Convencer população da Índia a pagar para ter água potável exige mudança comportamental
Amy Yee - Herald Tribune
Quando a noite cai em Chuddani, uma vila de cerca de 500 casas, as pessoas chegam em bicicletas, motocicletas, tratores e a pé, trazendo jarras que são enchidas com a água que sai de torneiras instaladas diante de uma bela construção azul. Dentro do prédio há uma unidade de filtração que remove da água subterrânea local produtos químicos, toxinas e bactérias. Sobre as torneiras, um cartaz escrito à mão em hindi diz: “Água é vida”.
Anand Sehwag, 27, um vendedor de tijolos, mora em Chuddani, uma cidade a 45 quilômetros de Nova Déli, com sua família de sete pessoas. Antes da construção da unidade de purificação de água, em 2009, Sehwag e seus familiares bebiam a água retirada pelas bombas da cidade. Eles sabiam que a água era impura, mas a bebiam assim mesmo. Ele conta que todos padeciam com frequência de cólicas, tosse e dores pelo corpo.
A água do lençol freático de Chuddani é repleta de impurezas. O nível total de partículas sólidas, de 1.850 miligramas por litro, é bem superior ao limite aceitável de 500 miligramas por litro, estabelecido pela Organização Mundial de Saúde. Já a água filtrada produzida pela unidade de purificação tem um nível de apenas 65 miligramas por litro.
Nos países do terceiro mundo, o fornecimento de água potável continua sendo um grande desafio de infraestrutura e saúde pública. Em 1990, cerca de 34% dos indianos não dispunham de água potável. Em 2008 esse número havia caído para 17%, segundo um relatório de 2011 do Ministério de Estatísticas da Índia. Entretanto, milhões de pessoas dentre a população de 1,2 bilhão de habitantes da Índia ainda não têm acesso a água potável.
Segundo o mesmo relatório, 76% da população indiana não tinha acesso a privadas higiênicas em 1990. Em 2008, essa percentagem havia caído, mas ainda era de 58%. E como os sistemas de esgoto e tratamento de resíduos são frequentemente primitivos ou inexistentes na Índia, a água, seja de poços ou de fontes de superfície, é facilmente contaminada com toxinas, incluindo o arsênico.
O acesso à água limpa é uma questão de saúde global urgente. A água impura pode provocar doenças como a febre tifoide, a hepatite e a cólera, bem como a diarreia, que mata 1,5 milhão de crianças a cada ano em todo o mundo --mais do que a Aids, o sarampo e a malária somados--, segundo dados da Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância).
Instalações de tratamento de água como a de Chuddani, construída e operada com o auxílio da Fundação Naandi, são uma forma de enfrentar esse enorme problema. A partir de 2005, a Naandi, que fica na cidade de Hyderabad, no sul da Índia, construiu 428 instalações similares em cinco Estados indianos: Andhra Pradesh, Punjab, Rajasthan, Karnataka e Haryana. As unidades de purificação de água da Fundação Naandi beneficiam 1,5 milhão de pessoas em toda a Índia.
A construção de cada centro de filtragem custa 1 milhão de rupias, ou cerca de US$ 20 mil, explica Gayitri Handanahal, uma supervisora nacional da Fundação Naandi em Bangalore. Governos estaduais e doadores empresariais financiam o equipamento e a construção. A Naandi trabalha em projetos de purificação de água em conjunto com a Danone Communities, uma unidade da companhia de laticínios francesa Danone que forneceu investimentos e tecnologia. Uma outra parceira na iniciativa é a Tata Projects, que fornece equipamentos de filtração por osmose inversa e ultravioleta --tubos enormes dotados de filtros que capturam partículas minúsculas e radiação ultravioleta para matar as bactérias.
Os sistemas de filtração são semelhantes àqueles instalados em várias residências da classe média indiana, sendo, entretanto, maiores, podendo filtrar até 2.000 litros de água por hora. Os panchatyats, os governos municipais da Índia, fornecem os terrenos para a construção dos centros de purificação, bem como a eletricidade e o acesso às fontes de água. Os Estados e os doadores arcam com o custo da tecnologia de filtragem, da construção dos prédios e de equipamentos como as bombas d'água e os tanques de armazenagem de 5.000 litros.
E os moradores também têm que fazer a sua parte. A Fundação Naandi cobra desses moradores --que ganham o equivalente a apenas uns poucos dólares por dia-- um valor entre 60 e 150 rupias (de US$ 1,20 a US$ 3) por mês, dependendo em parte do rendimento deles, pelo fornecimento diário de 20 litros de água potável. Essa taxa cobre o custo da Fundação Naandi com a manutenção das instalações e com o pagamento do salário de um operador municipal que trabalha em regime de tempo integral.
Durante uma entrevista em Nova Déli no mês passado, Handanahal disse que a mobilização de agências governamentais e doadores empresariais é viável. O maior desafio consiste em modificar os comportamentos --persuadir os moradores das vilas a beber água potável e a pagar por isso. Eles relutam em pagar, já que podem obter água gratuitamente das bombas e fontes. “É difícil modificar esses hábitos”, acrescentou ela, observando que os padrões de comportamento não parecem se basear em região geográfica, casta ou religião. Uma determinada vila pode mostrar entusiasmo pela água potável enquanto que uma outra pode manifestar relutância. “Cada vila é uma história diferente”, explicou Handanahal.
De acordo com Handanahal, os moradores das vilas acreditam que, como os seus antepassados beberam água das fontes, eles podem fazer o mesmo. Ela explicou que o que eles frequentemente não entendem é que a poluição, os pesticidas e a degradação ambiental contaminaram os lençóis freáticos no decorrer dos anos. Eles também não estão acostumados a ferver a água para tornar o consumo mais seguro em parte porque os combustíveis ou a lenha necessários para isso custam muito caro para os pobres. “Nós só fervemos a água quando alguém adoece”, explica Sehwag.
Na Índia existem vários métodos para a produção de água potável para os pobres, incluindo os filtros domésticos e centros comunitários, como as unidades de purificação da Fundação Naandi. Mas a disponibilidade é apenas parte do problema. Além dela há a questão da adequação, da aceitação, da acessibilidade e da disposição de pagar pela água. Os especialistas afirmam que a confiabilidade, a conveniência e a consciência são fatores críticos para a modificação do comportamento das pessoas.
“Não existe de fato um modelo universal”, explica Urvashi Prasad, diretor do escritório de Nova Déli da Michael e Susan Dell Foundation, que trabalha com vários projetos na Índia, incluindo o de fornecimento de água potável.
Se houver contaminação da água por metais pesados, a tecnologia de osmose inversa pode se mostrar efetiva, afirmou Prasad em uma entrevista por e-mail. Se o problema principal forem as bactérias, um filtro doméstico menor poderá ser suficiente. “É importante avaliar as condições locais para questões referentes à saúde e à viabilidade empresarial, de forma que não acabemos empregando uma tecnologia que seja mais cara e desnecessária”, disse Prasad.
Pagamentos diários inconvenientes também podem acabar desencorajando os usuários. Para superar esse problema, a Fundação Naandi cobra uma taxa mensal fixa. Os usuários recebem cartões que são perfurados todas às vezes que eles coletam 20 litros de água. Antes de construir uma central de tratamento, a Fundação Naandi determina se as exigências mínimas foram atendidas, incluindo o acesso adequado a eletricidade e água e uma quantidade mínima de 500 domicílios a serem beneficiados. Os funcionários da Naandi submetem os moradores das vilas a questionários a fim de determinar os seus hábitos de coleta de água, as suas condições de saúde e a disposição de pagar pela água potável.
E há outros desafios além da modificação de comportamento: a falta de energia elétrica é frequente, de forma que as unidades de purificação não podem operar continuamente. É preciso haver capacidade de armazenamento de água tratada suficiente para dois dias. Um teste fundamental de viabilidade é realizado a cada cinco anos, quando a Fundação Naandi, seguindo um “modelo de construção, operação e transferência”, transfere o gerenciamento das instalações para o governo municipal. Até o momento ela já transferiu o controle de dez unidades, e, segundo Handanahal, todas elas estão funcionando bem.
Um desafio enfrentado por todos os fornecedores de água potável é o fato de as fontes de água subterrâneas da Índia estarem secando devido à mudança do regime pluvial, à falta de sistemas de reposição de aquíferos e ao aumento da demanda de água por parte dos setores agrícola e industrial e da população que aumenta sem parar. Ned Breslim, diretor-executivo da Water for People, uma organização com sede em Denver, no Estado norte-americano do Colorado, diz que a preocupação com a extração da água de aquíferos fez com que governos e organizações passassem a dar atenção aos métodos de tratamento das fontes de água de superfície, como rios e lagos.
As tecnologias para o tratamento da água de superfície são muitas. “O desafio não é técnico, mas sim financeiro e gerencial”, disse Breslin em uma entrevista recente por e-mail. “As reservas de água poderiam ser administradas de forma a atender a grande demanda a preços acessíveis?”, questionou.
Após a Fundação Naandi obter o apoio dos governos das vilas e cidades, ela demora apenas cerca de um mês para construir um centro de purificação e instalar os equipamentos necessários. Mas pode ser necessário mais tempo para que o negócio deslanche. Quando a unidade de purificação de água de Chuddani foi criada, apenas 50 domicílios participavam do programa. Porém, após vários meses, mais gente aderiu. Atualmente, cerca de 250 famílias da vila utilizam a água da Fundação Naandi. Para cobrir os custos de manutenção e operação, uma central de purificação que cobre uma taxa mensal de 60 rupias necessita da participação de um mínimo de 200 domicílios.
Prasad, da fundação da família Dell, diz que o treinamento dos moradores para divulgar a notícia sobre a água potável mostrou-se mais eficiente do que deixar essa tarefa a cargo de um forasteiro de uma companhia ou organização privada. Rewari Khera, uma vila situada a quatro quilômetros de Chuddani, é um exemplo ilustrativo. Surender Singh, um eletricista de 45 anos de idade, costumava transportar água potável de Chuddani para a sua vila em um riquixá motorizado. Mas, atualmente, ele administra uma unidade de purificação de água na sua própria vila, e ganha por isso um salário mensal de 2.500 rupias --o que é mais do que ele recebia no emprego anterior.
No mês passado, em frente ao centro de tratamento de água, onde um búfalo se refugiava na sombra de uma pilha de esterco, Singh manuseava um colar que trazia ao pescoço com o retrato do seu guru. “Este é um bom trabalho, e eu estou fazendo um pouco de caridade”, disse ele com orgulho. “Estou fornecendo água limpa à vila”.
Tradutor: UOL
Nenhum comentário:
Postar um comentário