O Irã entre o martírio e a diplomacia
Roger Cohen - IHT
O Oriente Médio é um lugar onde a sorte das pessoas muda rapidamente hoje em dia. Basta perguntar ao primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan. Pouco tempo atrás, o neo-otomanismo era a denominação em voga para descrever a expansão da influência regional da Turquia, exercida sob o arrebatador dogma de "zero problemas com nossos vizinhos".
Mas, atualmente, há zero vizinhos sem problemas na região. A Síria é o primeiro deles. As violentas reprimendas de Erdogan em relação à supressão da Irmandade Muçulmana no Egito e ao tratamento da oposição sunita na Síria têm o ar das explosões desequilibrados de um homem solitário cujo islamismo moderado se transformou em uma fúria desmedida.
Talvez Erdogan, cuja indignação não é infundada, pudesse se beneficiar dos conselhos de um vizinho seu, o Irã. A rápida mudança iraniana envolveu a adoção repentina da "flexibilidade heroica".
A frase, usada pelo líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei, em um discurso recente proferido para a Corporação dos Guardas da Revolução Islâmica, foi reforçada na Organização das Nações Unidas pela defesa iraniana da "moderação prudente". Essas palavras improváveis foram proferidas pelo presidente Hassan Rowhani – que foi educado na Escócia, um reduto dos valores do Iluminismo – parecem ter tido um impacto sobre ele.
Ou, pelo menos, isso é o que parece. A sanidade está no ar no Irã após as guinadas apatetadas do extravagante Mahmoud Ahmadinejad. Rowhani e o presidente Obama quase se encontraram em Nova York – uma chance perdida por tão pouco mas que, pelos padrões de afastamento entre iranianos e norte-americanos nos últimos 34 anos, conta como uma aproximação radical. A esperança se agita, mais uma vez, para que haja um avanço nas relações entre EUA e Irã – um avanço das mesmas proporções daquele que Nixon promoveu em relação à China.
Mas a volatilidade que reina atualmente no Oriente Médio é tamanha, e tamanho é o labirinto de espelhos que existe em Teerã hoje em dia, que se recomenda extrema cautela. Como os iranianos dizem: "Nem tudo que é redondo é uma noz" – e nem toda a forma de "flexibilidade heroica" pode ser considerada um ramo de oliveira. O Irã sempre opera em pelo menos duas correntes; fazer o contrário seria simplista. Sua religião xiita permite, em algumas circunstâncias, a distorção da verdade para a proteção da fé, o que constitui uma dissimulação divinamente sancionada. Esta é uma terra onde a conversa franca e direta e a virtude não são valores que se sobrepõem.
Hoje as duas corrente centrais adotadas pelo Irã estão evidentes. A primeira é a comunicação estabelecida por Rowhani, sua rejeição ao extremismo , seus comentários conciliatórios (e contestados) em relação aos judeus, e sua afirmação categórica de que "as armas nucleares e outras armas de destruição em massa não têm lugar no sistema de segurança do Irã nem em sua doutrina de defesa".
A segunda corrente se resume ao grande envolvimento da elite da Guarda Revolucionária na defesa do déspota sírio Bashar al-Assad e à atual campanha multifacetada do comandante da Força Quds (que está ligada à Guarda revolucionária), Qassim Suleimani, que convocou o Hezbollah para a Síria e combate sob a ampla e, muitas vezes assassina, bandeira da resistência aos Estados Unidos, a Israel e ao Ocidente.
A maneira como Khamenei administrará essas duas correntes distintas terá uma influência decisiva sobre se os atuais agrados trocados entre EUA e Irã levarão a algum lugar.
O líder supremo do Irã tem dois modelos de saber xiita a sua disposição: a conciliação do segundo imã xiita, Hassan ibn Ali, que escolheu a paz em vez da guerra após o assassinato de seu pai, em 661, ou o sacrifício heroico de seu irmão mais novo, Hussein, que lutou até a morte contra o impossível. Khamenei tem chamado o compromisso de Hassan de "o mais glorioso exercício de flexibilidade da história". Mas é o martírio desafiador de Hussein que tem exercido mais influência sobre a história de 34 anos da República Islâmica.
Por enquanto, o uso da frase "flexibilidade heroica" por Khamenei sugere ele dará uma chance à busca por conciliação de Rowhani – desde, é claro, que o plano B de Suleimani exista e consista de uma retirada. Como um acadêmico religioso disse à agência de notícias Tehran Bureau, a situação se resume a "Olá diplomacia, adeus martírio".
Depois de mais de três décadas de ausência de comunicação, a diplomacia entre norte-americanos e iranianos está repleta de potencial para o surgimento de mal-entendidos. Os termos de um possível acordo nuclear não são um grande mistério. Em termos gerais, ele envolveria estabelecer um limite para o nível enriquecimento de urânio pelo Irã, que poderia alcançar no máximo 5%, permitindo o enriquecimento somente sob supervisão internacional intensa, fechando a instalação subterrânea de Fordow e abandonando os planos de separação de plutônio – em troca da suspensão progressiva das sanções internacionais.
Mas o ziguezaguear do programa nuclear do Irã – programa que tem sido desenvolvido há muitos anos mas que não produziu nenhuma arma – sempre tem sido um movimento político acima de tudo. O programa é a expressão mais importante da essência da Revolução Iraniana: a rejeição da ideologia e da tutela internacional depois de décadas de suposta humilhação pelo Ocidente. A produção de bombas era algo secundário, pois ela sempre representou vários perigos para a sobrevivência da República Islâmica, e Khamenei, no papel de "Guardião da Revolução", está em um meio conservador.
Dessa forma, o núcleo do advento das negociações entre EUA e Irã reside em saber se Obama será capaz de tranquilizar o Irã e garantir a eles que um acordo nuclear não equivaleria à renovação da subjugação nem da cooptação. Ao mesmo tempo, Khamenei deve tranquilizar os EUA e reafirmar que a busca incansável de Suleimani pela "resistência" violenta contra o Ocidente e Israel cessará. Um acordo nuclear fará pouco sentido se não for algo amplo o suficiente para permitir uma eventual cooperação entre norte-americanos e iranianos em uma série de questões estratégicas.
Obama e Rowhani concordam que o mundo atual não é mais um mundo de "soma zero". E ambos usaram essa mesma frase. Mas, como sugere o destino da política externa de "zero problemas" de Erdogan, boas intenções apenas não bastam. O martírio de Hussein ainda poderá prevalecer sobre o compromisso de Hassan. Mas essa é a última chance para a adoção de um acordo capaz de mudar o jogo. Os Estados Unidos e o Irã deveriam aproveitá-la.
Tradutor: Cláudia Gonçalves
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