Rebeldes sírios aplicam lei islâmica para julgar e punir criminosos
Óscar Gutiérrez - El Pais
Nashuan Seij Ibrahim salta às pressas da cama e se senta na beira do colchão diante da chegada de convidados. Ele está detido na prisão de El Bab, cidade síria a 40 quilômetros ao norte de Aleppo. Tem 41 anos, mas aparenta pelo menos 20 a mais. É um cálculo generoso. Espigado, enxuto, mas grisalho e de olhos fundos, o réu foi detido por roubar um carro do Exército Livre da Síria (ELS) e tentar vendê-lo aos militares do regime. Diante da incredulidade de alguns presentes, ele afirma que não sabia a quem estava furtando. "Agora só espero o julgamento do tribunal religioso", disse, intimidado pelos responsáveis da prisão. As portas de seu quarto estão abertas. E assim continuarão quando ele ficar só.
A alguns quarteirões dali, as pessoas se amontoam na rua que agora todos chamam de "da Revolução". Homens, muitos homens, mulheres e crianças correm pelas calçadas e evitam os carros e motos no meio de uma gritaria excitada. São quase 7h30 da tarde, a hora do "iftar", a refeição com que os muçulmanos interrompem o jejum do Ramadã. Em uma esquina, um assador de frangos não dá conta de suprir a demanda. Há fome. A cor ocre das fachadas contrasta com o preto das roupas das mulheres que vão e vêm. Algumas usam o niqab, peça que só deixa os olhos à vista; outras, o chador, tecido que emoldura o rosto. Há apenas 15 dias o ELS controla El Bab. Mas o governo do islã nas ruas não é novo.
"As mulheres gostam de se cobrir porque respeitam a religião", afirma diligente Abdo el Omar, de 20 anos e encarregado de uma loja de telefones. Suas palavras se chocam com o minarete da mesquita centenária de El Bab, torre dos franco-atiradores do regime há apenas algumas semanas. Os mais jovens ousam dar a mão a uma mulher. Isso porque é ocidental. É minoria. Nenhum dos milicianos do ELS que se cruzam no caminho estende a mão para a jornalista que saúda. Tampouco o fazem seus companheiros civis. Da localidade fronteiriça de Azaz, no norte que leva à Turquia, à cidade de El Bab, de 150 mil habitantes (cerca de 50 mil a mais depois da onda de desalojados pela violenta batalha de Aleppo), o islamismo sunita, majoritário na Síria, adquiriu um poder que o presidente Bashar Assad - como já fizeram os déspotas da Tunísia e do Egito, tentou dominar.
"Oitenta por cento da população são sunitas", explica Ahmed Asad Ozman, 31 anos e diretor da prisão que encerra Nashuan Seikh Ibrahim. "E por isso se decidiu que seja aplicada a xariá [lei islâmica]", continua. Isso sim, esclarece ele mesmo em coro com os presentes - uma conversa a sós não deixa de ser uma tarefa árdua na Síria -, se aplica sem chegar aos extremos de "cortar mãos ou cabeças", como faz a versão mais rigorosa. O processo legal é o seguinte: alguém denuncia um crime; o ELS, que atua como exército e polícia, detém o culpado sempre e quando tiver provas, para o que pergunta a vizinhos e testemunhas: se houver indícios de culpa, o acusado entra em prisão. "Mas nunca se prende ninguém sem que haja uma acusação", interrompe Ahmed Asad.
O responsável pela prisão, que já foi comerciante de frangos, conhece o preço que custa confrontar a religião ao poder da família Assad. Quando tinha só 15 dias de vida, o regime levou seu pai em meio à revolta liderada pela Fraternidade Muçulmana no início dos anos 1980. Nunca voltou a vê-lo. Por isso Ahmed participa ativamente da revolução. "Os prisioneiros só estão aqui durante a investigação", continua. Se houver julgamento, são enviados para tribunais islâmicos. "Ontem mesmo foram transferidos aos tribunais de Marea dez réus", informa o responsável pela prisão. Entre eles havia membros do mukhabarat (serviço de inteligência). Ali os esperam juízes com formação religiosa (qualquer dos que podiam exercer antes e não tiver laços com o regime, pois a formação em direito obriga a conhecer a legislação secular e religiosa).
Mas quem os defende? "Não têm advogado, se defendem sozinhos", responde Ahmed Asad. Essa é uma particularidade notável da justiça islâmica. "Um julgamento islâmico se realiza em uma sala como esta", interrompe Omar Shabha, combatente de 21 anos, "conversando com o preso como estamos fazendo agora." E ser declarado culpado pode representar o maior dos castigos: a pena de morte. "Se um militar é detido e se prova que matou, exceto que seja contra sua vontade, ele é morto", esclarece Asad.
"Alguém terá que ajudar as sírias"
Um trator atravessa o caminho que leva a Televisão Rifat, a cerca de 40 quilômetros de Aleppo. Ao volante, uma mulher corpulenta vestida com um lenço e roupas coloridas. Amontoadas no trator, outras duas mulheres lhe fazem companhia. Dirigem-se aos solavancos para uma terra vasta batida por um sol inclemente. Elas são a exceção à vista do mundo sírio - masculino, machista, conservador e pouco amigo de se abrir à participação feminina. E a revolução não mudou isso. "Essas são as regras", afirma Omar, um jovem de 21 anos natural de El Bab e recém-chegado da batalha de Aleppo. "Deixamos as mulheres participarem, podem se manifestar custodiadas por homens", explica em um inglês requintado. Mas a verdade é que os protestos são coisa do passado. "Também há ativistas e mulheres mais velhas que cozinham para os rebeldes", continua Omar. E algumas o fazem nos arredores de Aleppo.
Precisamente da capital comercial síria estão fugindo centenas de cidadãos assediados pelos bombardeios. "As mulheres precisam de ajuda, sobretudo as mais pobres", afirma uma professora de árabe natural de Aleppo, sob a condição do anonimato. "Há muitas mulheres que vivem com problemas psicológicos por medo de seus maridos; quando acabar a guerra alguém terá que ajudar as sírias." A revolução só fez acentuar a invisibilidade que envolve as mulheres. "Há muitos homens que saem para se manifestar diariamente, mas suas esposas ficam em casa", continua essa professora. Com ou sem manifestações, a Síria é assim. "E assim sempre foi", insiste essa síria. "Pensam que combater é coisa para homens."
Não só é surpresa encontrar uma mulher no que os rebeldes chamam de Síria "liberada". Também o é para eles que alguém pergunte onde elas estão. A resposta é unânime: primeiro não estão; e segundo, são tempos de guerra. "Elas não são tão fortes", afirma Said, 27 anos, natural de Latakia. "Imagine se fosse preciso fugir ou correr", continua. "Além disso, as mulheres temem sofrer uma violação caso sejam capturadas."
Na retaguarda também não há rastro de mulheres. Os rebeldes contam com hospitais de campanha secretos. No interior de um deles, ao norte de Aleppo, cinco rebeldes jazem com ferimentos de balas e metralhadora. Aqui também não há mulheres na equipe médica, como tampouco no centro de abastecimento situado perto de Azaz.
Zacaria Ghrer, um ativista de 45 anos, resolve a questão: "Estiveram nos protestos pacíficos, mas não têm papel na luta armada. Embora agora haja ativistas e uma ou outra que ajuda a passar armas". São novamente a exceção.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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