quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O papelório do prefeito garante que não havia nada de errado na boate assassina
Augusto Nunes - VEJA
Nascido há 60 anos em Santa Maria, onde sempre viveu, Cezar Schirmer conhece rua por rua, prédio por prédio a cidade que governa. Reeleito em outubro, o prefeito teve mais de quatro anos para conhecer página por página, linha por linha a legislação municipal concebida para impedir que aconteça o que aconteceu. Político profissional há 40 anos, o ex-vereador, ex-deputado estadual, ex-deputado federal e ex-secretário de Estado sabe que, quando algum episódio ameaça a sobrevivência eleitoral, a culpa é sempre dos outros.
Se é que nunca entrou na Kiss, o prefeito cansou-se de ver o caixote comprimido pelos edifícios vizinhos que já foi fábrica de cerveja antes de virar boate pronta para fabricar massacres. Schirmer também conhece as normas que determinam a interdição ou o fechamento de casas noturnas que não dispõem de saídas de emergência adequadamente sinalizadas. A Kiss tinha uma única porta, pela qual entraram e deveriam ter saído mais de 200 vítimas de homicídio culpado. Os fiscais da prefeitura deveriam vistoriar o local regularmente. Se olhassem por alguns segundos as paredes e o teto, notariam que o dono do lugar resolvera enfeitá-los com material inflamável.
Nessa hipótese, o serial killer que explorava baladas seria obrigado a exercitar a ganância criminosa em outro ramo. E Schirmer não estaria lastimando a tragédia que nada fez para evitar. “Nunca chorei na minha vida, e agora choro toda hora”, repetiu nesta quarta-feira. Para não ter de chorar também a perda do mandato ou a morte nas urnas, o oficial graduado do PMDB gaúcho tenta terceirizar os pecados que cometeu.
Segundo o chefe da administração municipal, as investigações policiais, que já mandaram para a cadeia o dono da Kiss, devem concentrar-se no Corpo de Bombeiros, que deveria ter feito o que o prefeito e seus fiscais não fizeram. Só não têm culpa no cartório os suspeitos homiziados na prefeitura, jura Schirmer. Confira o palavrório em dilmês de bombacha abaixo transcrito (sem correções):
“Estou rigorosamente convencido de que, nas questões que envolvem a prefeitura, os documentos estavam formalmente e rigorosamente aptos para o funcionamento da boate. Os documentos da prefeitura estavam em ordem no dia da tragédia. Sobre outros documentos e questões, não posso opinar. Se há normas técnicas que não estão certas, se o prédio tem de ter cinco portas, se a lei é estadual ou federal… Houve uma vistoria em abril de 2012, que atestava que a boate estava apta para funcionamento. Os dois fiscais que fizeram a vistoria comunicaram que o alvará de incêndio venceria em agosto. O plano não foi renovado, segundo os bombeiros’.
Enquanto a cidade segue estacionada na madrugada apocalíptica, Schirmer caça álibis o tempo todo. Enquanto milhares de eleitores enfrentam a insônia sem remédio, o eleito empilha vigarices com firma reconhecida em cartório. Santa Maria só consegue pensar na dor que não passa. Ele já pensa na próxima eleição ─ e, amparado nos documentos que juntou, garante que estava tudo em ordem na boate assassina. A tragédia só aconteceu por não ter lido a papelada do prefeito.

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