Nacionalismo no DNA
O patriotismo argentino é como o gênio da lâmpada: aparece e desaparece conforme o desejo do amo de plantão
Christian Carvalho Cruz - O Estado de S.Paulo
Ai, ai... como dói uma Argentina. No semblante da presidente Cristina Kirchner, a enlutada, o mesmo pesar, o mesmo sofrimento, a mesma desgraça do dia em que Néstor morreu. Motivos outros, mas idênticas expressões de pura tristeza e toxina botulínica. A miséria d’alma presidencial na segunda-feira se devia a mais um sacrifício, fazer o quê?, pelo povo argentino. Roupa negra, ares nada buenos e um desenho de Eva Perón pendurado ao fundo, Cristina anunciava a renacionalização da petroleira YPF, privatizada em 1993. "Isso é uma política de Estado que deve unir os argentinos", foi como ela explicou à nação que seu governo retomava da espanhola Repsol o controle da companhia, por se tratar de setor de "interesse público e nacional". Aos trabalhadores da YPF - menos os executivos espanhóis, que tiveram 15 minutos para abandonar seus cargos e escritórios - ela implorou: "Ajudem a reconstruir essa grande empresa". E, no projeto de lei mandado ao Congresso (a aprovação pela maioria governista é pule de dez), sugeriu que 51% das ações da petroleira pertencentes aos espanhóis sejam expropriados. Sem choro nem vela e tampouco leveza no coração, porque dói, como dói. Com os 25% que estão nas mãos de milionários investidores locais, pero, ninguém mexe.
"Uma decisão terrível, o fim de uma longa relação de amizade", queixou-se o ministro de Relações Exteriores da Espanha, José Manuel García-Margallo. "A expropriação envia um sinal negativo aos investidores internacionais e poderá prejudicar seriamente o ambiente para negócios na Argentina", ressaltou a porta-voz da União Europeia, Catherine Ashton. "O governo argentino deverá pagar o que deve. Os tribunais são muito obstinados frente a barbaridades desse tipo", declarou o presidente da Repsol, Antonio Brufau. À fúria dos lamentosos, Cristina baixou seus olhinhos pesadamente maquiados: "Esta presidente não vai responder a ameaças nem a frases insolentes". E contou com o apoio de seu jovem vice-ministro da Economia, Axel Kicillof, o mentor do tango YPF: "Idiotas são os que pensam que o Estado deve ser estúpido e cumprir o que a empresa pede". A Repsol quer US$ 10,5 bilhões. Kicillof diz que as dívidas da empresa já dão quase isso: US$ 9 bilhões. Sem contar o "passivo ambiental" que, se doer demais, ele vai cobrar.
Entre um passo e outro dessa dança, diz o historiador argentino Luis Alberto Romero, autor de História Contemporânea da Argentina (Zahar, 2006), boas oportunidades para se entender a Argentina deste terceiro mandato presidencial da dinastia Kirchner - o segundo de Cristina. Para ele, a tomada da YPF esconde de tudo um pouco: corrupção, incompetência do governo e mais uma tentativa de se resgatar o nacionalismo argentino. Uma cortina de fumaça, para usar expressão da moda. Professor da Faculdade Latino-americana de Ciência Sociais, da Universidade Torcuato Di Tella e pesquisador chefe do Conselho de Pesquisas Técnicas e Científicas da Argentina, na entrevista a seguir Romero destrincha Cristina, detona a silenciosa e desarticulada oposição, explica por que, como Kassab, a presidente não é de esquerda nem de direita nem de centro e calcula o que resta ao kirchnerismo para se manter no poder sem um Kirchner: "Resta uma reforma constitucional que aprove o subterfúgio do parlamentarismo".
Antes de se tornar presidente, Néstor Kirchner apoiou a privatização da YPF feita por Carlos Menem em 1993. O que está por trás da reestatização promovida agora por sua viúva e sucessora, Cristina Kirchner?
Por um lado há uma tentativa de levantar uma nova bandeira nacionalista, como no recente caso dos 30 anos da Guerra das Malvinas. O nacionalismo está instalado no subconsciente de todos (ou quase todos), e é muito fácil fazê-lo emergir ou submergir. Como um Aladim e o gênio da lâmpada. É um grande instrumento político, bastante útil para a conjuntura, embora depois todo mundo se lamente dos resultados. Basta lembrar o apoio que os argentinos deram à invasão das Malvinas em 1982. Além do nacionalismo, com a nacionalização da YPF pretende-se tirar as atenções do Boudougate (o vice-presidente, Amado Boudou, é investigado por suposto tráfico de influência e lavagem de dinheiro no caso envolvendo a empresa Ciccone, que imprime cédulas e documentos oficiais). Utilizar cortinas de fumaça é um estratagema conhecido desse governo. E, por fim, eles talvez estejam colocando as mãos naquilo que acreditam ser um saco de dinheiro para cobrir o déficit fiscal.
Por que esse governo precisa tanto levantar bandeiras nacionalistas?
Todos os governos o fizeram, salvo o de Raúl Alfonsín. É um instrumento de poder. No caso dos peronistas, está inscrito em seu DNA. Trata-se de um movimento que se define como povo e como nação.
Para alguns analistas, nacionalizações no setor de energia facilitam o uso político de cargos e, por causa disso, as empresas acabam perdendo produtividade e competitividade. Para outros, a gestão de recursos estratégicos como o petróleo deve ser do Estado, para que os lucros da operação permaneçam no país.
Qual sua opinião?
Uma coisa é falar em geral de um Estado que funciona bem, e outra muito diferente é referir-se a este Estado argentino, que está semidestruído e completamente subordinado ao governo. Uma destruição sistemática e deliberada que começou em 1976 com o Processo de Reorganização Nacional conduzido pelo ministro da Economia do regime militar, José Alfredo Martínez de Hoz. Ali têm início a abertura econômica e a redução da participação do Estado como instrumentos aplacadores das tensões políticas e sociais. Essa destruição, que hoje se nota particularmente nas agências reguladoras, no funcionalismo público e na falta de normas, foi então praticada por todos os governos dali em diante - exceto novamente por Alfonsín, que, por outro lado, se não ajudou a destruir, também não fez muito para reverter o processo. Por isso, não esperemos por administradores competentes na YPF. Teremos prepostos de autoridades como o secretário de Comércio, Guillermo Moreno, que só pensa em como resolver o problema do dia.
Ouve-se que o governo esconde os reais índices de inflação, e que esse é o maior problema econômico argentino hoje. E fora da economia, que problemas o país enfrenta?
Um governo que assumiu o controle de todos os meios de poder. E uma oposição que não consegue encontrar uma forma de enfrentá-lo. Depois disso, um cidadão mal informado - resultado da decadência do sistema educacional e do empobrecimento da sociedade - que vive o dia e apoia um governo que, acredita ele, de qualquer forma é melhor que o possível caos.
E quem é e como se organiza a oposição?
Ela vai muito mal. Não encontra um ângulo para enfrentar um governo que dispõe, até agora, de uma grande quantidade de dinheiro para fazer populismo e se apresenta com um discurso populista. A ala progressista da oposição - radicais, socialistas - não sabe como se opor a coisas que aparentemente são dignas de apoio, como a estatização da YPF, mas que na prática são ruins. Seu problema é não ousar dizer o que tem que ser dito, pois teme ser acusada de pouco patriotismo. E então há (o empresário centro-direitista) Mauricio Macri, prefeito de Buenos Aires, que tem dois pontos fracos: não possui uma estrutura partidária fora da capital e é um bocado parvo. Sua única chance é conseguir se alavancar junto a um setor descontente do peronismo.
No primeiro mandato, Cristina enfrentou agricultores e a mídia. Neste começo de segundo, uma empresa estrangeira. Quais as diferenças entre um mandato e outro?
Existe um esquema único, e vão mudando os objetivos. É um discurso que coloca de um lado o governo, o povo e a nação; de outro, o inimigo, que é um e são muitos, e que se pode adaptar conforme a conjuntura. É um recurso discursivo conhecido e clássico. Quem busca alguma lógica nele não o entende, mas a luta de discursos é assim mesmo.
A morte de Néstor tornou impossível a alternância de cônjuges na presidência, uma característica do kirchnerismo segundo a escritora Beatriz Sarlo. Com Cristina impedida de se candidatar novamente, como anda o plano de poder do kirchnerismo?
O peronismo nunca pôde solucionar o problema da sucessão, como fez, por exemplo, o PRI no México. A alternância matrimonial parecia uma boa alternativa. Agora, para seguir em frente, só lhes resta uma reforma constitucional que aprove o subterfúgio do parlamentarismo. Boudou, o vice, é um incompetente que teve uma ideia genial: estatizar o AFJP, sistema de administradoras de fundos de previdência privada do país. Axel Kicillof, o vice-ministro de Economia e uma das mentes por trás da nacionalização da YPF, estamos conhecendo agora. No momento, quem maneja tudo é Guillermo Moreno, que utiliza métodos de quadrilha e obtém bons resultados de curtíssimo prazo. Porém, esse é justamente o problema: o atual governo só pensa em curtíssimo prazo. É uma inversão histórica. Neste momento estamos em clara decadência frente aos países latino-americanos com os quais sempre nos comparamos. Em tudo: desenvolvimento (não só crescimento econômico), igualdade social, reconstrução do Estado, índices de educação, segurança e saúde... Tudo.
A sociedade aceitaria uma reforma pelo parlamentarismo?
Imprevisível. Mas os partidários do fortalecimento das instituições republicanas deveriam estar teoricamente de acordo. Porém, sabem que é só um engodo para solucionar o problema da sucessão e que um regime parlamentarista governado pelos peronistas seria igual ao atual, só que com presidência vitalícia. E assim como no caso da YPF, os adversários tendem a cair na armadilha do discurso oficial.
Como interpretar o luto que Cristina mantém em eventos oficiais? E também o fato de ela sempre aparecer acompanhada de uma gravura de Eva Perón ao fundo?
O luto funcionou bem nos primeiros dias entre a morte de Néstor e a eleição dela. O mesmo vale para as alusões que Cristina faz ao marido nos discursos, como "ele me guia", "ele me ajuda". Tudo isso certamente a ajudou a construir um "discurso", uma tentativa de se criar um mito. Mas tenho a impressão de que já deixou de impressionar, porque ela agora faz coisas e toma decisões completamente distintas da administração de Néstor. Ela está muito distante da própria herança. As diferenças começam com a substituição de colaboradores diretos de Néstor. Depois, fortes mudanças em relação a determinados assuntos. O caso YPF é um exemplo: Néstor, no passado, apoiou a privatização. E, finalmente, a ruptura com aliados que foram importantes para ele, como a Confederação Geral do Trabalho (a maior central sindical do país) e grupos empresariais. Foram muitas rupturas. E as novas alianças ainda não estão claras.
Um prefeito aqui no Brasil criou um partido que ele jura não ser de direita nem de esquerda nem de centro. Cristina é de quê?
Difícil situá-la politicamente. Pessoalmente, acho que as categorias "direita" e "esquerda" não são muito úteis hoje, pois estão carregadas de sentidos diferentes de sua origem. Porém, e isso é clássico na América Latina, o populismo trata de se colocar acima dessas dicotomias.
Então, quer dizer que este atual governo argentino é populista e nada mais.
Populista diz pouco. Ele é peronista, da variante do segundo peronismo, que se caracteriza, entre outras coisas, por utilizar o poder do povo para construir novos ricos - de maneira legítima e não sub-reptícia. Como escrevi num artigo recente, esse peronismo, nas suas práticas e palavras, passou a ocupar os dois polos do discurso populista. São igualmente valiosos um povo alimentado por clientelismo e uma oligarquia formada por "amigos do poder", generosa com os recursos do Estado. O mais assustador é que, apesar dessa ambiguidade, seus enunciadores atuais conseguem conservar a tensão entre os dois polos e manter aceso o conflito irredutível que é a chave do seu êxito. É uma obra-prima da arte política. Dr. Jekyll e Mr. Hyde.
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