Sobre os direitos do consumidor, ou: a volta dos que não foram
Valéria Pugliesi Washington - IMB
O consumidor é o chefe-supremo.
Helio Beltrão
Os consumidores são impiedosos.
Eles não consomem com o intuito de beneficiar um produtor pouco eficiente ou de protegê-lo contra as consequências de sua incapacidade de gerenciar melhor.
Eles, os consumidores, querem ser servidos da melhor forma possivel. E o funcionamento do sistema capitalista força o empresário a obedecer às ordens ditadas pelos consumidores.
Ludwig von Mises
(in) Burocracia, p. 37 (trad. minha)
O livre mercado no Brasil não existe e acho que nunca existiu para valer. Leia em voz alta as afirmativas acima: soam como utopia ou mesmo absurdo no "país de tolos" nomeado por Millôr. Nossos consumidores são tão impiedosos quanto a velhinha de Taubaté ou minha tia Irene.
Misto de ladrão legalizado e babá, com muito sucesso o estado vem convencendo os indivíduos de que não há futuro ou recompensa em se contrapor aos produtores de bens e fornecedores de serviços (seus comparsas e financiadores) senão for por meio dele, o estado, esse vendedor de indulgências. Leis que protegem o produto nacional, aumentos de sobretaxas sobre produtos importados, revisão de acordos internacionais de comércio, confisco de mercadorias trazidas do exterior, código de defesa do consumidor, tribunal de pequenas causas, tudo isso faz parte deste trabalho de convencimento, este trabalho de diminuição do indivíduo.
Ninguém se deu conta ainda: nada há por que comemorar como sendo um aperfeiçoamento da relação de consumo quando o estado multa um estabelecimento por não ter o exemplar do código de defesa do consumidor. Onde multar a companhia aérea por atrasos contribui para melhorar seu atendimento dos passageiros? Seja na venda de produto defeituoso, seja prestação de serviço aquém do anunciado e cobrado, a multa não altera em absolutamente nada a situação do indivíduo, tampouco soluciona seus problemas. Mas alguém se beneficia da multa! O dinheiro da multa vai para o estado. O consumidor, a mansa vaquinha de presépio, vai ter que providenciar papelada, reunir provas, contratar advogado, arrumar tempo e paciência, para ir recuperar seu prejuízo — ou não — porque de pata de cavalo e cabeça de juiz nunca se sabe o que esperar. O juiz é mais um agente do estado onipresente.
Que grande falácia é o estado e que ingenuidade a do consumidor, que compra a idéia de que a presença de uma cópia de um código ineficiente lhe garante bom serviço ou um produto de qualidade. A defesa do consumidor não precisa, não pode e não deve ser administrada pelo estado: a relação de consumo é uma relação bilateral: consumidor e fornecedor, onde três é demais. E essa intrusão é ainda mais injustificada porque é justamente o estado que mais espolia o consumidor: basta que se analise o quanto se embute de impostos de qualquer esfera de governo na simples compra de qualquer produto ou serviço.
Imposto, tributo, taxa, confisco e multa são os nomes dados ao puro e simples roubo — ou, como dizia Rothbard, em resumo, agressão. Mudam os nomes porque esse agressor tem suporte legislativo e judiciário, que confere "legalidade" às extorsões que comete.
Mas e o lado babá? O estado-babá trabalha para diluir a responsabilidade individual, regula o que se come, bebe e fuma, e determina quem vai receber o quê, pois sabe o que é melhor para todos — tal e qual a mágica Mary Poppins, que "nunca explica nada". O principal objetivo do estado-babá é manter a sociedade infantilizada, fragilizada, e, principalmente, ignorante do poder do consumidor, o qual é chamado por Beltrão de chefe-supremo e por Mises é considerado impiedoso. O estado tem que continuar infantilizando o indivíduo, porque crianças — supostamente — não sabem escolher entre o certo e o errado e nem devem aprender a fazê-lo — assim continuarão indefinidamente dependentes.
Henry David Thoreau disse que o preço de qualquer coisa equivale ao quanto de vida alguém "troca" por essa coisa.
O consumidor decidiu que o preço pago por um bem ou serviço valia a quantidade de seu dinheiro que ele se mostrou voluntariamente disposto a trocar no ato de consumo: pagou e levou, pagou e usufruiu e foi, por qualquer motivo, frustrado em sua expectativa, ludibriado em sua boa fé. Só lhe resta uma ótima defesa e essa não deveria jamais incluir o estado, nem de raspão. A única defesa efetiva do consumidor é a manobra de "180 graus" ou "u-turn". O produto não presta, o serviço está abaixo da crítica? Consumidor, dê meia volta, saia do estabelecimento e não volte nunca mais! Em tempos de estado-babá, eu tenho ouvido mais e mais indivíduos desencorajados, dando de ombros, dizendo que "não adianta nada".
Quanto mais exigente o consumidor, mais o fornecedor vai se esforçar em atrair, agradar e mantê-lo. Os estabelecimentos comerciais, industriais e de serviços de qualquer porte só existem e continuarão existindo enquanto existirem e continuarem existindo consumidores de seus produtos e serviços. Nesta relação a dois, a melhora na qualidade do que é oferecido só vai acontecer por meio da crítica (construtiva ou não) de quem consome, e o respeito ao consumidor só vai acontecer a partir do momento em que ele respeitar a si mesmo. Nenhuma dessas duas coisas acontece da noite para o dia, nem se dá por via de coerção de leis, códigos, regulamentos ou multas, mas começam — e terminam — no consumidor.
Precisei de alguns anos vivendo nos Estados Unidos para me acostumar com esses conceitos e aprender como funciona o processo, dentro de minha ótica mais prática. Dois exemplos disso:
1) O lixo também é um produto. Em algumas cidades, a coleta de lixo é feita pela administração pública, com a cobrança de uma taxa específica pelo serviço. Em outros lugares, a coleta de lixo é exercida livremente pela atividade privada, sem qualquer limitação de território. As companhias de coleta competem em tudo para conseguir mais clientes: preço, quantidade e tipo de lixo recolhido e dia da semana em que se dá a coleta. O estado apenas interfere na escala de dia de coleta, para evitar problemas de circulação. Três serviços básicos de coleta de lixo compõem o que elas oferecem: reciclável, residual residencial e residual de jardinagem.
Mudei de endereço recentemente. Quatro companhias servem minha nova área. Não preciso de coleta de lixo de jardim, mas meu lixo reciclável é sempre enorme: bastou escolher a que recolhia mais lixo reciclável, com melhor preço. Na primeira coleta, recolheram os recicláveis, mas o caminhão que coleta o lixo comum "pulou" minha casa — são dois caminhões diferentes. Liguei para a companhia no dia seguinte e reclamei. Uma hora mais tarde, um caminhão passou e recolheu o lixo residencial; duas horas mais tarde, ligou o atendente que recebeu a reclamação, perguntando se eles já haviam recolhido. Na manhã seguinte, um supervisor me ligou para perguntar sobre o atendimento ao cliente. Não há nada de especial, nem de diferente nisso: é uma constante na indústria de serviços quando a competição é grande.
2) Farmácias também concorrem por cada receita que possam receber. E todas as ofertas valem, sem limitação, sem interferência da babá. Uma farmácia oferece antibióticos de graça, exigindo apenas a receita médica. Outras farmácias têm listas de remédios para condições mais comuns, como pressão alta e diabetes, por quatro dólares por um mês ou dez para três meses. Os remédios são os mesmos para todas as farmácias e existem milhares delas. Em um jogo disputadíssimo como esse, quem leva a melhor?
Para cada consumidor, levará a melhor a farmácia que lhe oferecer o melhor negócio pelo quanto ele pode e quer pagar. Minha filha toma um remédio que custa mais de quinhentos dólares por mês, mas com seguro-saúde o custo cai para somente quarenta dólares. Um dia, fui buscar o remédio e o atendente me pediu para esperar antes de entregá-lo, pois a gerente da farmácia queria me ver. Ela queria me comunicar que havia conseguido com o fabricante do remédio um cupom, com validade de 18 meses, para que eu não pagasse absolutamente nada. Fiquei surpresa e muito agradecida, mas a atitude da gerente não era apenas pessoal. Com esse cupom, ela garante que por 18 meses eu vou atravessar toda a loja para chegar até o balcão da farmácia propriamente dita e eventualmente consumir mais produtos ou simplesmente checar o inventário. Ela aposta que, por uma questão de praticidade, outras receitas que eu tiver, também levarei para aquela farmácia, como de fato acontece. Ela está induzindo o meu consumo, isso não é prática maliciosa ou enganosa, chama-se livre mercado, chama-se capitalismo.
Nesses dois casos e em qualquer outro, se nada der errado, as chances de o problema ser resolvido na primeira reclamação são altas. Se não for resolvido na hora, alguém em um nível hierárquico superior entrará em contato para resolver o assunto. Se a solução não satisfizer o consumidor ou o ressarcimento for insuficiente, geralmente a última instância é um processo, mas o que as companhias temem mesmo é a opinião pública contra si.
Em tempos de redes sociais, de sentenças de "morte" com 140 toques, as grandes empresas têm contratados que monitoram a web com programas especiais, os web bots, que detectam qualquer menção ao nome da companhia: se for um problema, a companhia procura o consumidor imediatamente.
Não estou advogando que o estado, aqui nos Estados Unidos, não seja estado agressor e estado-babá, mas o livre mercado ensinou ao consumidor americano o seu lugar: ele tem uma noção muito clara de que, sem ele, nada sai do chão, e as empresa sabem muito bem disso. Na ótica estatista da cultura brasileira, a relação "bilateral" de consumo, passou a ser de antagonismo: o consumidor é o "coitadinho", que não conhece seu poder, o fornecedor é o "vilão", porque visa lucro. Fossem esses dois um casal, o estado seria a sogra. É hora de se colocar no centro do palco o personagem principal da economia em uma sociedade de indivíduos livres: o consumidor, em torno de quem tudo deverá girar. Sem nunca ter tido a experiência de viver o livre mercado, o brasileiro vai ter que buscar um roteiro escrito por si mesmo, sem a babá interferindo, para se tornar um consumidor em plenitude.
O consumidor é o chefe supremo. Pense nisso, não é uma idéia absurda nem utópica, é fato, é realidade. Respeite-se e exija ser respeitado pelo fornecedor, não porque existe um código, mas porque é você quem tem o dinheiro de que ele precisa para sobreviver. Não está satisfeito? Não recebeu de acordo com o quanto pagou? Saia e não volte mais a esse fornecedor. Lembre-se de que pode encontrar a mesma coisa ou até melhor em algum outro lugar. Um consumidor com a atitude correta pode fazer toda a diferença e todos os consumidores deveriam tentar. A imensa maioria dos brasileiros precisa recuperar o respeito próprio e entender que o estado, longe de ser a solução para os seus problemas, é, por si só, mais um problema, o maior deles talvez.
Valéria Pugliesi Washington é brasileira, mora nos EUA desde outubro de 2008 e trabalha no ramo de narrações, gravações, traduções e respostas eletrônicas interativa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário