A guerra dos governos contra o dinheiro
Joseph Salerno - IMB
Com a desculpa de isso ser necessário para lutar suas várias e fabricadas guerras contra as drogas, contra o terror, contra a sonegação de impostos e contra o crime organizado, o governo americano há muito vem travando uma guerra oculta contra o dinheiro em espécie. Um sintoma desta guerra é que a mais alta denominação da moeda americana é a cédula de US$100, cujo poder de compra — em contínuo declínio — é muito menor que o poder de compra da cédula de €500. Já houve uma época em que a moeda americana era emitida em denominações que iam até US$10.000 (incluindo também cédulas de US$500, US$1.000 e US$5.000). Já houve até uma cédula de US$100.000 emitida para transações entre os bancos que lidam diretamente com o Federal Reserve.
Os EUA pararam de imprimir cédulas de grande denominação em 1945 e, oficialmente, aboliram-nas em 1969, quando o Fed começou a retirá-las de circulação. Desde então, a cédula de mais alto valor disponível para o público possui um valor de face de $100. Porém, desde 1969, a política monetária do Fed fez com que o dólar se depreciasse em mais de 80%, de modo que uma cédula de US$100 em 2010 possuía o mesmo poder de compra que US$16,83 em 1969. Ou seja, US$100 em 2010 compravam menos que US$20 em 1969!
Não obstante esta enorme depreciação, o Fed tem resolutamente se recusado a emitir cédulas de denominação mais alta. Isto fez com que as transações com dinheiro vivo nos EUA se tornassem extremamente inconvenientes, obrigando o público americano a utilizar métodos eletrônicos de pagamento em uma escala muito acima da ótima. Mas é claro que esta é exatamente a intenção do governo americano. O propósito de sua contínua e crônica violação de antigas leis sobre privacidade financeira é fazer com que seja mais fácil monitorar as movimentações econômicas de seus cidadãos e abolir sua privacidade financeira, e tudo pretensamente para garantir sua segurança contra barões das drogas da Colômbia, agentes da Al Qaeda, sonegadores de impostos e outros nefastos criminosos do colarinho branco.
No entanto, parece que a guerra contra o dinheiro agora já começou a se espalhar para outros países. Como noticiado há alguns meses, a Itália reduziu o valor máximo permitido para transações em dinheiro vivo de €2.500 para €1.000. O governo italiano certamente teria preferido estipular um limite máximo de €500 ou até mesmo de €300, mas ponderou que deveria conceder aos italianos algum tempo para se ajustarem ao novo limite. A justificativa para a imposição deste limite no valor das transações em dinheiro vivo é o fato de que o perdulário governo italiano está tentando reduzir sua dívida de €1,9 trilhão, e considera que suas medidas antidinheiro são a melhor maneira de se combater a evasão de impostos, cujos "custos" o governo estima em €150 bilhões por ano.
A devassidão da classe política italiana contrasta acentuadamente com a frugalidade dos italianos em geral, que são os consumidores menos endividados da zona do euro, além de estarem entre seus maiores poupadores. A frequência com que os cidadãos italianos utilizam seus cartões de crédito é extremamente baixa em comparação aos cidadãos das outras nações da zona do euro. O dinheiro em espécie está tão profundamente arraigado na cultura italiana, que mais de 7,5 milhões de italianos nem sequer possuem contas bancárias. No entanto, estes italianos "sem bancos" serão agora obrigados a entrar no sistema bancário, e tudo para que o notoriamente corrupto governo italiano possa mais facilmente bisbilhotar suas atividades econômicas e invadir sua privacidade financeira. É claro que os bancos italianos, que cobram 2% sobre as transações com cartão de crédito e impõem tarifas sobre contas-correntes, irão obter fartos lucros com esta lei. Como corretamente observou o controverso ex-primeiro-ministro Berlusconi, "Há um enorme risco de isso se transformar em um estado policial fiscal". De fato, é só olhar para os Estados Unidos de hoje para ver o que está à espera dos cidadãos italianos.
Enquanto isso, a guerra contra o dinheiro na Suécia também segue acelerada, embora lá o envolvimento do estado seja menos evidente. Nas cidades suecas, dinheiro vivo não mais é aceito nos ônibus públicos; os bilhetes têm de ser comprados ou antecipadamente ou por meio de uma mensagem de texto via celular. Várias pequenas empresas recusam dinheiro vivo, e algumas operações bancárias pararam completamente de manusear dinheiro. Com efeito, em algumas cidades da Suécia não mais é possível utilizar absolutamente nenhum dinheiro em um banco. Até mesmo as igrejas começaram a facilitar doações eletrônicas de seus fieis instalando leitores eletrônicos de cartões. Transações em dinheiro vivo representam apenas 3% da economia sueca, ao passo que respondem por 9% da economia da zona do euro e 7% da economia americana.
Um proeminente defensor do movimento antidinheiro é ninguém menos que Björn Ulvaeus, ex-membro do grupo musical ABBA. O excêntrico pop star, cujo filho já foi assaltado três vezes, acredita que um mundo sem dinheiro vivo traria uma maior segurança para o público. Já outros, um pouco mais perceptivos que Ulvaeus, apontam para outra suposta vantagem das transações eletrônicas: elas deixam um rastro digital que pode ser prontamente seguido pelo estado. Assim, ao contrário de países que possuem uma forte cultura em prol do dinheiro vivo, como Grécia e Itália, a Suécia possui uma incidência muito baixa de suborno. Como nos instrui um "especialista" em economia informal: "Se as pessoas utilizam mais cartões, elas se envolvem menos em atividades econômicas obscuras". Em outras palavras, se as pessoas utilizam menos dinheiro vivo, elas não mais podem esconder sua suada renda em locais onde ela não pode ser pilhada pelo estado.
O vice-presidente do Banco Central da Suécia, Lars Nyberg, antes de se aposentar ano passado, regozijou-se dizendo que o dinheiro irá sobreviver "como um crocodilo forçado a ver seu habitat sendo gradualmente reduzido". Porém, nem todos na Suécia estão celebrando o destronamento do dinheiro. O presidente da Organização Nacional dos Pensionistas da Suécia afirma que as pessoas mais velhas e que moram em áreas rurais não possuem cartão de débito e de crédito; e as poucas que possuem não sabem como utilizá-los para sacar dinheiro. Oscar Swartz, fundador do primeiro provedor de internet da Suécia e um entusiasta da abolição do dinheiro vivo, argumenta em prol da adoção de métodos de pagamento anônimo dizendo que, sem eles, as pessoas que transferem dinheiro e fazem doações para várias organizações podem ser "rastreadas todas as vezes". Só que o que o sincero, porém ignorante, senhor Swartz não percebe é que este é exatamente o objetivo de uma economia sem dinheiro vivo — tornar os mais íntimos assuntos econômicos dos cidadãos transparentes para o estado e seus apparatchiks fiscais e monetários, sendo que estes odeiam e morrem de medo de sua própria transparência como vampiros em relação à luz do sol.
E há também os benefícios que serão colhidos pelo sistema bancário protegido e privilegiado pelo governo em decorrência da morte do dinheiro. Um pequeno empreendedor sueco habilmente constatou esta conexão. Ao passo que ele é cobrado 5 coroas (R$1,35) para cada transação feita com cartão de crédito, ele é impedido por lei de repassar este custo para seus clientes. Em suas palavras, "Para eles (os bancos), é uma ótima maneira de ganhar muito dinheiro. É a isso que tudo se resume: eles terem lucros enormes."
Felizmente, o livre mercado fornece a possibilidade de uma fuga deste onipresente estado policial fiscal que busca erradicar o uso do dinheiro por meio tanto da depreciação inflacionária feita pelo banco central (em conjunto com denominações inalteradas do valor de face das cédulas) quanto da limitação direta legal sobre o valor das transações em dinheiro. Como Carl Menger, fundador da Escola Austríaca de economia, explicou há mais de 140 anos, o dinheiro surge na economia não por meio de decretos governamentais, mas sim por meio de um processo de mercado conduzido pelas ações de indivíduos que continuamente buscam meios de realizar suas trocas econômicas da maneira mais eficiente possível. Frequentemente, a história nos fornece exemplos que ilustram esta constatação de Menger. A utilização de ovelhas, água engarrafada e cigarros como meio de troca nos vilarejos rurais do Iraque após a invasão americana e subsequente colapso do dinar é um exemplo recente. Outro exemplo foi a Argentina após o colapso do peso, quando contratos de cereais (para trigo, soja, milho e sorgo) precificados em dólares eram regularmente trocados por itens valiosos como automóveis, caminhões e equipamentos agrícolas. Com efeito, agricultores argentinos começaram a estocar cereais em seus silos como maneira de se proteger da depreciação do peso. O entesouramento de dinheiro depreciado foi substituído pela estocagem de grãos.
Como tem sido amplamente noticiado pela mídia americana recentemente, um inesperado surto criminoso rapidamente se difundiu por todo o país, surpreendendo todos os departamentos de polícia locais. O roubo do sabão líquido de lavar roupas da marca Tide se tornou uma pandemia em várias cidades dos EUA. Um sujeito sozinho roubou o equivalente a US$25.000 de sabão líquido Tide durante um período de 15 meses. Várias redes varejistas estão adotando medidas especiais de segurança para proteger seus estoques de Tide. Por exemplo, a CVS (rede de farmácia) passou a vender Tide separadamente, colocando o produto junto àqueles itens que são rotineiramente alvo de furtos, como remédios contra gripe, e que por isso ficam atrás do balcão. O preço do Tide líquido varia entre US$10 e US$20 por garrafa no varejo, ao passo que no mercado negro seu preço está entre US$5 e US$10. Como as embalagens de Tide não possuem números de série, é impossível rastreá-las. Sendo assim, alguns ladrões com tino empreendedorial estão fazendo arbitragem, comprando no mercado negro e revendendo para lojas varejistas, presumivelmente a preço de atacado. Ainda mais enigmático é o fato de que nenhuma outra marca de sabão líquido tem sido alvo de ataques.
Portanto, qual a explicação? Este fenômeno é apenas mais uma confirmação da constatação de Menger de que o mercado reage à ausência de uma moeda forte monetizando mercadorias altamente comercializáveis. Está claro que o Tide surgiu como uma moeda local para auxiliar transações no mercado negro, especialmente transações envolvendo drogas — mas também transações legais em áreas de baixa renda. De fato, relatos policiais afirmam que o Tide está sendo trocado por heroína e metanfetamina, e que traficantes possuem vastos estoques do sabão líquido, os quais eles também estão dispostos a revender. Mas por que um sabão líquido de lavar roupas está sendo empregado como dinheiro, e por que o Tide em particular?Menger identificou as qualidades que uma mercadoria deve possuir para se transformar em um meio de troca. O Tide possui a maioria destas qualidades e em ampla medida. Para que uma mercadoria se transforme em dinheiro em uma economia em que predomina o escambo, ela tem de ser amplamente utilizada, prontamente reconhecível e durável. Ela também tem de ter uma razão valor/peso relativamente alta, de modo que ela possa ser facilmente transportada. O Tide é a mais popular marca de sabão de lavar roupa e é amplamente utilizado por todos os grupos socioeconômicos. O Tide também é facilmente reconhecido por causa de sua inconfundível embalagem laranja com seu logotipo circular colorido e brilhante. Sabão de lavar roupa também pode ser estocado por longos períodos sem perder a qualidade e a eficácia. É verdade que o Tide é um tanto volumoso e inconveniente para ser transportado à mão em grandes quantidades; porém, uma quantidade suficiente pode ser carregada na mão ou em um carrinho de compras para transações pequenas, ao passo que quantidades maiores podem ser facilmente transportadas e transferidas utilizando-se automóveis.
Assim como a enormemente propagandeada guerra contra as drogas que os governos têm promovido — e perdido — por décadas, eles também estão condenados a perder sua sub-reptícia guerra contra o dinheiro, pois o livre mercado pode e irá responder à demanda dos cidadãos comuns por uma moeda confiável e conveniente.
Joseph Salerno é o vice-presidente acadêmico do Mises Institute, professor de economia da Pace University, e editor do periódico Quarterly Journal of Austrian Economics.
Tradução de Leandro Augusto Gomes Roque
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