segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Direito à assistência sanitária gratuita é fórmula para lutar contra pobreza, dizem especialistas
María R. Sahuquillo - El Pais
Há seis anos María Rosa Torres teve seu terceiro filho. Do mesmo modo que os anteriores, deu à luz em um hospital público na região central de El Salvador. Teve de pagar US$ 40 (cerca de 30 euros) pelo atendimento. Algo que para sua família, que subsiste com os US$ 150 mensais que ganha seu marido, representou um enorme esforço. Como foram os US$ 5, 20 ou 15 que teve de pagar por consulta cada vez que um dos meninos adoecia. Tanto que só ia ao médico quando era muito urgente, "só pelos meninos".
Assim como acontecia com ela, a cada ano cerca de 150 milhões de pessoas no mundo se veem à beira do abismo por ter de pagar as contas de saúde, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Um abismo do qual Torres não se aproxima há três anos, desde que El Salvador reformou seu sistema público de saúde e eliminou esses pagamentos, chamados paradoxalmente de "cotas voluntárias". Um passo para a universalização da cobertura que também está sendo dada - em ritmos diferentes - por outros países em desenvolvimento, como Serra Leoa, Índia ou Filipinas, e que contrasta com os cortes em saúde nos países desenvolvidos.
O direito à assistência sanitária gratuita para toda a população é uma das fórmulas que os especialistas consideram mais eficazes para lutar contra o círculo da pobreza. As experiências nos países onde se apostou em uma ambiciosa agenda nesse sentido - alguns eliminaram o pagamento direto, outros criaram pré-pagamentos ou seguros de saúde públicos - demonstram que é um bom caminho e que os indicadores melhoram. Seus exemplos serão revisados durante a Assembleia Geral da ONU. Nela, mandatários, especialistas e organizações tentarão definir os novos objetivos - que substituirão os do Milênio cuja data limite é 2015 - que os países em desenvolvimento devem alcançar. Um deles - abrangerão os campos de educação, meio ambiente, igualdade... - poderia ser a universalização da cobertura.
A aposta é cara, mas rentável, segundo os especialistas em saúde pública e a OMS. Esse organismo calculou que o investimento salvaria 8 milhões de vidas por ano e geraria ganhos de cerca de US$ 360 bilhões anuais entre 2015 e 2020; uma quantia, afirma a comissão de macroeconomia dessa instituição em um relatório, que equivale várias vezes ao custo das intervenções sanitárias. Como? Se forem atacadas as doenças evitáveis e se melhorarem os indicadores de saúde, se aumenta a força laboral e a produtividade desses países. Mas apesar desses dados nem todos apoiam a medida. Alguns países, como Moçambique (que dedica menos de 30 euros per capita à saúde, contra os 2.500 da Espanha, por exemplo), não negam a importância da saúde, mas acreditam que a cobertura deve ter limites: só aos menores, ou lactantes e grávidas. Mais que isso seria ilusório, dizem, em um momento em que a ajuda ao desenvolvimento, na qual se apoiam, foi muito cortada.
Os que defendem a ampliação da cobertura não encontram um bom exemplo na deriva sanitária de uma Europa afogada pela crise: Portugal e Itália aumentaram os copagamentos por visita médica, a Espanha excluiu do atendimento normalizado os sem papéis e aumentou a participação do usuário nos medicamentos, inclusive alguns que são administrados nos hospitais; e na Grécia o sistema de saúde está desmoronando.
"A verdade é que, por enquanto, os objetivos a cumprir são só para os países em desenvolvimento. Ainda não há um debate sólido sobre se a agenda deveria ser para todos", aponta Jean McGraw, especialista em saúde pública. "E, embora seja verdade que se parte de bases absolutamente díspares e incomparáveis entre os países ricos e os pobres, seria interessante; porque é uma medida eficaz para acabar com as desigualdades", incide. Nos EUA, menciona, mais de 30 milhões de pessoas carecem de seguro médico. E a reforma da saúde que Barack Obama pretende fazer para garantir a assistência não conseguiu por enquanto ver a luz.
As estatísticas jogam a favor da cobertura global. Em El Salvador, que aumentou seu orçamento para a saúde 78% desde 2006, para 437 milhões de euros, a mortalidade materna baixou de 71,2 mulheres mortas a cada 100 mil nascidos vivos em 2006 para 50,8 em 2011, graças em boa medida ao aumento do atendimento médico nos partos. Esse país centro-americano de 6 milhões de habitantes - no qual 36,5% dos lares vivem na pobreza - conseguiu alcançar dois dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio que a ONU define em matéria de saúde com três anos de antecedência. E sua reforma sanitária - inspirada em parte no modelo espanhol anterior aos cortes - é uma referência para a Organização Pan-americana da Saúde.
"Grande parte dos avanços alcançados se deve à eliminação das quotas voluntárias, muito injustas; mas também à criação de ambulatórios públicos em centenas de municípios rurais", apontou Susana Calderón, diretora de saúde da região central de El Salvador, há algumas semanas em uma visita ao país organizada pela rede de ONG Ação pela Saúde Global. Ao todo, foram construídos 600 centros em pequenas aldeias, nos quais atendem um médico e duas enfermeiras. Uma rede chave em um país onde os 2 ou 3 euros que custa o ônibus para ir ao hospital mais próximo ainda são um obstáculo insuperável. Depois da reforma, os cidadãos não pagam pelas consultas nem pelos exames. Tampouco pelos medicamentos prescritos (sempre genéricos).
O governo de Mauricio Funes decidiu dar a tacada mais ampla. Outros países, como Serra Leoa, caminham um pouco mais devagar. Esse Estado da África ocidental estabeleceu em 2010 que a assistência sanitária seria gratuita para as mulheres grávidas e lactantes e para os menores de 5 anos. Desde então, apesar de Serra Leoa - com alguns dos piores números em saúde do continente - ainda estar muito longe das metas demarcadas pela ONU, avançou: a mortalidade em menores de 5 anos caiu de mais 200 para cada mil nascidos vivos em 2006 para 185 em 2011.
"Vamos devagar, mas se conseguiu diminuir o número de partos em casa, e isso teve um efeito positivo", aponta Samuel Kargbo, responsável por saúde reprodutiva no governo de Serra Leoa e um dos principais promotores da reforma. Em um país no qual 70% da população subsistem com menos de US$ 1 por dia, uma cesariana podia custar cerca de US$ 200.
A universalização da cobertura, a eliminação das barreiras econômicas de acesso à saúde, é a receita que os estudiosos dos sistemas de saúde vêm prescrevendo há anos. "Por mais que um país cresça, se houver obstáculos que impeçam o acesso à assistência médica seu desenvolvimento será lastreado e as desigualdades permanecerão", salienta Bruno Meessen, do Instituto de Medicina de Antuérpia. E esse é o espírito com que especialistas como ele pedem que a ONU ampare em sua nova lista de objetivos a cobertura universal. Entretanto, para os países em desenvolvimento, com sistemas de saúde - e muitas vezes bases democráticas - muito frágeis, pouco pessoal especializado e grande população rural, não é fácil. Não só falta orçamento, também é necessário apoio para construir um tecido de proteção social.
Tim Roosen, coordenador da Ação pela Saúde Global - uma rede fundada em 2006 que reúne uma dezena de entidades sem fins lucrativos que apoiam a assistência universal -, explica que mais de 60 países pediram assistência técnica à OMS para fazê-lo. "E já se ampliou em parte com a cobertura em países como Tailândia, Brasil e México", diz.
A OMS acredita que a melhor fórmula de financiar os sistemas de saúde é por meio de impostos - como se faz na Espanha -, e nunca de cotas diretas dos cidadãos. "Se há algum tipo de pagamento no momento do uso, este não deve representar jamais uma barreira ao acesso", repete Margaret Chan, a diretora desse órgão, na maioria de suas intervenções sobre o assunto, ao qual dedicou este ano seu relatório anual.
Também para os pesquisadores da Fundação Rockefeller - que tem um departamento dedicado especificamente a estudar o assunto e que, como a fundação Bill e Melinda Gates, tem o foco na cobertura global -, a eliminação desses pagamentos diretos dos pacientes é o primeiro passo para avançar para a cobertura global. Sem esse passo, alerta Robert Marten, um de seus especialistas, dificilmente se pode combater o HIV, ou doenças como a tuberculose ou a malária, das quais milhões de pessoas morrem por ano.
A Assembleia da ONU e o debate sobre as novas metas a perseguir depois de 2015 chegam em um momento chave. A crise econômica aperta e os especialistas concordam que é hora de definir prioridades. Serra Leoa, por exemplo, está agora diante de um dilema fundamental. Financiou sua reforma de saúde e a assistência gratuita aos grupos vulneráveis graças a doações de países ricos - como Reino Unido - e de organismos internacionais. O dinheiro, entretanto, acaba e o governo analisa agora a fórmula para aumentar suas receitas fiscais. O país está mergulhado em um debate no qual a sociedade civil propõe taxar a indústria extrativa - ouro e diamantes - e dedicar esses impostos à educação e à saúde gratuitas. O que decidir, acrescenta seu responsável de saúde reprodutiva, será chave para seus vizinhos, que poderão imitá-la.
Mas, apesar de ser uma via a explorar, Roosen lembra que a ajuda dos países desenvolvidos continua sendo vital para sustentar os sistemas de saúde e apoiar a reforma. "São necessários até 45 euros por pessoa por ano para garantir o acesso às operações mais essenciais, como estima a OMS. Não há uma única opção política para alcançar essa meta em todos os países, já que todos têm circunstâncias muito diferentes. Há muitas opções, como sistemas contributivos, fiscais ou uma combinação de ambos", resume o coordenador da ação pela saúde global.
Em El Salvador, a saúde pública é financiada diretamente por meio do orçamento do Ministério da saúde, que representa 2,4% do PIB. Uma aposta, afirma a ministra María Isabel Rodríguez, "no direito à saúde como princípio básico". Sobretudo em uma época em que o cinturão para outras finalidades está cada vez mais apertado. Mas sua reforma sanitária também tem arestas: os hospitais públicos salvadorenhos se destinam aos cidadãos que não são cobertos pelo seguro que as empresas deveriam contratar para seus trabalhadores. Entretanto, a falta de centros privados em algumas áreas e a falta de meios fazem que a saúde pública assuma, sem apoio financeiro do setor privado, o cuidado também daqueles que deveriam estar cobertos por outro lado.
O desabastecimento de medicamentos em ambulatórios e hospitais (onde os usuários os recolhem) também é um problema, afirma Margarita Posadas, do Fórum Nacional de Saúde. A lei de medicamentos genéricos e de preço controlado baixou El Salvador do primeiro lugar no ranking dos países onde os remédios são mais caros, mas conta com uma forte oposição dos laboratórios. Estes preferem pagar as multas por não servir a tempo ou não se apresentar nos concursos, porque afirmam que não é rentável para eles. O que não ocorreu, embora seus adversários o previssem, foi um aumento descontrolado de visitas ao médico, afirma a ministra.
Em Serra Leoa o sistema se viu em graves dificuldades para enfrentar a demanda. Mas não por visitas desnecessárias, e sim por falta de meios, dizem no governo. Tanto que Kargbo foi obrigado a ir à rádio para pedir às mulheres que só vão ao posto de saúde em casos urgentes. Esse país também criou um grupo de funcionários que garante que a assistência para o grupo de população definido seja realmente gratuita. Já que esse tipo de corrupção pode ser outro dos possíveis pontos fracos da reforma.
Em El Salvador os cidadãos sabem que não devem pagar nada. Antes, o preço variava em função de quem atendia. E não havia regateio. Roberto Vargas, 63, que aguarda no corredor do hospital de San Vicente (centro do país), explica que há até pouco tempo quase não ia ao médico para tratar da hipertensão e da diabetes que sofre. "Não tinha com quê", disse. Agora lhe detectaram problemas renais agudos que talvez, com prevenção, teriam sido mais leves. Casos como o desse agricultor aposentado são salientados por Daniel Lestir, coordenador da Médicos do Mundo em El Salvador. É o exemplo de que o objetivo deve ser a cobertura total: "Os programas de atendimento gratuito exclusivamente materno-infantis provocam o esquecimento do resto da população. A saúde é universal e deve cobrir a todos". Ao exemplo de El Salvador acrescentam-se outros, como o de certos estados da Índia, que avançam lentamente; ou as Filipinas, que à cobertura universal acrescenta agora pequenas melhoras, como o acesso a anticoncepcionais gratuitos.
A falta de meios e a crise fazem que especialistas como Lestir ou Meessen reconheçam que é preciso ir passo a passo. Mas insistem em que, embora em princípio só uma parte da população tenha cobertura, a intenção deve ser ampliá-la. Por isso, dizem, a importância de conseguir incluir essa cartada na nova agenda da ONU. O coordenador da Ação pela Saúde Global acredita que os objetivos até agora definidos em termos de saúde (como a redução da mortalidade materno-infantil) tiveram um grande impacto, mas não conseguiram que os governos modifiquem seus sistemas para que o atendimento chegue aos mais pobres: "E se não cumprirem o direito à saúde para todos os cidadãos os Estados não prosperarão nem crescerão, e os pobres continuarão empobrecendo cada vez mais".
Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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