A linha vermelha de Israel: Destino das armas químicas sírias pode provocar uma guerra
Ronen Bergman, Juliane Von Mittelstaedt, Matthias Schepp e Holger Stark - Der Spiegel
Enquanto a batalha contra os rebeldes sírios chega a um novo estágio, Israel está preocupado com a possibilidade do presidente Assad usar seu vasto arsenal de armas químicas contra seu próprio povo e vizinhos –ou até mesmo dar parte dele ao Hizbollah. Apesar de muitos especialistas considerarem isso improvável, Israel está avaliando se ataca ou não.
O pequeno vilarejo de Buqata fica localizado no lado israelense da fronteira que se estende pelas Colinas de Golan. Daqui, é possível ver uma grande extensão do território sírio. Bem no pé da colina fica Jubata al Khashab, uma cidade a apenas 55 quilômetros a sudoeste de Damasco, a capital da Síria.
Todo dia, centenas de israelenses preocupados se reúnem ao longo do arame farpado na fronteira e usam binóculos para espiar seus vizinhos em Jubata al Khashab, que recentemente foram alvo de fogo de artilharia. Nuvens espessas de fumaça se erguiam dos prédios de apartamento dali.
A guerra está próxima e, sempre que um ditador árabe cai, a ansiedade se espalha por Israel: será que a queda do tirano arrastará o Estado judeu e talvez toda a região para o caos? Esse medo já existia em 2003, quando os Estados Unidos e seus aliados atacaram o Iraque e derrubaram Saddam Hussein. A história foi semelhante com a queda do líder líbio, Muammar Gaddafi e, até certo ponto, com a queda do presidente do Egito, Hosni Mubarak. Agora, esse medo foi reaceso.
Na última quinta-feira, o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, viu o governante sírio, Bashar Assad, a caminho da queda e considerou que preparativos para uma “nova era” estavam em andamento. Mas o regime em Damasco anunciou batalhas decisivas na luta contra os rebeldes –em Aleppo, a maior cidade do país, próxima da fronteira turca.
Na semana passada, Assad posicionou milhares de soldados no norte para retomar essa cidade de 2 milhões de habitantes, onde 5.500 oponentes do regime estariam entrincheirados. Uma batalha decisiva em Aleppo, um antigo centro de comércio e cuja cidade velha é um Patrimônio da Humanidade da Unesco? Victoria Nuland, a porta-voz do Departamento de Estado dos Estados Unidos, alertou posteriormente contra um “massacre” iminente.
Cenários horríveis
Aleppo fica a cerca de 400 quilômetros das Colinas de Golan, mas os israelenses reforçaram as barreiras na fronteira nos últimos dias e enviaram soldados adicionais para a área. Eles também temem que uma onda de refugiados atravesse pela fronteira para Israel.
“Nós podemos ver os combates daqui, os morteiros; nós podemos ouvir os ecos das balas da batalha entre o exército sírio e os grupos rebeldes. A 200 metros ao sul nós podemos ver a ONU, e 800 metros a oeste há a cerca da fronteira. Isso mostra o quanto a desintegração do regime está longe de abstrata; ela é real e está chegando cada vez mais perto.” Foi assim que o ministro da Defesa de Israel, Ehud Barak, descreveu recentemente a situação. Ele disse que Israel precisa estar preparado para cada cenário.
Em Jerusalém, é possível imaginar vários deles. Por exemplo, um cenário de horror no qual terroristas poderiam atacar Israel com foguetes, inclusive das Colinas de Golan, em meio ao caos geral. Mas os líderes militares estão ainda mais preocupados com as armas químicas do regime sírio. Elas poderiam ser levadas para o Líbano pelo Hizbollah ou cair nas mãos de terroristas na Síria. Ou, como último recurso, Assad poderia lançar mísseis armados com gás venenoso contra Israel, assim como contra a Jordânia e a Turquia.
Por outro lado, vendo que a Síria não fez nenhum disparo contra Israel em três décadas, por que o país recorreria agora ao uso de armas químicas? De fato, especialistas em Jerusalém são incrivelmente unânimes em sua avaliação de que um ataque direto é improvável. Mas isso não impediu Israel de realizar exercícios de simulação de ataque com gás venenoso em Haifa, e o número de israelenses pegando máscaras de gás nos centros de distribuição quase dobrou nos últimos dias.
Há um medo profundo da reação irracional dos déspotas sempre que a sobrevivência deles está ameaçada. Armas químicas já foram usadas inescrupulosamente na região em mais de uma ocasião. Nos anos 60, o Egito usou bombas com gás venenoso durante a intervenção do Cairo na guerra civil do Iêmen. E nos anos 80, Saddam Hussein usou gás venenoso contra soldados iranianos durante a Guerra Irã-Iraque –e matou um grande número de sua própria população.
“Assim que o Hizbollah botar suas mãos em armas químicas, alguém os ensinará como usá-las”, diz Isaac Ben Israel, o ex-chefe do departamento de pesquisa das forças armadas israelenses. “Os iranianos e os sírios já os ensinaram como lançar mísseis de longo alcance.”
Uma enorme infraestrutura de armas químicas
Também é provável que os americanos e seus aliados estejam se preparando para proteger os mísseis, gases venenosos e sistemas de armas modernas no caso de um colapso do regime Assad. Em maio, sob liderança americana, 12 mil soldados de 19 países treinaram na Jordânia para uma missão conjunta. Essa força certamente seria pequena demais em caso de uma operação militar plena na Síria. Segundo um estudo interno do Pentágono, 75 mil soldados seriam necessários apenas para colocar os depósitos de armas químicas sob controle.
Os depósitos de armas químicas estão entre os locais mais protegidos de toda a Síria. O exército de Assad controla barreiras nas estradas de acesso quilômetros antes dos portões, e os próprios depósitos são protegidos por dois anéis de cercas protetoras e guardas. Os soldados responsáveis pela proteção dessas instalações estão entre os apoiadores mais leais do regime. Uma das instalações fica a nordeste de Damasco, outra perto de Homs, e uma terceira –onde o agente nervoso VX, sarin e tabun são supostamente fabricados– fica localizada perto de Hama.
As duas principais instalações ficam nas cidades de Masyaf e al Safir, no norte da Síria, onde munições químicas são produzidas e mísseis Scud e rampas de lançamento ficam posicionados. Segundo o “Jane’s Intelligence Review”, uma revista britânica voltada para assuntos de segurança global, o Irã ajuda os sírios em várias dessas instalações. As instalações de produção e armazenamento são operadas pelo Centro de Estudos Científicos e Pesquisa, que emprega mais de 10 mil pessoas. Os relatórios sobre a extensão do arsenal químico variam muito, mas estimativas conservadoras obtidas pelo governo alemão o colocam em aproximadamente 1.000 toneladas.
Localizado em um vale a cerca de 20 quilômetros a sudeste de Aleppo, o complexo de Al Safir seria a maior e mais importante instalação de armas químicas de toda a Síria. Três instalações de produção operam em uma área que cobre cinco quilômetros quadrados. Al Safir não é uma base militar comum. Em seus cantos no nordeste e no noroeste, ela é protegida por mísseis antiaéreos de fabricação russa, que supostamente oferecem ampla proteção contra ataques aéreos. Uma foto por satélite de 2008 revela as posições das instalações de radar e rampas de lançamento.
Conexões russo-sírias
A Síria provavelmente começou a produzir armas químicas nos anos 80. A ideia original era empregá-las em caso de uma guerra com Israel. Posteriormente, a intenção passou a ser de usar as armas apenas para dissuasão.
Elas consistiam inicialmente de bombas cheias com gás sarin e projetadas para serem jogadas por aviões. Ogivas para mísseis Scud também foram posteriormente desenvolvidas, e agora acredita-se que a Síria tenha cerca de 700 dessas armas. Segundo fontes da inteligência israelense, grande parte da perícia veio da União Soviética e da antiga Tchecoslováquia, mas empresas privadas do Japão e da Europa Ocidental também teriam ajudado os sírios.
Em meados dos anos 90, a Síria supostamente conseguiu fabricar o VX –o agente nervoso mais tóxico de todos. Um russo teve um papel importante aqui: o general Anatoly Kuntsevich, o homem que o ex-presidente russo Boris Yeltson nomeou nos anos 90 como conselheiro nos esforços para eliminação de armas químicas.
Moscou é a maior aliada da Síria desde os anos 60. Até o colapso da União Soviética, o Kremlin forneceu ao seu Estado satélite no Oriente Médio armas convencionais no valor de cerca de US$ 26 bilhões, incluindo aeronaves, tanques e mísseis Scud.
Moscou sempre negou categoricamente que Damasco também recebeu armas químicas. “A União Soviética não costumava exportar armas de destruição em massa para o exterior ou armas químicas”, diz Igor Korotchenko, presidente do Conselho Público do Ministério da Defesa e editor-chefe da revista “National Defense”.
Mas em 1963, logo após o Partido Baath socialista tomar o poder em Damasco, o Kremlin lançou um abrangente programa de treinamento. Mais de 50 mil estudantes sírio frequentariam as universidades soviéticas, incluindo 9.500 que estudaram em academias militares
Nos anos 90, os russos ainda posicionavam agentes de inteligência nas Colinas de Golan e no norte da Síria. Kuntsevich, o emissário de Yeltsin, entrou no país em várias ocasiões durante esse período. O especialista em armas químicas supostamente estabeleceu conexões com importantes membros do regime sírio, recebeu grande quantidade de dinheiro deles e, em troca, forneceu detalhes sobre como fabricar o VX. Ele também teria enviado 800 litros de produtos químicos para a Síria, necessários para a produção do gás venenoso.
Os esforços israelenses para atrapalhar a produção de armas químicas
Os israelenses estavam preocupados. Mas em 3 de abril de 2002, Kuntsevich –um ganhador do Prêmio Lenin e, mais recentemente, um funcionário do Instituto Zelinsky de Química Orgânica, em Moscou– morreu em um voo de Damasco para Moscou. As circunstâncias de sua morte permanecem misteriosas, juntamente com a inscrição em sua lápide no Cemitério Troyekurovskoye, no oeste de Moscou, onde a data de sua morte está marcada como sendo 29 de março.
A morte de Kuntsevich é tão obscura quanto a morte de Yuri Ivanov. O vice-chefe da GRU, o serviço de inteligência militar estrangeira da Rússia, morreu em meados de 2010, supostamente após um acidente enquanto nadava na Síria.
Há especulação de que o Mossad, o serviço de inteligência estrangeira de Israel, pode ter estado por trás das mortes de ambos os homens. Além disso, um dossiê confidencial da CIA compilado durante os últimos anos da vida de Kuntsevich chega à conclusão alarmante de que a Síria conseguiu produzir grandes quantidades de armas químicas.
Também permanece um mistério o que aconteceu em 25 de julho de 2007, no depósito de armas químicas de Al Safir. Naquele dia, um acidente ocorreu na linha de produção dos componentes para o gás venenoso, uma instalação construída em conjunto pelos sírios e pelos norte-coreanos. Um dos canos de abastecimento da instalação estourou –e em questão de segundos toda a instalação estava em chamas. A explosão foi tamanha que as portas foram arrancadas do prédio, fazendo o gás escapar e se espalhar por todo o complexo. A explosão teria matado 15 sírios e 10 engenheiros iranianos que estariam no local no momento.
Investigações conduzidas por uma equipe nomeada por Assad concluíram que o incidente deve ter sido resultado de um ato de sabotagem. Um ministro israelense descreveu posteriormente de modo irônico que a explosão de Al Safir foi um “acidente maravilhoso”.
Até então, os israelenses achavam que sabiam mais ou menos a extensão dos esforços da Síria para produção de armas químicas. Mas em fevereiro de 2010, a linha vermelha foi atravessada pela primeira vez, quando a inteligência israelense avistou um comboio de caminhões que partiu de Al Safir e cruzou a fronteira para o Líbano.
Os israelenses presumiram que se tratava de uma carga de componentes de mísseis Scud destinada ao Hizbollah. O primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, foi orientado a lançar ataques aéreos contra o comboio. Apesar de ter decidido contra isso, ele repassou a informação aos americanos. Em 1º de março, o embaixador sírio em Washington foi convocado ao Departamento de Estado americano, onde foi deixado claro para ele que, devido ao risco real de guerra, os Estados Unidos esperavam que a Síria evitasse armar o Hizbollah.
Caso o Hizbollah já conte com sistemas de armas não convencionais posicionados na vizinha Síria há algum tempo para protegê-lo de ataques israelenses, então seria aconselhável ao mundo permanecer vigilante. De fato, abandonar essas armas porque a linha de fornecimento pela Síria provavelmente seria cortada representaria uma grande perda para a organização terrorista. No momento em que Assad for derrubado, o Hizbollah e a Guarda Revolucionária Iraniana provavelmente optariam por transportar essas armas para o Líbano. Isso, por sua vez, seria um motivo para Israel ir à guerra
Protegendo as armas químicas
Diante dessas circunstâncias, não causa surpresa que os serviços de inteligência israelenses estejam monitorando atentamente cada movimento em torno das instalações conhecidas de armas químicas sírias, como a de Al Safir.
Poucas semanas atrás, eles notaram que o exército sírio começou a evacuar um de seus depósitos de armas químicas em um campo de aviação militar perto de Homs. Caminhões vazios entraram no depósito e foram carregados. Parecia que todo o estoque estava sendo transferido para outro lugar. Segundo conclusões da Bundesnachrichtendienst (BND), a agência de inteligência estrangeira da Alemanha, VX e sarin foram transferidos durante o transporte.
Todavia, não há sinais de que Assad pretende usar gás venenoso no atual conflito militar. Em vez disso, há muitos indícios de que o regime está transferindo essas armas arriscadas para a região deserta no leste. Essa suposição também é apoiada pelo fato de o governo ter reforçado enormemente as medidas de segurança em todas as instalações militares, substituído alguns dos destacamentos militares e colocado alauitas leais ao regime em posições-chave.
Mas o debate foi alimentado pelos relatos que o Mossad enviou para vários parceiros semanas atrás, incluindo o governo alemão. O Mossad alertou que o Hizbollah pode já estar de posse de algumas partes do arsenal químico, e argumenta que Assad enviou as entregas iniciais ao Líbano por caminhão como uma espécie de apólice de seguro.
A notícia causou sensação no mundo dos serviços de inteligência –mas provavelmente não é verdadeira. Qualquer um que pretenda usar gás venenoso altamente avançado precisa de especialistas treinados e sistemas de lançamento. Até agora, não há sinais de que o Hizbollah possui essas capacidades ou de rampas de lançamento de Scuds no Líbano.
E do ponto de vista político, os motivos para não praticar tamanha transferência de tecnologia superam os benefícios esperados. Assad estaria usando sua carta mais forte e talvez a última; ele armaria o líder do Hizbollah, Hassan Nasrallah, que há muito se emancipou da influência de Damasco –sem saber se o Hizbollah agiria de acordo com os interesses do ditador. Já ficou dolorosamente aparente que a milícia xiita está mantendo um perfil incrivelmente discreto diante da luta de Assad pela sobrevivência. Se, quando e como Nasrallah usaria as armas químicas é incalculável –até mesmo para Assad.
Cruzando a linha para a guerra
Enquanto isso, há relatos de inteligência circulando por todas as capitais da Europa dizendo que os sírios já prepararam parte de seu gás venenoso para uso. Segundo esses relatos, armas químicas individuais estão sendo preparadas para combate, restando apenas montá-las nos sistemas de lançamento, como um míssil Scud ou uma aeronave especial de transporte militar. Mas ninguém pode dizer quão críveis ou confiáveis são esses vários relatórios de inteligência.
O ministro das Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman, e o primeiro-ministro Netanyahu reafirmaram na semana passada que seria um “casus belli” se armas químicas caíssem nas mãos do Hizbollah. Ao dizer que nem Israel e nem os Estados Unidos poderiam aceitar isso, Netanyahu confirmou indiretamente a especulação de que os Estados Unidos poderiam dar a Israel carta branca para atacar um comboio do Hizbollah transportando armas químicas da Síria para o Líbano.
“Se tivermos informação de que o Hizbollah ou a Al Qaeda estão prestes a botar as mãos em armas não convencionais, nós não pouparemos esforços para impedir isso”, acrescenta Danny Yatom, um ex-chefe do Mossad. Ele acrescenta que até mesmo ataques aéreos contra depósitos de armas não estão descartados se o Hizbollah estiver prestes a botar suas mãos em gás venenoso.
Isso foi confirmado na semana passada por um alto oficial em Jerusalém: “Se os sírios prepararem seus mísseis, os armarem com ogivas químicas ou os deixarem para o Hizbollah, isso seria visto como um motivo para atacar a Síria –mesmo que levasse à guerra. Um país precisa manter suas linhas vermelhas”.
Tradutor: George El Khouri Andolfato
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