Novo bote do governo Kirchner
Editorial - OESP
A Argentina da presidente Cristina Kirchner, a única verdade é a verdade do governo - e ai de quem ouse contrapor às fabricações do oficialismo uma visão da realidade calcada em dados objetivos, apurados com independência. Como se o país estivesse novamente sob o tacão da ditadura militar extinta há quase 30 anos, o Estado kirchnerista investe pesadamente também contra a imprensa que desmoraliza as versões da Casa Rosada, ao cumprir o dever elementar de dar voz ao outro lado. Decerto que o terror estatal em sua forma bruta, com as prisões, torturas e "desaparecimentos", está confinado à memória dos pesadelos argentinos. Mas, sob a capa das instituições democráticas e da defesa retórica das liberdades fundamentais, o governo não cessa de tentar estender os limites de seu controle autoritário da sociedade, subordinando até a Justiça aos seus interesses, para intimidar e amordaçar os que não se alinham com eles.
E isso, mesmo quando a experiência cotidiana da população cobre as autoridades de ridículo. Para ficar no assunto da hora, toda a Argentina sabe que o índice oficial de inflação, fornecido pelo Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), é uma contrafação grosseira. A rigor, os consumidores não precisam que ninguém lhes diga que a alta do custo de vida, em valores anuais, é quase o triplo da taxa de 9% admitida pelo Executivo. E ainda que não soubessem, bastaria o recente acordo entre o patronato e os sindicatos de trabalhadores, que reajustou o salário mínimo em 25%, para desmascarar o número chapa-branca. O governo garante também que a trajetória da inflação é declinante. E, para prová-lo, tropeça na própria mentira, como fez o desavisado vice-ministro da Economia, Roberto Feletti. Numa entrevista, ele comparou o índice apurado em Ushuaia, na Terra do Fogo, ao de Mendoza: 31,5% no primeiro caso, 22% no outro.
Mas o comportamento do governo não é propriamente um caso de galhofa. A Casa Rosada começou a torturar os fatos em 2007, na presidência Néstor Kirchner, quando interveio no até então autônomo Indec para sonegar a verdade sobre a carestia, a fim de minimizar a correção monetária dos títulos da dívida pública. No entanto, como as empresas privadas de consultoria continuassem a apresentar números que indicavam a maquiagem das taxas oficiais, o kirchnerismo apelou para a sua especialidade - a truculência. Em 2009, mandou abrir processo penal contra a consultoria M&S e outras, por difundir índices discrepantes de preços, sob a alegação de que essas empresas do ramo incentivavam, para fins especulativos, o aumento do custo de vida. Era de esperar que a Justiça arquivasse a ação por flagrante insubsistência, mas sendo o que se pode presumir que sejam as relações entre setores da magistratura argentina e o casal Kirchner, o juiz Alejandro Catania deu curso ao processo, aplicando multas a torto e a direito às acusadas.
Na semana passada ele partiu para cima da imprensa. Intimou seis jornais de Buenos Aires - La Nación, Clarín, Ámbito Financiero, El Cronista Comercial, BAE e Página 12 - a fornecer os "nomes, endereços, telefones e contatos dos jornalistas que tenham publicado notícias sobre índices de inflação", a contar de 2006. E aproveitou para perguntar a cada um desses periódicos se recebiam publicidade da M&S, como se isso fosse um indício de cumplicidade com o suposto delito da empresa. Tamanha foi a reação ao ato de intimidação judicial que o próprio Catania se sentiu compelido a pelo menos mostrar que recuava da arbitrariedade. Sugerindo que tinha sido mal interpretado, alegou cinicamente que não tinha pedido informações pessoais "ou de uso particular" dos jornalistas. Queria apenas saber como a Justiça poderia entrar em contato com eles, caso fossem chamados a prestar declarações, não como réus - tal seria! -, mas como testemunhas.
Em suma, o juiz quer pressioná-los a revelar os nomes de seus entrevistados nas consultorias que teriam transgredido o código penal, ao cometer, segundo o governo, "fraudes de comércio e indústria". A Constituição argentina assegura o sigilo da fonte, mas os Kirchners nunca se sentiram inibidos por garantias constitucionais.
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