O que faz um jornal durante o verão em um país onde quase todo mundo sai em férias ao mesmo tempo?
Como muitos jornalistas franceses (e suas fontes) viajam do final de julho até o final de agosto, e como muitos leitores também estão de férias e se sentem menos inclinados do que nunca a ler as reportagens publicadas diariamente sobre a melancólica economia europeia ou sobre a crise mundial, os jornais e revistas da França deixam de lado parte do noticiário para adotar uma escrita mais criativa.
Entre as reportagens oferecidas pelas publicações francesas neste verão, uma delas foi estrelada pelo filósofo iluminista Voltaire e outra pelo mais especial dos monarcas, Luís 14. Também foram publicadas uma série de "entrevistas" com compositores mortos há muito tempo e uma incursão por um tipo de ficção histórica um tanto esotérica, que abordava temas como "e se o embargo do petróleo de 1973 tivesse sido mantido por mais tempo?".
Em vez de recorrer a ataques de tubarão ou a escândalos envolvendo celebridades enquanto o país frita durante um período de férias que geralmente se estende por cinco semanas, a imprensa francesa utiliza o torpor sazonal para publicar matérias que entretêm com um toque literário --além de também manterem uma ligação por vezes tênue com a realidade.
"Nós temos férias muito longas aqui, e realmente não dá para trabalhar, não dá para encontrar nossas fontes habituais nesse período. Mas nós temos que preencher o jornal", disse Alexandra Schwartzbrod, editora-chefe adjunta do "Libération", diário de esquerda.
"Os leitores estão procurando algo diferente, algo mais leve", acrescentou ela.
Em vez de serem vistos como obscuros, os jornais que oferecem voos fantasiosos ou versões peculiares da história (neste verão, as publicações francesas trouxeram uma série sobre grandes autópsias e outra sobre impostores famosos) se dão bem. Uma leitura mais atenta permite perceber que algumas dessas matérias são altamente políticas, embora se mostrem menos dogmáticas do que os editoriais. Elas se aproveitam do gosto dos franceses por discutir livros e todo o tipo de questão intelectual.
Na França, enquanto as listas de best-sellers de ficção incluem o mais recente romance de Dan Brown, "Inferno", o livro de não-ficção mais bem cotado do momento é "A Summer With Montaigne" ("Um Verão Com Montaigne", em tradução livre), de Antoine Compagnon.
Neste verão, o jornal "Libération" publicou uma série de 40 ensaios de ficção histórica (o ano de 2013 marca o 40º aniversário da publicação) sobre como estaria o mundo --ou pelo menos a França-- se alguns eventos reais tivessem tido resultados diferentes.
Por exemplo: e se o político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen tivesse se tornado primeiro-ministro da França?
(Resposta: o aborto teria se tornado crime, a pena de morte seria reinstituída, os restos mortais de Philippe Pétain, que foi um herói da 1ª Guerra Mundial, mas que, em seguida, liderou o governo francês de Vichy, teriam sido desenterrados do cemitério próximo de sua última prisão e reenterrados ao lado dos de outros veteranos da 1ª Guerra Mundial.)
Outro ensaio analisou o que teria acontecido se o bug do milênio tivesse correspondido aos temores da população mundial. Os relógios teriam sido atrasados para 1900 e Marcel Proust conseguiria se comunicar com marinheiros franceses em um submarino nuclear --o texto tinha uma tolice e uma criatividade inéditas nos textos publicados pelos jornais norte-americanos. Apesar de essas serem conjecturas improváveis, a ideia era excitante e convidava o leitor a entrar em uma sala imaginária onde as pessoas têm o tempo e as referências adequados para usar sua imaginação por puro prazer.
"As pessoas leem o "Libération" em busca de ironia, de sátiras. Os cadernos de verão são uma maneira de criticar as coisas de uma forma lúdica", disse Eric Loret , editor do jornal, que ajudou a escrever os ensaios de ficção histórica.
O "Le Figaro", um jornal tido como um bastião da direita francesa, publicou uma série de ficção política em 17 capítulos. Os textos imaginam o atual presidente socialista, François Hollande, visitando o túmulo do ex-presidente socialista, François Mitterrand, no meio da noite, acompanhado pelo ex-presidente conservador Jacques Chirac.
No texto, Hollande explica a Chirac que ele foi encorajado pelo espírito de Mitterrand a dissolver a Assembleia Nacional, o que provocaria novas eleições legislativas. O caos político se seguiria. No final da série, chega-se à conclusão de que tudo foi uma grande brincadeira de Hollande, mas quando questionado sobre o que ele realmente pretende fazer para resolver os problemas da França, sua resposta é: "Eu não sei". Essa é uma forma de o "Le Figaro" escrever sobre a liderança de Hollande, que o jornal considera fraca.
Enquanto isso, a revista semanal do "Le Figaro" tem publicado "entrevistas" feitas por um escritor especialista em música com compositores mortos: Frédéric Chopin, Gioachino Rossini, Richard Wagner e Jacques Offenbach, entre outros.
No texto sobre Offenbach, o escritor tenta retratar a personalidade de Offenbach ao descrever o compositor como uma pessoa que interrompe constantemente a entrevista para falar sobre cantores com os quais ele está fazendo testes para a sua próxima opereta.
Os textos até trazem uma data que corresponde ao período de vida de cada compositor: 12 setembro de 1873 para Offenbach, que morreu em 1880.
Por trás de todo esse blá-blá-blá e dessa extravagância jaz uma diferença profunda entre o papel da imprensa francesa e o de sua homóloga norte-americana.
"Nós não temos uma imprensa popular na França", diz Erwann Gaucher, crítico de mídia que dirige os sites regionais da "France Télévision" e leciona na escola de jornalismo da Sciences Po em Paris, fazendo referência à imprensa destinada a um público amplo, como a que existe no Reino Unido e nos Estados Unidos. "Esses jornais franceses destinam-se a pessoas que claramente fazem parte de uma classe sócio-profissional superior".
"Há esse aspecto de se estar em um clube de pares durante o verão. Então, vamos falar sobre coisas bonitas, como em um clube de pessoas que gostam do Iluminismo", disse ele.
Para Loret, do "Libération", há uma espécie de expectativa, especialmente entre os bem educados da França, de que se deve conhecer um pouco da poesia de Victor Hugo, um pouco de Voltaire e um tantinho do trabalho de muitas outras figuras da literatura e da filosofia.
Como os jornalistas têm formações semelhantes às de seus leitores, esses temas soam como algo natural.
O "Le Monde", jornal de esquerda, mas que é visto como a publicação que melhor reflete o país, adotou uma abordagem um pouco mais pé no chão em relação à tradição das séries de verão este ano e publicou textos sobre "grandes autópsias", que incluíram Ludwig van Beethoven, Michael Jackson e Ötzi, a múmia de 5.000 anos encontrada em 1991 nos Alpes.
Gaucher vê todos estes esforços como um exemplo da predileção dos jornalistas franceses por se mostrarem inteligentes e literários, mas não necessariamente por produzirem o que pode ser considerado bom jornalismo em outros países.
"Há vários jornalistas na França que são escritores de maneira mais ou menos consciente, mas que não escrevem. Então, de repente, no verão eles têm um pouco de espaço e um pouco de tempo para tratar de temas que não são considerados jornalismo", disse Gaucher.
"Mas isso cria algo muito estranho: agora há tantas notícias quanto em qualquer outra época do ano, principalmente em relação ao Egito. Mas esse é o momento em que eles escrevem sobre 'os lugares mais bonitos da França' ou os 'grandes filósofos' ou os 'nossos antepassados, os gauleses'. É um negócio totalmente maluco."
Colaborou com a reportagem Aurelien Breeden.
Tradutor: Cláudia Gonçalves
Como muitos jornalistas franceses (e suas fontes) viajam do final de julho até o final de agosto, e como muitos leitores também estão de férias e se sentem menos inclinados do que nunca a ler as reportagens publicadas diariamente sobre a melancólica economia europeia ou sobre a crise mundial, os jornais e revistas da França deixam de lado parte do noticiário para adotar uma escrita mais criativa.
Entre as reportagens oferecidas pelas publicações francesas neste verão, uma delas foi estrelada pelo filósofo iluminista Voltaire e outra pelo mais especial dos monarcas, Luís 14. Também foram publicadas uma série de "entrevistas" com compositores mortos há muito tempo e uma incursão por um tipo de ficção histórica um tanto esotérica, que abordava temas como "e se o embargo do petróleo de 1973 tivesse sido mantido por mais tempo?".
Em vez de recorrer a ataques de tubarão ou a escândalos envolvendo celebridades enquanto o país frita durante um período de férias que geralmente se estende por cinco semanas, a imprensa francesa utiliza o torpor sazonal para publicar matérias que entretêm com um toque literário --além de também manterem uma ligação por vezes tênue com a realidade.
"Nós temos férias muito longas aqui, e realmente não dá para trabalhar, não dá para encontrar nossas fontes habituais nesse período. Mas nós temos que preencher o jornal", disse Alexandra Schwartzbrod, editora-chefe adjunta do "Libération", diário de esquerda.
"Os leitores estão procurando algo diferente, algo mais leve", acrescentou ela.
Em vez de serem vistos como obscuros, os jornais que oferecem voos fantasiosos ou versões peculiares da história (neste verão, as publicações francesas trouxeram uma série sobre grandes autópsias e outra sobre impostores famosos) se dão bem. Uma leitura mais atenta permite perceber que algumas dessas matérias são altamente políticas, embora se mostrem menos dogmáticas do que os editoriais. Elas se aproveitam do gosto dos franceses por discutir livros e todo o tipo de questão intelectual.
Na França, enquanto as listas de best-sellers de ficção incluem o mais recente romance de Dan Brown, "Inferno", o livro de não-ficção mais bem cotado do momento é "A Summer With Montaigne" ("Um Verão Com Montaigne", em tradução livre), de Antoine Compagnon.
Neste verão, o jornal "Libération" publicou uma série de 40 ensaios de ficção histórica (o ano de 2013 marca o 40º aniversário da publicação) sobre como estaria o mundo --ou pelo menos a França-- se alguns eventos reais tivessem tido resultados diferentes.
Por exemplo: e se o político de extrema-direita Jean-Marie Le Pen tivesse se tornado primeiro-ministro da França?
(Resposta: o aborto teria se tornado crime, a pena de morte seria reinstituída, os restos mortais de Philippe Pétain, que foi um herói da 1ª Guerra Mundial, mas que, em seguida, liderou o governo francês de Vichy, teriam sido desenterrados do cemitério próximo de sua última prisão e reenterrados ao lado dos de outros veteranos da 1ª Guerra Mundial.)
Outro ensaio analisou o que teria acontecido se o bug do milênio tivesse correspondido aos temores da população mundial. Os relógios teriam sido atrasados para 1900 e Marcel Proust conseguiria se comunicar com marinheiros franceses em um submarino nuclear --o texto tinha uma tolice e uma criatividade inéditas nos textos publicados pelos jornais norte-americanos. Apesar de essas serem conjecturas improváveis, a ideia era excitante e convidava o leitor a entrar em uma sala imaginária onde as pessoas têm o tempo e as referências adequados para usar sua imaginação por puro prazer.
"As pessoas leem o "Libération" em busca de ironia, de sátiras. Os cadernos de verão são uma maneira de criticar as coisas de uma forma lúdica", disse Eric Loret , editor do jornal, que ajudou a escrever os ensaios de ficção histórica.
O "Le Figaro", um jornal tido como um bastião da direita francesa, publicou uma série de ficção política em 17 capítulos. Os textos imaginam o atual presidente socialista, François Hollande, visitando o túmulo do ex-presidente socialista, François Mitterrand, no meio da noite, acompanhado pelo ex-presidente conservador Jacques Chirac.
No texto, Hollande explica a Chirac que ele foi encorajado pelo espírito de Mitterrand a dissolver a Assembleia Nacional, o que provocaria novas eleições legislativas. O caos político se seguiria. No final da série, chega-se à conclusão de que tudo foi uma grande brincadeira de Hollande, mas quando questionado sobre o que ele realmente pretende fazer para resolver os problemas da França, sua resposta é: "Eu não sei". Essa é uma forma de o "Le Figaro" escrever sobre a liderança de Hollande, que o jornal considera fraca.
Enquanto isso, a revista semanal do "Le Figaro" tem publicado "entrevistas" feitas por um escritor especialista em música com compositores mortos: Frédéric Chopin, Gioachino Rossini, Richard Wagner e Jacques Offenbach, entre outros.
No texto sobre Offenbach, o escritor tenta retratar a personalidade de Offenbach ao descrever o compositor como uma pessoa que interrompe constantemente a entrevista para falar sobre cantores com os quais ele está fazendo testes para a sua próxima opereta.
Os textos até trazem uma data que corresponde ao período de vida de cada compositor: 12 setembro de 1873 para Offenbach, que morreu em 1880.
Por trás de todo esse blá-blá-blá e dessa extravagância jaz uma diferença profunda entre o papel da imprensa francesa e o de sua homóloga norte-americana.
"Nós não temos uma imprensa popular na França", diz Erwann Gaucher, crítico de mídia que dirige os sites regionais da "France Télévision" e leciona na escola de jornalismo da Sciences Po em Paris, fazendo referência à imprensa destinada a um público amplo, como a que existe no Reino Unido e nos Estados Unidos. "Esses jornais franceses destinam-se a pessoas que claramente fazem parte de uma classe sócio-profissional superior".
"Há esse aspecto de se estar em um clube de pares durante o verão. Então, vamos falar sobre coisas bonitas, como em um clube de pessoas que gostam do Iluminismo", disse ele.
Para Loret, do "Libération", há uma espécie de expectativa, especialmente entre os bem educados da França, de que se deve conhecer um pouco da poesia de Victor Hugo, um pouco de Voltaire e um tantinho do trabalho de muitas outras figuras da literatura e da filosofia.
Como os jornalistas têm formações semelhantes às de seus leitores, esses temas soam como algo natural.
O "Le Monde", jornal de esquerda, mas que é visto como a publicação que melhor reflete o país, adotou uma abordagem um pouco mais pé no chão em relação à tradição das séries de verão este ano e publicou textos sobre "grandes autópsias", que incluíram Ludwig van Beethoven, Michael Jackson e Ötzi, a múmia de 5.000 anos encontrada em 1991 nos Alpes.
Gaucher vê todos estes esforços como um exemplo da predileção dos jornalistas franceses por se mostrarem inteligentes e literários, mas não necessariamente por produzirem o que pode ser considerado bom jornalismo em outros países.
"Há vários jornalistas na França que são escritores de maneira mais ou menos consciente, mas que não escrevem. Então, de repente, no verão eles têm um pouco de espaço e um pouco de tempo para tratar de temas que não são considerados jornalismo", disse Gaucher.
"Mas isso cria algo muito estranho: agora há tantas notícias quanto em qualquer outra época do ano, principalmente em relação ao Egito. Mas esse é o momento em que eles escrevem sobre 'os lugares mais bonitos da França' ou os 'grandes filósofos' ou os 'nossos antepassados, os gauleses'. É um negócio totalmente maluco."
Colaborou com a reportagem Aurelien Breeden.
Tradutor: Cláudia Gonçalves
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