A dualidade do kirchnerismo
M. MARGOLIS - OESP
Hugo Chávez ou Lula? Capitalismo com social democracia ou puro bolivarianismo? Cristina Kirchner desafia os rótulos. Ora a mercurial presidente argentina encarna a administradora responsável, zelosa da saúde fiscal do país e assessorada por um ministério de medalhões. Ora sobe à sacada para bradar contra os imperialistas e declarar-se aos descamisados, um avatar perfeito de Eva Perón.
Para o aplauso geral, indicou para seu ministro da Economia o respeitadíssimo Hernán Lorenzino, aquele que ajudou a distender as relações estremecidas com os credores nacionais e, ano passado, ensaiara a volta do país aos mercados de capitais internacionais. Hoje seu conselheiro é o jovem acadêmico Axel Kicillof, de 40 anos, marxista devoto (estudou alemão para ler O Capital no original), com costeletas de milongueiro e aparentemente nenhuma gravata no guarda roupa.
Seria por influência de Kicillof, amigo de seu filho Máximo, que a presidente decidiu tomar o controle acionário da petroleira YPF. O governo acusou os donos espanhóis de preterir a prospecção de novos campos de petróleo e gás para privilegiar acionistas. A empresa admite ter remetido pelo menos US$ 3.5 bilhões em dividendos nos últimos cinco anos, contra investimentos de US$ 11 bilhões.
Os espanhóis não negam. Mas alegam que não tiveram opção frente aos malabarismos políticos do governo, que congelou os preços de energia, fez disparar o consumo e minou as receitas da empresa. Outrora exportador de energia, a Argentina importou 15% de suas necessidades energéticas no ano passado.
O confisco da empresa espanhola chocou pela ousadia e contrassenso, mas faz parte de um enredo já conhecido: discursar, intimidar e encampar. Na última década, o casal Kirchner - o estilo de Cristina se confunde com o de seu marido e antecessor, Néstor - passou a mão em um punhado de empresas. Reestatizou a Aerolíneas Argentinas e a companhia de água de Buenos Aires, privatizadas na década de 90. Nacionalizou também os bilionários fundos de pensão privados.
Para cercear a crítica, a Casa Rosada declarou o papel de jornal artigo de "interesse nacional" e passou a controlar a matéria prima da imprensa. Estatizou a estatística ao esvaziar o Instituto Nacional de Estatística e Censo e ameaçou processar quem divulgasse dados divergentes dos oficiais - leia-se maquiados.
O roteiro parece uma cópia fiel do governo de Hugo Chávez, mas a lógica kirchnerista não é a do "socialismo do século 21", tampouco subscreve o desenvolvimentismo como o motor essencial do crescimento nacional. Na cartilha de Cristina, a ideologia é o meio, não um artigo de fé. A meta é equilibrar-se no poder, distribuindo ativos entre compadrios e bondades aos eleitores. Se as benesses escassearem - com a inflação, a falta de energia ou a debandada de investidores - é só empunhar o microfone e criticar os inimigos.
O problema é que os discursos são remédio de efeito passageiro. No início do ano, o governo freou a queda de popularidade com a agressiva campanha para retomar as Malvinas do "colonialismo" britânico. Mas a ofensiva perdeu fôlego na Cúpula das Américas, quando Barack Obama deixou de abraçar o pleito e, com uma gafe típica do gringo distraído, chamou as ilhas de Maldivas.
Agora, os gringos são os espanhóis. A YPF já é argentina e cabe aos novos gestores, Kicillof e o ministro de Planejamento Julio de Vido descobrir o que a petroleira internacional não conseguiu: ressuscitar a produção decadente de petróleo e de gás no país. Só não se sabe qual trecho do Capital fala disso.
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