sábado, 26 de janeiro de 2013

O eclipse da razão britânica
O Reino Unido – pátria do pragmatismo e do realismo, um país de princípios imperturbáveis e dotado de uma adaptabilidade incomparável, tendo desistido estoicamente do seu império após defender com êxito a liberdade da Europa contra a Alemanha nazi – perdeu o rumo. Mais precisamente, deixou-se desviar pela fantasia ideológica do Partido Conservador de que certos poderes da UE podiam e deviam ser devolvidos à soberania britânica.
Os interesses nacionais do Reino Unido não mudaram e, no seio da UE, não se registaram quaisquer alterações fundamentais contrárias a esses interesses. O que mudou foi a política interna da Grã-Bretanha: um primeiro-ministro sem força suficiente para controlar os seus cerca de 100 deputados antieuropeus (uma "High Tea Party", por assim dizer) na Câmara dos Comuns e um establishment conservador com receio de uma ascensão por parte do Partido da Independência do Reino Unido, que poderia custar aos Conservadores votos à direita em número suficiente para conferir aos Trabalhistas uma vantagem eleitoral.
Cameron afirma que não pretende que o Reino Unido abandone a UE. Mas a sua estratégia de "renegociação" da relação do Reino Unido com a UE, seguida de um referendo britânico relativo ao novo acordo, é o produto de duas ilusões: a primeira traduz-se no facto de Cameron considerar que poderá garantir um resultado positivo e a segunda ilusão assenta na ideia de que a UE terá capacidade e estará disposta a ceder às pretensões de Cameron.
Na verdade, há uma boa razão para acreditar que essa possibilidade assumiria uma dinâmica própria, conduzindo, possivelmente, a uma saída indesejada da UE por parte do Reino Unido. Esta situação constituiria um grave revés para a UE; e para os britânicos, deambulando pela história, seria um verdadeiro desastre.
É claro que a Grã-Bretanha sobreviveria fora da UE, mas a qualidade da sua existência já é outra questão. Com a saída da UE, o Reino Unido iria prejudicar seriamente os seus interesses económicos, perdendo tanto o mercado único como o papel que desempenha Londres como centro financeiro. A saída prejudicaria igualmente os interesses geopolíticos da Grã-Bretanha, quer a nível da Europa (onde, ironicamente, favorece o alargamento da UE), quer a nível mundial, relativamente à posição global que ocupa e à relação especial que tem com os Estados Unidos (que tornou clara a sua preferência por um Reino Unido europeu).
Infelizmente, o historial de Cameron em termos de política europeia não inspira confiança na sua capacidade de gerir um resultado diferente. Quando, em 2009, ordenou aos eurodeputados conservadores que se retirassem do Partido Popular Europeu, o grupo europeu das forças políticas de centro-direita, privou simplesmente os Tories – agora relegados para assentos junto aos sectários e obscurantistas – de qualquer influência no Parlamento Europeu. Ao enfraquecer a posição do Reino Unido na UE, acabou por fortalecer os eurocépticos dentro do seu partido.
Mas, embora Cameron devesse saber, por via da experiência desagradável, o que está iminente, parece que abandonou as considerações racionais. Na verdade, a convicção de que a UE iria renegociar os termos da relação com a Grã-Bretanha – que, além disso, parte do princípio que a Alemanha não se oporia – toca as raias do pensamento mágico. Esse precedente seria aplicável a outros Estados-membros, o que significaria o fim da UE.
Com o devido respeito ao Reino Unido, o desmantelamento da UE como o preço a pagar pela continuidade da pertença do país à Comunidade é uma ideia absurda. Cameron deve reconhecer que a sua estratégia não poderá ser permitida (mesmo que receie que algumas correcções cosméticas ao tratado não o ajudem a nível interno).
Entretanto, os conservadores arriscam-se a perder o rumo numa matéria fundamental (a remodelação da relação entre os membros da UE pertencentes à zona euro e os não pertencentes à zona euro), caso tentem utilizá-la como alavanca para renegociar os vários tratados europeus. A Grã-Bretanha está ciente de que a sobrevivência do euro exige uma maior integração política e tem igualmente consciência de que o papel que Londres desempenha como centro financeiro (tão importante para o Reino Unido como é a indústria nuclear para França e a indústria automobilística para a Alemanha) seria fortemente prejudicado caso o euro falhasse.
Apesar de ninguém estar a contar com uma adesão dos britânicos ao euro nos tempos mais próximos, a liderança política na UE requer o discernimento de ter em conta os interesses centrais do próprio país e os dos outros Estados-Membros, sem cair em ameaças. Este aspecto, no entanto, exige uma compreensão adequada desses interesses e uma vontade de cooperar com base na confiança mútua, que deveria ser uma dádiva no seio da família europeia.
Os discursos, especialmente quando proferidos pelos líderes de grandes nações, podem revelar-se úteis, irrelevantes ou perigosos. O discurso de Cameron sobre a Europa, há muito planeado, foi adiado várias vezes. Talvez Cameron devesse ter considerado esses adiamentos como um sinal de que deveria repensar a sua posição.
Ainda vai a tempo de o fazer, antes que seja tarde demais. O melhor ponto de partida seria uma nova leitura do famoso discurso proferido por Winston Churchill em Zurique, em 1946. "Temos de construir uma espécie de Estados Unidos da Europa", exortou o maior estadista da Grã-Bretanha do século XX. Até à data continua a ser esta a nossa missão, bem como a da Grã-Bretanha.
Tradução de Teresa Bettencourt/Project Syndicate
Joschka Fischer, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e Vice-Chanceler entre 1998 e 2005, foi líder do Partido Verde Alemão durante cerca de 20 anos

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