dias antes da chegada de Bento XVI foram retirados pelas forças de segurança com a conivência dos sacerdotes. A detenção de 150 dissidentes parece ter sido encarada como um dado da realidade. E não houve espaço na agenda papal para um encontro com a oposição.
Mas, tão logo pôs os pés em Santiago de Cuba, onde rezaria missa pelo 400.º aniversário do achado de uma imagem de Nossa Senhora da Caridade do Cobre, a padroeira do país, Bento XVI fez uma inequívoca profissão de fé nas "justas aspirações e legítimos desejos de todos os cubanos, onde quer que se encontrem", numa alusão à diáspora provocada pela tirania castrista. Diante do anfitrião Raúl, falou também dos "presos e seus parentes", dos "pobres e necessitados". Pediu ainda "justiça, paz, liberdade e reconciliação" - 53 anos depois da implantação no país de uma ordem totalitária que prometia erradicar a pobreza e instaurar a igualdade. Talvez aquele seja o limite que o papa impôs às suas falas em Cuba. A ver se dirá algo a mais na missa de hoje na Praça da Revolução de Havana, o ponto culminante da visita.
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