quinta-feira, 8 de março de 2012

OTAN CRIOU O CAOS QUE AGORA REINA SOBERANO NA LÍBIA

Milícias se apoderam da Líbia e abusos de ex-rebeldes obscurecem imagem da revolução
Maite Rico - El País
Comunicar erro Imprimir Cobertos com o kefieh, o lenço de cabeça árabe, de fuzil em riste, os milicianos patrulham pelas cidades líbias com um orgulho evidente. Depois da queda de Muammar Gaddafi, esses combatentes civis se apoderaram do país. Seus compatriotas os querem e ao mesmo tempo os temem. São os heróis que acabaram com a ditadura e que, agora, por falta de polícia e exército, se encarregam da segurança. Mas ao mesmo tempo são responsáveis por abusos de poder, agressões e assassinatos. Os organismos de direitos humanos consideram as milícias uma ameaça para a nação que começa a se construir. Eles se apresentam como a única salvaguarda da revolução.
Toda noite, Saleh, Mansur, Ali, Asadik e os três Mohameds deixam seu quartel-general para patrulhar Trípoli. Antes eram, respectivamente, empregado em uma usina de gás, mecânico, professor de esportes, dependente, policial, comerciante e engenheiro. Hoje fazem parte das Forças de Proteção da Revolução, um novo corpo que integra milicianos e militares. Usam roupas civis, andam a bordo de veículos civis. Armados com pistolas e fuzis AK-47. "No início tínhamos choques com gaddafistas. Agora é mais crime comum", explica Saleh. "Durante a guerra, Gaddafi libertou e armou 25 mil criminosos. Capturamos a metade."
As Forças de Proteção da Revolução foram criadas há três meses pelo Ministério do Interior para organizar a segurança e frear o caos gerado pela multiplicação de milícias armadas. Sobretudo em Trípoli: os combatentes que vieram de outras cidades, como Zintan ou Misrata, para libertar a capital dividiram os bairros entre si e criaram feudos e não poucos problemas com suas escaramuças. Saleh e seus companheiros cumprimentam os milicianos com um sistemático "Alá é o maior" cada vez que cruzam seus postos. "Nos coordenamos, mas hierarquicamente estamos acima deles", diz.
Não é essa a impressão que dá Sadun al Suweilhi, chefe da brigada Misrata, instalada na antiga Academia Militar de Mulheres (as famosas amazonas de Gaddafi). "São as milícias que garantem a segurança deste país. Nós atuamos como exército e como polícia." Al Suweilhi e seus homens impõem a ordem em seu bastião em Trípoli. "Hoje os que criam mais problemas são os bandos africanos", diz, enquanto tira de uma caixa de sapatos uma sacola com pó branco. "Detemos principalmente nigerianos com heroína e cocaína." E jornalistas, se se meterem. Al Suweilhi tem em seu poder dois britânicos que trabalham para a televisão iraniana, os quais acusa de espionagem. Os pedidos das autoridades para que os libertem caíram no vazio.
Tentar fazer um organograma das milícias na Líbia é missão impossível. São centenas. Grupos de raiz local: vizinhos e parentes da mesma cidade ou do mesmo bairro. Há os islâmicos e os "laicos". Alguns não chegam a 50 combatentes, outros superam os 7.000. São federados em coalizões mutáveis. As autoridades calculam em 50 mil os civis armados. "Se em qualquer outro lugar do mundo os jovens tivessem a metade das armas que têm aqui, haveria confusão. Aqui não", surpreende-se Ashur el Shames, um porta-voz do governo. É verdade que os níveis de criminalidade são mínimos e que os choques entre milícias diminuíram. "Há um equilíbrio que funciona."
Sim, mas até quando? Ex-combatentes garantem que entregarão as armas quando houver um novo exército e um governo sólido à frente do país. Os olhares estão fixados nas eleições legislativas previstas para junho. De fato, os principais chefes de milícias já estão organizando partidos ou aliando-se com líderes políticos. A dúvida é se essas armas que hoje servem para defender a revolução serão usadas no futuro para resolver as lutas pelo poder.
Por enquanto, sem ninguém a quem prestar contas, as milícias dividiram o território, assumiram tarefas de polícia e de juiz e mantêm em seu poder cerca de 8.000 prisioneiros (entre eles Saif el Islam, filho e herdeiro de Gaddafi). A Anistia Internacional, Human Rights Watch e Médicos Sem Fronteiras denunciaram torturas e abusos "generalizados". Algo que conhece de primeira mão a família do advogado Omar Brebesh, ex-embaixador na França até 2008. Brebesh foi convocado em 19 de janeiro por uma milícia baseada em Trípoli. Tratava-se de uma "breve entrevista". Seu corpo foi encontrado no dia seguinte no necrotério de Zintan, a 150 km ao sul da capital. "Ferimentos múltiplos", dizia um relatório médico resumido. Brebesh tinha fraturas, as unhas dos pés arrancadas, queimaduras, cortes, golpes... "Morreu por causa das torturas", diz Bashir, seu filho mais velho, que estuda neurologia no Canadá.
Só movendo seus contatos a família conseguiu que o conselho militar de Zintan detivesse a brigada. Seu chefe, Khaled al Blehzi, era um dos criminosos libertados por Gaddafi. "Dizem que o mataram por ser gaddafista, mas na realidade pretendiam ficar com os dois veículos e os bens da família", explica seu filho. A família se sente desamparada. "Nenhum advogado quer cuidar do caso, por medo. O promotor geral não moveu um dedo. O vice-ministro das Relações Exteriores me disse que não querem problemas com as milícias. A mídia do país se recusa a publicar algo. Quando a HRW o denunciou, começaram a nos insultar e a difamar meu pai", explica Bashir, que acusa de "hipocrisia" as novas autoridades. "Reuni-me com Mustafa Abdelyalil, o presidente do Conselho Nacional de Transição, e ele me disse que haveria justiça. E três dias depois declarava à rede Al Jazira que as denúncias de torturas eram rumores não confirmados."
O governo provisório tenta conter excessos que prejudicam a imagem da revolução líbia. No momento está organizando a incorporação dos milicianos às futuras forças de segurança. Cerca de 1.500 voluntários se preparam na Jordânia e serão a primeira promoção da nova polícia. Enquanto isso, as patrulhas mistas recebem cursos acelerados de direitos humanos. Resta tudo por fazer em um país que carrega 42 anos de brutalidade e muitas contas para acertar.
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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